Carnaval é o marco zero da roda festiva da Bahia
Celebração se constitui em ponto importante no calendário do Estado
Uma máxima comum em Salvador é a de que um novo ano só começa na segunda-feira após o fim da Carnaval. Como a quase totalidade das nossas percepções simbólicas, o que parece uma brincadeira tem base pragmática. Com a festa desenvolvendo um papel central para várias das atividades econômicas de Salvador, o Carnaval pode ser considerado o marco zero de uma roda do ano festiva. É a partir dele que se encerra um ciclo, o de verão, e se inicia o outro que será seguido por tempos festivos muito fortes, como o conjunto Quarema, Semana Santa e Páscoa e as celebrações juninas. A partir das coleções de reportagens e fotografias de A TARDE é possível visualizar essas linhas do tempo, inclusive em conteúdos especializados.
Em 2003 por exemplo, A TARDE apresentou como resultado de uma reforma editorial então em curso a seção especializada nas mudanças das rotinas da cidade a partir da chegada do verão. O conteúdo especial foi lançado em 15 de janeiro daquele ano, véspera da Lavagem do Bonfim.
“A TARDE estréia hoje um serviço especial voltado para os acontecimentos do verão. Praias, festas, dicas de saúde e personagens locais ocuparão páginas diárias do primeiro caderno. Na primeira edição, tudo sobre a tradicional Lavagem do Bonfim. O que é preciso para encarar os 8 km de caminhada debaixo de um sol forte de quase 40 graus? Roupas leves, sapato apropriado e muita hidratação já ajudam na saída. E, enquanto mail de mil pessoas divertem-se, um pelotão de servidores públicos, barraqueiros e ambulantes trabalha para garantir a estrutura. Saiba como vai funcionar segurança, atendimento médico e trânsito. Conheça gente como Vera Lúcia dos Santos, a dona Vera, ambulante que pouco curte o lado lúdico das festas. Da Conceição ao Carnaval, ela só trabalha. Prepare a roupa branca, que vai rolar a festa. Epa babá, epa ô”. (A TARDE 15/1/2003, capa).
A seção especializada no verão e tudo que estava relacionado às mudanças na cidade por conta dele, ou seja, festas e serviços, prosseguiu até a semana em que começou o Carnaval. Na edição de 21 de fevereiro de 2003, a coluna Tabuleiro, anunciou a contagem regressiva para o início da festa.
O Carnaval é, dessa forma, o início de um novo ciclo, ou seja, a despedida do verão, que é considerado crucial para segmentos econômicos, como o turismo e entretenimento. Tanto que um conjunto de festas de largo foram reunidas em um calendário de aquecimento para chegar a ele. O ciclo iniciado com a Festa de São Nicodemus, padroeiro dos portuários, em novembro, é encerrado com a Festa de Itapuã, na quinta-feira anterior ao início do Carnaval. Esse ano por conta da data fixa para a Festa de Iemanjá e com o Carnaval já no início de fevereiro, ela acabou sendo a penúltima.
Convenções
O calendário simbólico sobreposto ao civil é uma característica forte de uma cidade como Salvador que depende do discurso sobre os seus muitos patrimônios. A construção da identidade festiva da cidade é resultado das medidas de diversos agentes não sendo possível precisar a época em que começou. Esse discurso tem a capacidade de gerar negócios nesse campo lúdico e é resultado de muito trabalho nas mais variadas áreas, pois requer conhecimento especializado em campos como administração, economia, produção cultural, dentre outros.
O tempo da rotina necessita negociar com o da festa. Isso se torna possível porque o passar das horas ou do dia é uma convenção coletiva. A nossa relação com o tempo embora tenha percepção sensorial necessita de pragmatismo, mas também tem espaço para a religião e a magia, essa entendida como imposição de questões que desafiam a lógica.
Ciclos
Uma das características fortes das festas é a de marcador temporal indicando ritos de passagem, como as estações do ano ou a necessidade de se conectar a uma intervenção do sagrado por meio de uma devoção continuada a um santo em agradecimento por uma graça coletiva ou individual. São Francisco Xavier se tornou padroeiro de Salvador, por exemplo, pela crença de que foi o mediador para que uma epidemia na cidade fosse contida. Já a devoção ao Nosso Senhor do Bonfim resultou da construção de uma igreja pelo capitão Teodósio Rodrigues de Farias em agradecimento por ter escapado de um naufrágio.
O tempo, especialmente o relacionado às práticas religiosas, é uma mistura da percepção individual com práticas coletivas e varia em relação às culturas. O calendário precisa de uma organização racional, mas abre as exceções. No dia da Festa de Iemanjá, por exemplo, não é feriado, mas empreendimentos comerciais e de serviços, repartições públicas e outros negócios não funcionam, mesmo que alguns estejam longe do endereço da celebração, porque ocorrem mudanças no sistema de transporte, nas vias de trânsito e é necessária a mobilização de órgãos da prefeitura e do estado para garantir a organização do evento. O mesmo ocorre no dia da Lavagem do Bonfim ou de Santa Bárbara. Já o Carnaval modifica de forma mais intensa o cotidiano da cidade, afinal em Salvador dura uma semana, pois é considerado a maior e mais forte festa.
“A antropologia evidencia, desde sua constituição como disciplina, que festas, notadamente religiosas, marcam os tempos fortes, os momentos culminantes, as alternâncias de ritmo e de intensidade da vida coletiva, a periodicidade das passagens. Pautam, ainda, as formas de agregação e de solidariedade coletiva e indicam as emoções e as paixões comuns”. (Festa, religião e cidade- Corpo e alma do Brasil, Léa Perez, p.26).
Esse tempo festivo necessita de uma organização básica e de repetição com um tempo inicial, as variáveis e seu encerramento. O Carnaval se encaixa de tal forma como marcador temporal que A TARDE passou a promover um conteúdo preparatório, como a Editoria de Verão em 2003, que em anos posteriores começou a ser veiculado em dezembro. Na semana do início da folia, a seção de Verão era substituída pela de Carnaval. Já a edição da Quarta-Feira de Cinzas sempre era considerada digna de tratamento e estratégias internas especiais para garantir a sua preparação, pois aumentava de forma considerável o número de páginas do jornal por conta das informações do final da festa, análises e a sinalização de que aquele período terminou, como foi destacado na capa da edição de 5 de março de 2003:
“Tô indo, tô indo...A dançarina do Ilê Aiyê passa saudando a vida e os foliões. O Carnaval dura até a manhã de hoje”. (A TARDE, 5/3/2003, capa).
O Carnaval em Salvador se expande ainda pela manhã da Quarta-feira de Cinzas, o que é mais uma ligação da sua transição como calendário. E, diferentemente do que muita gente pensa há traços religiosos para a definição dos dias em que ele vai ocorrer.
Data móvel, o Carnaval é comemorado no Brasil, anualmente, em um terça-feira. Para chegar a ela, o princípio é a Páscoa dos católicos. Como essa é a mais importante festa do ano litúrgico do catolicismo- afinal a crença na ressureição de Jesus é a base não apenas dessa religião, mas de todas as denominações cristãs- existe um tempo de preparação de 40 dias para ela que se chama Quaresma. A abertura desse período usado, sobretudo, para reflexão e penitência como uma forma de purificação para celebrar a Páscoa, é na Quarta-feira de Cinzas, ou seja, o dia após a terça de Carnaval.
Para se estabelecer esse início da Quaresma conta-se, portanto, os quarenta dias anteriores à Páscoa que tem a mesma data da festa de mesmo nome no judaísmo, pois Jesus morreu na sexta-feira anterior ao sábado em que ocorria essa celebração. Além disso, o Carnaval dialoga com ritos da cultura greco-romana que celebravam Baco e Dionísio e marcavam períodos muito especiais como as colheitas e invocação da fartura.
Em Salvador é só após o Carnaval que as atividades ganham o que podemos chamar de uma normalidade total. Tudo até então é em ritmo mais lento, pois se sabe que o feriado é longo. Com o ciclo da Quaresma, seguido pela Semana Santa e Páscoa a economia é movimentada especialmente a das feiras e mercados devido ao consumo de peixes e outros pratos à base de azeite de dendê. Em junho a festa começa já no dia 1º, com as trezenas para Santo Antônio, celebrado dia 13, e segue até o fim do mês, pois tem São João (23 e 24) e São Pedro e São Paulo (28 e 29).
No mês seguinte é tempo das festas relacionadas à Independência da Bahia. Agosto é um mês dedicado ao afro catolicismo nas devoções a São Roque e divindades das religiões afro-brasileiras especialistas na cura de doenças infecciosas e de pele, como Kavungo, Azoany e Omolu. Setembro é o mês das homenagens a São Cosme e São Damião e às divindades que são crianças no candomblé, umbanda e outras tradições de matrizes africanas. Em novembro tem o ciclo de verão com a nova preparação para o Carnaval fazendo girar a roda festiva.
Confira as páginas de A TARDE:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia