Câmara é a instituição mais antiga em funcionamento na capital baiana
Como espaço de governo, ela foi uma das primeiras construções de Tomé de Sousa

No próximo dia 29, quando Salvador comemorar seus 474 anos, uma instituição pode ser considerada a testemunha dos primeiros anos da história de fundação da capital baiana e com funcionamento ininterrupto: a hoje Câmara Municipal. Casa de Câmara e Cadeia instalada por Tomé de Sousa e hoje símbolo maior de representação da cidadania e de fiscalização do poder executivo esse espaço acompanhou a dinâmica de transformações da primeira capital do Brasil tendo funções de legislação e punição, mas também sendo ocupada como local de protesto popular como demonstram registros das coleções do Cedoc A TARDE.
Uma fotografia de 1984, por exemplo, registrou a fachada da Câmara Municipal exibindo o placar de como votariam os deputados pela emenda Dante de Oliveira que deu origem ao movimento Diretas Já. O objetivo era garantir o retorno do direito de escolher o governo do Brasil pelo voto pondo fim à ditadura militar iniciada em 1964.
Foi em direção à Câmara que os participantes da Revolta dos Malês, em 1835, partiram. Nesse caso, a aspiração era libertar um importante líder muçulmano, Pacífico Licutan, preso como garantia da dívida do seu dono que devia aos frades carmelitas.
Um ano depois, a Câmara ocupou posição de destaque nos embates que deram origem à chamada “Cemiterada”. Foi por conta dos debates para uma legislação que estabeleceu a obrigatoriedade dos enterros em cemitérios que o levante aconteceu. A medida atendia às diretrizes dos médicos que começavam a considerar os miasmas como causas de doenças. Os sepultamentos aconteciam em igrejas o que, para os médicos, era um espaço de contaminação especialmente a partir de epidemias como a de cólera. Uma multidão, formada principalmente por membros de irmandades, marchou até o Cemitério do Campo Santo e o depredou em 25 de outubro de 1836.
A instituição, portanto, conseguiu manter a sua importância na cidade desde a fundação de Salvador ainda como cidade-fortaleza, ou seja, uma construção para defender as ações de colonização portuguesa.
“Em 1549 após a escolha do sítio, que é o promontório da Sé, Tomé de Sousa construiu uma pequena fortaleza, uma paliçada, e uma única praça na cidade que seria para a governança. Foi erguida a Casa de Câmara e Cadeia, o paço dos governadores e um pelourinho defronte a ela”, explica o arquiteto e professor Francisco Senna, especialista em restauro de monumentos e conjuntos históricos.
A partir da planta trazida de Portugal por Luis Dias, Tomé de Sousa tomou como uma das suas primeiras providências a construção da Câmara porque era um espaço essencial para a administração pública e o exercício de seu poder, inclusive o de justiça. Essa construção do traçado inicial da cidade, segundo o professor Francisco Senna, incluiu, no lado sul da praça o Paço dos Governadores; ao norte a Alfândega; a leste a Casa de Câmara e Cadeira, a oeste os guindastes para transporte de cargas ao porto e ao centro o Pelourinho, onde funcionou uma feira livre para abastecimento dos moradores, inclusive os que vieram acompanhando Tomé de Sousa.
A Casa de Câmara e Cadeia foi construída em 1550, ou seja, um ano após a chegada do encarregado da fundação de Salvador. De início modesto em taipa e coberta de palha ela foi ganhando a configuração que marcou a sua importância. O modelo atual é de 1660 realizado durante o governo-geral de Francisco Barreto de Menezes a partir de um projeto do arquiteto beneditino Frei Macário de São João.
A Câmara ficava no piso superior e as cadeias foram instaladas abaixo, no térreo. Em 1698, de acordo com Francisco Senna, ocorreu uma reforma com o acréscimo de uma torre com sino, casas de audiências e outros cômodos. Neste mesmo período, segundo o professor, foram criadas e instaladas as comarcas de Jaguaripe, Cachoeira e São Francisco do Conde a partir do desmembramento da que funcionava em Salvador como única da Bahia.
Em 1609, Salvador ganhou a Casa de Relação, que pode ser comparada ao contemporâneo Tribunal de Justiça. Foi a primeira instituição desse tipo nas Américas. Por conta da instalação desse novo espaço do poder colonial, de acordo com Francisco Senna, o padre Antônio Vieira, a referência em oratória sacra, veio para Salvador (1608-1697). “Ele chegou ainda criança porque seu pai foi designado para ser um dos desembargadores e fundadores da Casa de Relação”, acrescenta Francisco Senna.
Outra instituição contemporânea da Câmara foi a Santa Casa de Misericórdia. Fundada em Portugal no século XV, a instituição foi instalada em Salvador para a prestação de serviços assistenciais e funerários.
Renovação
De 1887 a 1888, a Câmara passou por uma reforma. O imóvel recebeu uma configuração neoclássica por meio de um projeto do arquiteto Francisco de Azevedo Caminhoá.
“Ele fez um revestimento da fachada da Câmara com elementos neoclássicos, com rebocos, com platibanda. O sino foi substituído por um relógio e gradis neoclássicos substituíram os de ferro batido. A adoção do modelo neoclássico foi feita em todo o Centro Histórico da cidade como o Palácio Rio Branco”, destaca Francisco Senna.
No final da década de 1960 do século XX, a Câmara começou a retornar ao seu modelo original. O projeto viabilizado pelo Iphan e conduzido pelo arquiteto Fernando Machado Leal foi financiado pela Prefeitura de Salvador. A obra foi marcada pelo retorno da fachada original do imóvel, assim como de elementos do projeto de Frei Macário de São João.
“Foram retirados os acréscimos feitos em 1888: a platibanda, os gradis novos e o revestimento. Por debaixo apareceu toda a cantaria e tudo aquilo que era do século XVII. O sino foi restituído para o lugar onde estava o relógio e tudo foi inaugurado com festa”, completa Francisco Senna.
No final da década de 1990 foi instalado o Memorial da Câmara Municipal de Salvador. Criado pelo Decreto Legislativo nº 855 de 10 de outubro de 1997 e inaugurado em 2001, o espaço conta as histórias da Câmara por meio de maquetes, documentos e material iconográfico.
Em visita ao memorial é possível visualizar o subsolo do prédio onde ficava a prisão, material arqueológico encontrado em obras de escavação para reforma, dentre outros elementos. A Câmara possui uma pinacoteca composta por retratos de personagens importantes para a história de Salvador pintados por artistas como Lopes Rodrigues, Presciliano Silva, Alberto Valença, Victor Meireles, Henrique Passos, Carlos Bastos e Floriano Teixeira. “A Câmara tem um papel político importantíssimo. É a Câmara que julga a prefeitura, que aprova os projetos. A Câmara é a instância maior, na verdade”, aponta Francisco Senna.
Além de espaço para o exercício da cidadania, afinal o povo é que delega o poder de representação por meio da escolha de vereadores, a Câmara de Salvador tem muito a contar sobre a história e transformações de Salvador, afinal os grandes embates sobre os mais variados temas a tiveram e ainda tem como um grande palco de mediação ou enfrentamento.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.