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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 08 de abril de 2023 às 6:00 h | Autor:

Católicos completam ciclo de cerimônias conectado à base de sua crença

Fé na ideia de que Jesus ressuscitou sustenta o cristianismo

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Ovos da Páscoa tornaram-se os mais conhecidos símbolos
Ovos da Páscoa tornaram-se os mais conhecidos símbolos -

A Páscoa no mundo ocidental é mais frequentemente lembrada pelo costume de presentear, especialmente as crianças, com ovos feitos de chocolate. Mas, hoje, sábado, os católicos celebram a sua maior festa do ano com uma série de ritos cheio de significados e que estão conectados para chegar até o momento crucial: a comemoração da ressureição de Jesus após a brutal morte na cruz, o que é o símbolo de que é possível ver a vida triunfar e ressurgir. O lado religioso dessa festa foi registrado nas coleções de textos e fotografias que compõem o acervo do Centro de Documentação A TARDE (Cedoc).

Em 2003, por exemplo, na edição de 18 de abril, A TARDE contou a história do julgamento de Jesus de uma forma diferente. Ao lado da reportagem foram publicados dois artigos elaborados por especialistas em legislação. O desafio era saber como Jesus seria julgado com base no Direito ocidental que é herdeiro da tradição romana. Foi um governador enviado por Roma para a Palestina, Pilatos, que selou o destino de Jesus. Os autores dos textos foram o advogado Antonio Peres Junior e o juiz de direito, então titular da 11ª Vara Crime em Salvador, José Reginaldo Costa Rodrigues Nogueira.

“A própria condenação de Jesus à pena capital, comumente utilizada na época, comporta em si a mácula da vedação à revisão da sentença, que cumpriria o princípio do duplo grau de jurisdição, ou seja, a possibilidade de recurso à condenação. Trata-se de um exemplo máximo de injustiça processual”, escreveu o advogado Antônio Peres Junior.

“Num quadro comparativo, nos dias de hoje, segundo a legislação em vigor, Jesus seria fatalmente absolvido, dada a inexistência de prova concreta e de crime, apesar de suas afirmações, sem falar na ausência da ampla defesa e de vícios no julgamento, como o depoimento falso de testemunhas e pressão exercida sobre aquele que proferiu o veredicto final (Pilatos), o que certamente causaria a nulidade penal”, analisou o juiz José Reginaldo Costa Rodrigues Nogueira.

A avaliação dos dois especialistas, portanto, é que Jesus seria absolvido caso tivesse um julgamento justo. Mas não foi o que ocorreu dando início a um drama que envolveu tortura e outros desdobramentos até a crucificação. É possível imaginar a desolação dos seguidores do homem que por cerca de três anos apresentou uma pregação com ideias impactantes para o seu tempo.

“Jesus falava que trazia uma boa notícia aos pobres, curava doentes e pregava o perdão: “Se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda!”. Amem os seus inimigos e rezem por aqueles que perseguem vocês! Assim se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos”. Por tudo isso conquistou seguidores, mas também despertou o ódio das elites religiosas da época. Acabou diante de Pilatos sem nenhuma possibilidade de defesa”. (A TARDE, 18/4/2003, p.5).

Imagem ilustrativa da imagem Católicos completam ciclo de cerimônias conectado à base de sua crença
| Foto: Cedoc | A TARDE

Memória

Essa história tão forte começou a ser celebrada na última quinta-feira com a missa que lembra a instituição da Eucaristia, ou seja, a última ceia que Jesus realizou com os seus apóstolos. É também conhecida como a celebração do lava-pés, um gesto que, segundo as narrativas dos evangelhos, Jesus adotou para mostrar humildade.

“Essa missa não tem bênção final porque na verdade ela marca uma história que só vai ser concluída com a missa da vigília pascal”, explica Carlos André Leandro, doutor em Teologia com especialidade em exegese bíblica pela Université Catholique de Louvain la Neuve, localizada na Bélgica. Leandro é professor e coordenador da Escola de Humanidades e do curso de Teologia na Universidade Católica de Salvador (UCSal).

A Sexta-Feira da Paixão, inclusive, é o único dia na liturgia católica em que não há missa, pois não é possível fazer a consagração das hóstias, afinal o sentimento é o da lembrança de que Jesus experimentou a morte, algo que assombra todos os humanos. Mas então, no dia seguinte, é o momento de celebrar, em uma missa cheia de significados, o renascimento da esperança. Essa é a celebração da vigilância pascal, em que tem a benção do fogo e outros ritos na missa mais longa de toda a liturgia católica durante o ano. Mas isso é porque a Páscoa é a base de todo o cristianismo.

“A exemplo da Páscoa Judaica nós celebramos a Páscoa de Jesus que é a sua passagem como é o significado da palavra. Assim como o povo judeu celebrava a passagem pelo mar vermelho e a saída da sua situação da escravidão no Egito, Jesus saiu de sua situação de morte na cruz para a ressureição”, completa Carlos André Leandro.

Essa condição de renascimento e de triunfo da vida é tão forte, de acordo com o teólogo, que não dá para falar de cristianismo sem falar de Páscoa. “A ressureição de Jesus é o nascimento da fé cristã, assim como é o nascimento para a fé judaica. A fé judaica nasce quando há essa passagem da escravidão para a liberdade. E esse é um aspecto interessante: pensar que a religião é uma passagem para a liberdade quando se deixa uma experiência de aprisionamento para uma experiência de liberdade”, acrescenta.

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Esse importante acontecimento está registrado ao longo do Novo Testamento e com detalhes, com alguma ou outra divergência nos quatro evangelhos oficiais, que são as narrativas sobre a biografia e feitos de Jesus. Mateus e Marcos têm relatos semelhantes. Lucas, que era romano, se aproxima mais um pouco do que conhecemos hoje como um estilo historiográfico e João é o que apresenta o texto mais alegórico desse conjunto. Mas em um ponto todos concordam: as mulheres, com Maria Madalena como protagonista, foram as primeiras a conferir o milagre da ressurreição e anunciá-lo. Esse foi o tema de um dos textos da série especial sobre a Semana Santa publicado por A TARDE em 2004.

“Sim! Elas ficaram firmes até o fim. Enquanto Judas traía e Pedro negava, as mulheres acompanharam Jesus no caminho da cruz. “Grande número de mulheres estava aí, olhando de longe. Elas haviam acompanhado Jesus desde a Galileia, prestando-lhe serviços. Entre elas estavam Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José e a mãe dos filhos de Zebedeu”, narra o evangelista Mateus. No relato de João, autor do quarto evangelho, a proximidade é ainda maior. Elas estão junto à cruz. No meio delas só há um homem identificado como “o discípulo que Jesus amava”, personagem reconhecida, na maioria das explicações, como o próprio evangelista. Enquanto todos ainda estão abatidos pela morte cruel imposta a Jesus, mais uma vez as mulheres dão mostra de firmeza. São elas as primeiras a descobrir que a história não tinha acabado. Na versão dos quatro evangelistas elas são as primeiras a descobrir que Jesus ressuscitou e se encarregam de levar a notícia aos então apavorados apóstolos. (A TARDE, 10/4/2004, p.5).

É importante perceber a força dessa presença feminina, afinal a Igreja Católica Apostólica Romana reivindica o seu papel de pioneira no cristianismo é chefiada por homens: os papas. As mulheres, historicamente, não tem um papel de protagonismo na liderança da Igreja e nem podem exercer o sacerdócio, mas a própria base para a doutrina não apagou esse protagonismo feminino.

“Eu pessoalmente tenho a sensação de que boa parte daquilo que hoje se atribui a uma certa dificuldade da relação da Igreja com as mulheres tem muito a ver com a nossa experiência social. Podemos analisar, por exemplo, que o voto feminino no Brasil ainda nem chegou a completar um século. Isso me dá mais esperança de que à medida que a sociedade avance na abertura de mais espaço para as mulheres, que se torne também natural para a Igreja avançar nesse sentido”, analisa o professor Carlos André Leandro.

Ele aponta algumas mudanças como a nomeação da religiosa franciscana e cientista política Raffaella Petrini para o posto de secretária-geral de Governação do Estado da Cidade do Vaticano em novembro de 2021. Esse posto é considerado o segundo em importância na hierarquia de governo do Vaticano. Raffaella Petrini é a primeira mulher a ocupar esse posto na história da Igreja.

Essa é talvez mais uma das lições que podem ser aprendidas a partir da interpretação dos acontecimentos que estão descritos na Bíblia, livro que é considerado sagrado para o cristianismo, especialmente o conjunto dos textos que formam o Novo Testamento. “Mesmo com algumas passagens como as dos escritos de São Paulo em que aparece um certo preconceito em relação às mulheres, nos evangelhos há uma um espaço mais equitativo como a passagem em que Jesus defende a mulher acusada de adultério e a acolhe. Também há a descrição de fatos como as primeiras comunidades cristãs tendo mulheres à frente”, diz Carlos André Leandro.

Ele explica que nos ritos de morte judaicos eram as mulheres que cuidavam de detalhes como perfumar o corpo dos mortos. Como Jesus morreu no meio da tarde da véspera da Páscoa Judaica, em que havia uma série de restrições em relação a trabalhos manuais, o sepultamento foi feito de forma rápida. No sábado elas voltaram para completar os ritos, como colocar mirra para perfumar o corpo e encontraram o túmulo vazio. “Elas, segundo os evangelhos, se deparam com a porta do túmulo aberta e a história continua dali. São as primeiras a acreditar”, acrescenta o professor.

Para ele essa mensagem de vitória de uma vida, capaz de triunfar sobre as situações de morte e sofrimento, deveria receber o grande destaque durante essa celebração. “Poderíamos estar pensando nas pessoas que são descartadas, por exemplo, pelos grandes modelos econômicos, como os marginalizados com várias características cujas mortes não despertam a solidariedade da maioria das pessoas”, diz.

Como a Páscoa é uma celebração da esperança e a tradição católica baseia-se na memória exatamente para tentar ser mais pedagógica talvez, em um futuro próximo, das igrejas irradiem o símbolo maior da festa. Assim a valorização de uma vida centrada na pregação de Jesus contra as injustiças e acolhimento aos que sofrem, mesmo desafiando padrões, pode receber mais atenção que o Coelho e os ovos de chocolate que simbolizam renovação, mas estão presos a uma lógica comercial que ofusca um princípio maior.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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