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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 28 de outubro de 2023 às 7:00 h | Autor:

Coleções de A TARDE mostram luta por mais vagas nas universidades

Enem e vestibular: acesso ao ensino superior é pauta constante no âmbito do interesse público baiano

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Aplicação de provas envolvia uma 'maratona' para os estudantes
Aplicação de provas envolvia uma 'maratona' para os estudantes -

No próximo mês vai acontecer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no formato em que ele passou a ser utilizado para o ingresso nas universidades, inclusive as públicas. O Enem substituiu o vestibular e ampliou as possibilidades de acesso ao ensino superior. Na época do vestibular cada instituição adotava seu próprio modelo o que requeria adequação a provas com características diferentes. As altas concorrências e provas de até três áreas de estudo concentradas em um mesmo dia com aplicação no período de quase uma semana, como acontecia para ingresso na Universidade Federal da Bahia (Ufba), faziam da seleção uma experiência cansativa. Como prestação qualificada de serviço em um fenômeno cheio de nuances, A TARDE montava uma estrutura especial para o período da seleção que incluía reportagens e suplementos ao longo do ano, inclusive com resolução de provas de edições anteriores. Quando saía o resultado, o jornal passava a ser parte da memória de conquista da vaga, afinal, este era um dos principais meios de informação na era anterior à Internet.

Aplicação de provas ocorria em vários dias sequenciados
Aplicação de provas ocorria em vários dias sequenciados | Foto: 28/03/1998. Foto: Fernando Amorim | Cedoc A TARDE

As páginas com a lista de aprovação geralmente traziam um texto com informações sobre a matrícula, os documentos necessários e, por fim, os nomes de quem havia conquistado a vaga nos cursos. A importância dada ao exame que tinha alto grau de dificuldade para aprovação é resultado de uma característica histórica das universidades brasileiras e ironicamente em maior grau nas públicas: a educação formal, em um país que viveu processos como colonização e escravidão, foi iniciada com foco nas elites econômicas. Uma reportagem publicada em 1951 em A TARDE mostrou como apenas cinco anos depois da fundação da Universidade da Bahia, que mais tarde se tornou a Ufba, as poucas vagas disponíveis já assustavam uma parte considerável dos aptos a tentar o acesso.

Resultados eram publicados em listas afixadas nos murais de unidades das universidades baianas
Resultados eram publicados em listas afixadas nos murais de unidades das universidades baianas | Foto: 29/1/1998 - Shirley Stolze | Cedoc A TARDE

“De acordo com os dados que colhemos, a Universidade da Bahía já é pequena para receber o crescente contingente de candidatos que anualmente os colégios aprontam. Cursos com números de vagas limitadas, esse fato se torna, em muitos casos, motivo de desânimo a alunos, inclusive os descrentes que julgam ser o "pistolão" o natural "abre-te Sésamo" da vida universitária. Daí o raciocínio que vários estudantes fazem: - Se não tenho senão Deus para me ajudar, para que irei perder tempo e dinheiro comparecendo ao vestibular? A verdade, de modo geral, entretanto, não é essa. Pode ser que haja injunções para influir em certas aprovações, mas aqui na Bahia quando nada até agora jamais se teve notícia de exames escandalosos”. (A TARDE, 31/01/1951, p.10).

De acordo com a reportagem, o cuidado para garantir a lisura do exame em 1951 já contava com a medida de proibir na Faculdade de Medicina a participação em bancas examinadoras de professores que estivessem na carreira política. A principal conclusão da reportagem foi a necessidade de ampliação de vagas. Naquele período a futura Ufba tinha, segundo o texto, 500 vagas disputadas por cerca de mil estudantes.

A Faculdade de Medicina contava, em 1951, com 100 vagas, número que continuava fixo há muito tempo. Já o total de inscritos ficou em 261. Outros cursos também mantinham o protagonismo em alta procura: Odontologia, Direito e Engenharia. Mas, Farmácia, Filosofia e Jornalismo estavam em situação oposta: sobra de vagas em relação ao número de inscritos. Diante dos dados, a reportagem abordou como uma necessidade urgente a implantação da Universidade Católica do Salvador (UCSal).

Outro registro de resultados colocados em listas presas em murais
Outro registro de resultados colocados em listas presas em murais | Foto: Data: 29/01/1998. Foto: Shirley Stolze | Cedoc A TARDE

“A solução mais viável é de que venha quanto antes a Universidade Católica para abrir novos horizontes à instrução superior em nosso estado. A rigor, no momento, a única escola que poderia ser ampliada para aproveitar maior número de alunos é a de Direito, bastando para tanto que esta funcione em dois turnos, o que viria a duplicar as suas possibilidades”. (A TARDE 31/01/1951, p.10).

Transformações

Para Além das Cotas: A Permanência de Estudantes Negros no Ensino Superior como Política de Ação Afirmativa é o título da tese em Educação da professora Dyane Brito. Graduada em Ciências Sociais pela Ufba, ela é mestra em Ciências Sociais e Doutora em Educação pela mesma universidade. Professora e atual Diretora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Dyane Brito tem se dedicado a estudar as transformações nas universidades, especialmente as públicas, a partir de mudanças na forma de ingresso como o Enem no lugar do vestibular e adoção das políticas de ações afirmativas representadas principalmente pelas cotas para negras e negros, quilombolas, indígenas, dentre outros segmentos que historicamente tiveram seu acesso dificultado por conta de uma série de fatores.

Conferência de identidade dos candidatos era feita de forma manual
Conferência de identidade dos candidatos era feita de forma manual | Foto: 18/01/1998 - Rejane Carneiro | Cedoc A TARDE

“O vestibular era uma espécie de bicho papão em um período em que havia poucas universidades e, logo, poucas vagas. Se alguém quisesse, por exemplo, estudar na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) tinha que fazer o vestibular em Minas. Com o Enem já há a possibilidade de fazer o vestibular na Bahia e a partir da pontuação escolher a instituição desejada em qualquer lugar do país. A partir de 2003 começou o processo de implantação da reserva de vagas no ensino superior e mesmo as universidades que ainda não tinham adotado esse sistema passaram a ter algum tipo de bonificação para democratizar o acesso, como ter benefício para quem vinha de escola pública”, explica a professora Dyane Brito.

Em 2012, a Lei 12.711 regulamentou as políticas de ações afirmativas no sistema de ensino superior federal. Na última terça-feira, o plenário do Senado aprovou o Projeto de Lei 5.384/2020 que prevê para os candidatos cotistas a concorrência nas vagas gerais. O texto manteve o teor do que foi aprovado na Câmara a partir do projeto de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT-RS). O senador Paulo Paim (PT-RS), autor de outras iniciativas legislativas parecidas, como o Estatuto da Igualdade, foi o relator do projeto que alterou critérios socioeconômicos, como renda e formação em escola pública, além de inserir quilombolas entre os com direito à reserva somando-se a pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. O texto agora aguarda a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Além das conquistas legislativas, a ampliação das universidades, sobretudo as federais, fortaleceu as políticas de democratização do acesso ao ensino superior. A Bahia, por exemplo, há 18 anos recebeu a UFRB, após décadas apenas com a Ufba. A UFRB, além de ser a primeira das novas federais no Estado, adotou o sistema de multicampia, ou seja, unidades em cidades diferentes, como Cruz das Almas, Cachoeira, Santo Amaro, dentre outras. Isso favoreceu a interiorização do ensino superior ampliando as possibilidades de acesso. Além da UFRB, a Bahia recebeu a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), um campus da Universidade da Integração Internacional Luso Afro-Brasileira (Unilab), em São Francisco do Conde, e campis da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) em Juazeiro, Paulo Afonso e Senhor do Bonfim.

“Essas ações representaram uma mudança no cenário de acesso ao ensino superior público. Podemos dizer que o ensino superior no Brasil começou a ter outra cara com a entrada de indígenas, quilombolas, negras e negros, estudantes egressos de escolas públicas e com renda familiar de até um salário-mínimo e meio. E isso foi também fundamental para transformar a própria universidade no sentido de buscar estratégias para a permanência desses estudantes, de adaptar currículos e até rever seus métodos e teorias para incorporar novas perspectivas do conhecimento como as trazidas por uma liderança quilombola”, analisa a professora Dyane Brito.

Ela destaca as ações de permanência, como os auxílios para moradia, educação, transporte e aquisição de material didático que são ainda reduzidas do ponto de vista institucional diante da demanda, mas também as estratégias dos coletivos baseados na organização estudantil. “São muitas estratégias como dividir a alimentação, fazer os percursos em grupos, ou seja, há uma mobilização para garantir a permanência de quem entrou”, completa Dyane Brito.

A professora destaca que há necessidade constante da institucionalização dessa permanência com ampliação de medidas como implantação dos restaurantes universitário, das residências, mas essa democratização de acesso, mesmo com várias dificuldades, tem sido contínua. “O debate sobre as formas de ampliar esse acesso, sobretudo pelas ações afirmativas não foi pacífico, inclusive teve momentos de muita tensão, de dúvidas sobre o desempenho dos estudantes cotistas, mas fomos comprovando via vários trabalhos de pesquisa que o desempenho dos que ingressaram por cotas se manteve superior ao dos que ingressaram pelo sistema tradicional e a evasão de cotistas era igual ou muito mais baixa do que a de não cotistas”, avalia Dyane Brito.

Segundo a professora a avaliação é de que os estudantes que consideravam a universidade um sonho distante ou impossível estão compreendendo o quanto ela pode ser real além de inspirar outras pessoas com histórias de vida semelhantes.

Ainda é tímida, mas a transformação também está se dando no âmbito da docência com um aumento da presença de professoras e professores negras e negros, quilombolas, indígenas e transgêneros. Esse conjunto de fatores ampliou consideravelmente o número de jovens que podem ter a mesma sensação de alegria e novas possibilidades que a professora Dyane Brito experimentou ao consultar a lista de aprovação no vestibular da Ufba na edição de A TARDE de 5 de fevereiro de 1994. É a mesma em que está o meu nome, pois, por uma dessas coincidências nos encontramos agora por conta das nossas carreiras profissionais que aquela aprovação registrada em A TARDE foi fundamental para abrir caminhos.

A TARDE fez registros da trajetória gradual de digitalização do vestibular
A TARDE fez registros da trajetória gradual de digitalização do vestibular | Foto: Data: 02/01/1998. Foto: Rejane Carneiro | Cedoc A TARDE

Confira as páginas de A TARDE que mostram o movimento de luta da população baiana pela ampliação de vagas nas universidades:

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Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.

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