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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 12 de agosto de 2023 às 11:00 h • Atualizada em 12/08/2023 às 11:42 | Autor:

Caminhada Azonay vai celebrar seus 25 anos no próximo dia 16

Manifestação de comunidades de candomblé traz diversidade cultural à celebração do dia de São Roque

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No próximo dia 16, a Estrada de São Lázaro, na Federação, vai receber as celebrações de uma das maiores devoções baianas que é culto a São Roque. O santo é considerado protetor contra as doenças infectocontagiosas e aquelas que afetam a pele. Ele é cultuado em um templo que é mais antigo do que a Igreja do Bonfim e que já abrigava, pelo menos desde 1737, o culto a São Lázaro. Devido ao aspecto de romaria das manifestações de tanta gente que encontra no local a esperança para as curas do corpo e do espírito, a igreja ganhou o título de santuário. É lá também que se encontram diversas culturas religiosas da Bahia: as de base católica e as que compõem as religiões de matrizes africana. Neste ano, uma das manifestações derivadas deste encontro, a Caminhada Azoany, completa 25 anos. A manifestação, ao longo da sua trajetória, tem recebido visibilidade em A TARDE como demonstram as coleções do Cedoc A TARDE.

“A tradição de se reverenciar Obaluaê com uma caminhada partiu, há 30 anos, de um senhor chamado Martins, hoje com 70 anos. Depois de ter seus pedidos atendidos pelo orixá, ele resolveu, todos os anos, sair em caminhada para agradecer as graças alcançadas, sempre sozinho. Há três anos, Albino Apolinário, decidiu, “depois de inspirado por Obaluaê”, se juntar a Martins e passou a coordenar a caminhada”. (A TARDE, 17/8/2001, p.3).

Um dos primeiros registros da caminhada, em 2001, quando ela ainda estava em seus anos iniciais é um parâmetro para sinalizar o quanto ela cresceu. Cinco anos depois, a Caminhada Azoany já estava integrada à programação da festa de São Roque nos serviços sobre a festa publicados nos textos de A TARDE. No ano da 15ª edição, uma reportagem de A TARDE já dava a dimensão de como o evento havia crescido.

“Anualmente, a caminhada reúne cerca de três mil pessoas. “Azoany é um dos nomes como Omolu é conhecido no candomblé que segue a tradição jeje”, explica Albino Apolinário, coordenador da caminhada”. (A TARDE 16/8/2013, p.A6).

A Caminhada Azoany é organizada pelo produtor cultural Albino Apolinário. Ela surgiu como auxílio a uma devoção pessoal de Martim Santos. Filho do orixá Obaluaê, Seo Martim fazia o percurso do Pelourinho até o Santuário de São Lázaro e São Roque na Federação, anualmente, e levando o tabuleiro com pipocas.

Martim Santos (centro)  iniciou a devoção que mais tarde foi incorporada à Caminhada Azoany
Martim Santos (centro) iniciou a devoção que mais tarde foi incorporada à Caminhada Azoany | Foto: Divulgação

Chamadas de “flor do velho” as pipocas, nesses tabuleiros, que costumam circular por várias ruas de Salvador levados pelas pessoas que no candomblé são consagradas a essas divindades consideradas donas dos mistérios sobre a saúde e a cura especialmente das doenças infecciosas e as que afetam a pele são dadas em trocas de qualquer quantia. É uma troca que significa a humildade dos filhos do chamado Rei da Terra sempre atentos a distribuir a dádiva da saúde para quem precisa.

Associada à devoção de Seo Martim já realizada por algumas décadas, a Azoany nasceu também marcada pela solidariedade. A venda de camisetas, por exemplo, foi transformada em donativos por meio da Associação Alzira do Conforto. Na edição de A TARDE de 16 de agosto de 2015, Albino Apolinário contou que a inspiração veio do trabalho social que era realizado por sua avó homenageada com a criação da associação.

“Minha avó era muito engajada no amparo a quem precisava. Era filha de Xangô com Nanã e decidimos fazer a homenagem”, diz. (A TARDE, 16/8/2015, p.A6).

Esse ano está sendo possível receber a camiseta da caminhada em troca de alimentos não perecíveis. O que for arrecadado vai ser doado para o projeto Bahia sem Fome, que une instituições que atuam no campo da segurança alimentar sob a coordenação do governo da Bahia.

Roteiro de fé

A Caminhada Azoany sai do Pelourinho em direção à Estrada de Lázaro, onde fica a igreja de São Lázaro e São Roque. Quando a caminhada chega na Federação, geralmente, é o momento em que a procissão está em andamento. Quando as duas manifestações de religiões diferentes se encontram há uma troca de saudações. Em seguida, a procissão católica segue para cumprir o seu roteiro até as imediações do cemitério Campo Santo e a caminhada prossegue em direção à igreja na Estrada de São Lázaro. No caso desta última há ainda a parada na lateral da Escola Politécnica da Ufba, onde fica uma gameleira que, no candomblé, é uma árvore consagrada a divindades como o vodum Loko e o orixá Iroko.

Aspecto da Caminhada Azoany quando ela encontra a Procissão de São Roque.
Aspecto da Caminhada Azoany quando ela encontra a Procissão de São Roque. | Foto: Divulgação

“O que eu considero de mais importante no que foi construído com essa caminhada ao longo dos anos é essa manifestação pelo respeito à liberdade de crença. Depois da Caminhada Azoany outras semelhantes foram chegando para fortalecer a luta do povo de santo em defesa de professar a sua fé”, diz Albino Apolinário.

Devoções de cura

Não apenas em Salvador, mas por toda a Bahia, as devoções para São Lázaro e São Roque são muito fortes. Na capital baiana, a festa do primeiro acontece no último domingo de janeiro. São Roque tem como data litúrgica o dia 16 de agosto.

Essas celebrações católicas se encontram com as devoções das religiões africanas que cultuam divindades como Kavungo, na tradição do candomblé angola; Azoany e Sakpata, dentre outras, do candomblé jeje; e Omolu e Obaluaê de tradição nagô-ketu. Um itan desta última tradição, ou seja, a forma narrativa sobre os princípios religiosos conta que Omolu, ainda criança, conseguiu acorrentar a morte. Ele é, portanto, o detentor dos segredos sobre vida e morte e dos mistérios de controle de doenças, como varíola e as que atacam a pele - hanseníase, psoríase, dentre outras.

As práticas religiosas de base africana têm como princípio aliar a cura do corpo e da alma, pois ambos formam uma unidade. Assim, há muita materialidade nos tratamentos espirituais, como chás, banhos, dentre outras práticas. Uma das mais conhecidas é a aplicação da pipoca que repete o princípio da erupção na pele de algumas doenças, como a varíola. O milho estoura e se transforma em pipoca. Assim, passar esse alimento no corpo é uma das formas de tratar, revelar ou se precaver das energias que provocam males como as doenças.

Em Salvador, marcada por episódios de epidemias desde a sua fundação, o culto a essas divindades sempre foi muito popular. São Roque e São Lázaro são, por exemplo, conhecidos como “médicos dos pobres”. Além disso, as culturas africanas onde há esse forte componente de culto às divindades que dominam esse campo, tiveram os seus elementos de devoção associados às práticas católicas.

Em cidades do interior do Bahia, como Iaçu, acompanhei muitas vezes, durante minha infância e adolescência, devotos de São Roque oferecerem no dia 16 pipoca e mugunzá, alimentos com base nas comidas votivas oferecidas a inquices, orixás e voduns cujos elementos do culto têm semelhanças aos realizadas para essas divindades de tradições africanas. São marcas da riqueza cultural por conta dos encontros e trocas entre as práticas religiosas na Bahia.

São Roque, segundo a tradição católica nasceu na França. Era de família rica e, após ficar órfão e distribuir seus bens aos mais pobres, decidiu fazer uma peregrinação a Roma. Foi no período em que a peste, como a varíola ficou conhecida, estava sem controle na Europa. Roque, ao longo da sua caminhada, não se afastou dos doentes, o que era a prática mais generalizada. Tratou de vários até que ele mesmo ficou doente. Decidiu se retirar para uma gruta. Enquanto se recuperava, um cachorro aparecia todos os dias para lhe entregar um pão. Por isso em sua iconografia mais conhecida ele aponta para chagas na perna e ao seu lado tem um cachorro com um pão na boca.

SERVIÇO: Caminhada Azoany- Dia 16 de agosto- Missa às 11 horas na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, Pelourinho, seguida de outras atividades até a saída em direção à Federação.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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