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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 23 de março de 2024 às 0:00 h | Autor:

Chocolate ganhou protagonismo na principal celebração do cristianismo

Ovos de Páscoa se tornaram fundamentais para o comércio, mas história envolve encontro de culturas religiosas

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Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa
Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa -

A Páscoa é a mais importante festa cristã do ano, especialmente para os católicos, afinal sem a crença na ressureição de Jesus não haveria cristianismo. Além dos ritos religiosos, a data é conhecida pelo protagonismo que o chocolate ganhou. Ele está para essa festa assim como os pratos à base de dendê, na Bahia, estão para a Sexta-Feira da Paixão. Ao lado do Coelho da Páscoa, os ovos feitos com chocolate têm um protagonismo cada vez maior e apelo comercial, como mostram coleções de A TARDE. Mas a associação desses elementos à data não é aleatória. Ela é resultado do encontro de diversas culturas religiosas.

É difícil cravar com certeza como o chocolate ganhou protagonismo em uma celebração religiosa tão importante, mas há quase consenso que o marco é o século XIX. O crescimento da indústria confeiteira é uma pista importante para esse processo.

Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa
Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa | Foto: Data: 07/04/2001. Foto: Carlos Santana | Cedoc A TARDE

“O hábito de presentear os amigos com "ovos de páscoa" é uma tradição tipicamente europeia, adotada há muitos anos pelos brasileiros. A cada ano afirmam os comerciantes que a demanda de "ovos de páscoa" cresce mais”. ( A TARDE, 27/3/1976, p.5)

Na edição de 26 de março de 1976, a página de A TARDE denominada “Criança” publicou uma série de atividades com a Páscoa como tema: o desenho e instruções para montar um coelho, palavras cruzadas, dentre outras.

Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa
Venda de ovos de Páscoa ganharam cada vez mais espaço no noticiário sobre a festa | Foto: Data: 30/03/1999. Foto: Valdir Argollo | Cedoc A TARDE

Para compreender melhor a entrada dos ovos e posteriormente o chocolate nas celebrações ocidentais da Páscoa é necessário observar com atenção as várias referências religiosas que estão presentes nessa celebração. A festa cristã ocorre no mesmo período da Páscoa do Judaísmo. Este celebra a saída dos hebreus do Egito após um período de escravidão.

Segundo os evangelhos, que são as narrativas oficiais dos discursos e ações de Jesus, ele foi crucificado em uma sexta-feira porque no dia seguinte seria a festa da Páscoa Judaica e uma morte como a dele seria um impedimento à purificação necessária para a celebração. Ainda segundo essas narrativas ele ressuscitou na passagem do sábado, o dia santo judaico, para o domingo. Por isso, na tradição cristã ocidental o domingo é que é considerado sagrado.

No Ocidente, a data da Páscoa é móvel. Por definição teológica, ela deve acontecer na primeira lua cheia após o equinócio da primavera, no hemisfério norte, e outono, no hemisfério sul. Ela costuma ocorrer entre o período de 22 de março a 25 de abril.

Transformações

A conversão do imperador romano Constantino para o cristianismo, no século IV, marcou a associação desta religião ao Estado. Tanto que a Igreja Católica, porque se proclama universal, reivindica a sua condição de Apostólica ao se considerar herdeira dos 12 apóstolos, ou seja, os homens que seguiram Jesus mais de perto, e Romana, por conta da sua sede ficar em Roma.

O Império Romano se caracterizou por unir as mais diferentes culturas com uma intervenção mínima nas crenças de cada uma delas. Mas com a oficialização do cristianismo, ritos como os de celebração de passagem das estações começaram a ser proibidos e nos casos em que eles eram muito resistentes foram absorvidos em festas com narrativas cristãs. Uma das mais conhecidas ações nesse sentido é o Natal. Em dezembro, após um inverno rigoroso, acontecia por volta de 24 de dezembro a chamada celebração do Sol Invicto. Nesse dia, o sol ressurgia por algum tempo o que era interpretado como um sinal de esperança da chegada de uma nova estação e tempo de preparar a colheita. Para marcar o dia aconteciam grandes festas. O catolicismo transformou este dia na celebração do nascimento de Jesus, argumentando que ele é considerado o “Sol da Humanidade”.

Assim como o Natal várias celebrações de outras culturas foram incorporadas com novas narrativas. Na Páscoa, por exemplo, o ovo e o coelho são associados ao renascimento e fertilidade, mas eles estão no centro do culto à deusa Oster ou Eostre. De origem germânica e nórdica absorvida pela cultura anglo-saxã, essa deusa era celebrada na chegada da primavera no festival denominado Ostara, memos período, portanto, da celebração da Páscoa. Oster era considerada a dona da fertilidade, do amor e da renovação da vida.

Coelho e ovos são reminiscências do culto antigo à deusa Oster
Coelho e ovos são reminiscências do culto antigo à deusa Oster | Foto: Data: 19/03/2024 | Canva Divulgação

Uma das narrativas associadas ao seu culto apresenta a lebre como personagem central. Esse animal e o seu parente, o coelho, têm alta fertilidade e são os primeiros a aparecer logo que o inverno termina. Conta-se que durante uma celebração para a deusa, que vivia cercada de crianças, uma ave pousou em sua mão, mas resolveu se transformar em uma lebre para agradá-la. O animal acabou ficando muito triste por assumir outra forma. Ao notar a tristeza da lebre, as crianças pediram para Oster reverter a transformação, mas ela necessitou esperar até o início da primavera quando os seus poderes estariam fortalecidos. A ave agradeceu à deusa colocando ovos em sua homenagem. Tornou-se costume presentear as pessoas com ovos durante a sua festa.

Coelho e ovos são reminiscências do culto antigo à deusa Oster
Coelho e ovos são reminiscências do culto antigo à deusa Oster | Foto: Data: 19/03/2024 | Canva Divulgação

Na Idade Média, os ovos em países da Europa, como a Inglaterra, entraram na lista da abstinência do período da Quaresma. Em algumas igrejas, os ovos eram oferecidos como dízimo. Uma referência histórica aponta que no século XIII, o rei inglês Eduardo I (1239-1307) presenteou membros da sua corte com ovos folheados a ouro. O costume de colorir ovos nas mais diversas cores se manteve em várias partes da Europa.

Invasão da América popularizou o doce

A entrada do chocolate na festa tem relação com a invasão europeia do território americano a partir das chamadas grandes navegações, no século XVII. Bebida sagrada para povos originários da América Latina, como olmecas, maias e astecas, o chocolate caiu no gosto europeu.

Segundo reportagem da BBC, publicada em abril do ano passado, a empresa Fry’s, atualmente pertencente à fábrica de chocolates inglesa Cadbury, produziu as primeiras barras de chocolate sólidas na Inglaterra em 1847. O produto ainda era considerado um artigo de luxo, mas em 1873 apareceram os primeiros ovos de chocolate como uma forma de manter uma tradição de oferecer ovos in natura e depois pintados desde o período medieval.

Mas foi a partir do século XX que esse costume se popularizou, especialmente na década de 1960. Na Bahia, a chegada das grandes lojas de departamentos e redes de supermercados deu um impulso nesse tipo de comércio, especialmente nos anos 70. Atualmente não dá para pensar em Páscoa sem o consumo de chocolate e são muitas as variações. A confeiteira Vanessa Mara da Cacau Crioula cria diversos produtos, mas a partir do brownie.

“O brownie é diferente de um bolo, por exemplo, porque leva na sua massa o chocolate nobre e não tem fermento. É um pedaço de chocolate úmido e delicioso”, explica Vanessa Mara. A marca Cacau Crioula tem inovações como um ovo de Páscoa feito com brownie, além de bombons recheados no mesmo estilo, casquinhas do doce e até uma receita temperada com flor de sal. Há ainda o kit composto por uma bombinha para cobertura e tubo de confeitos destinados a deixar a criançada liberar a criatividade antes de se deliciar com o doce.

A confeiteira Vanessa Mara, que faz produtos de Páscoa à base de brownie, foi a convidada da edição especial do REC desta última semana
A confeiteira Vanessa Mara, que faz produtos de Páscoa à base de brownie, foi a convidada da edição especial do REC desta última semana | Foto: Data: 05/03/2024. Foto: Fábio Bastos | Mídias Digitais Grupo A TARDE

Essa presença do chocolate na Páscoa pode, aparentemente, ser indicada como apenas uma apropriação comercial. Mas, como acontece no encontro de culturas, as celebrações religiosas têm discurso às vezes uniforme, mas o que está em sua base é múltiplo. A associação entre práticas tão diferentes como o judaísmo, as celebrações tradicionais de antigas colônias do império Romano, criação de uma bebida por povos ameríndios originários e cristianismo levaram à incorporação de um poderoso elemento pela indústria. Agora, ao provar seu ovo de chocolate ou semelhante vale refletir sobre a alta carga de história e símbolos que ele carrega.

A confeiteira Vanessa Mara, que faz produtos de Páscoa à base de brownie, foi a convidada da edição especial do REC desta última semana
A confeiteira Vanessa Mara, que faz produtos de Páscoa à base de brownie, foi a convidada da edição especial do REC desta última semana | Foto: Data: 05/03/2024. Foto: Fábio Bastos | Mídias Digitais Grupo A TARDE

Confira as páginas de A TARDE sobre a Páscoa:

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Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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