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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 11 de março de 2023 às 0:15 h • Atualizada em 11/03/2023 às 10:36 | Autor:

Comemoração do centenário de Mãe Hilda visibiliza luta pela educação

Fundadora do Terreiro Jitolu teve importância central para impulsionar os projetos sociais da associação

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Imagem ilustrativa da imagem Comemoração do centenário de Mãe Hilda visibiliza luta pela educação
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A importância de Mãe Hilda na fundação do Ilê Aiyê é uma história bem conhecida. Mas, no ano em que se comemora o centenário de seu nascimento há outras características dessa líder religiosa que dão a dimensão da sua importância como uma intelectual orgânica, ou seja, aquela que cria, provoca e assim promove a ação com outro tipo de exercício do conhecimento que não é o mesmo da academia, mas nem por isso menos potente. Da observação de que as crianças das imediações do terreiro passavam parte do tempo na rua porque a educação formal só era oferecida a partir dos sete anos ela resolveu transformar o barracão da casa religiosa em uma escola aberta para a comunidade. Duas de suas filhas- Hildelice, que a sucedeu no comando do Terreiro Jitolu, e Hildemaria, tornaram-se as professoras. Registros dessa trajetória de Mãe Hilda, para além da sua importância no que se tornou o Ilê, estão na coleção de imagens do Cedoc A TARDE.

“Na nossa família a gente aprende cedo que o conhecimento tem que ser compartilhado. É muito do que pensava a minha avó”, diz Valéria Lima, jornalista, mestra em Estudos Étnicos e Africanos e neta de Mãe Hilda. Filha de Dete Lima, que cuida da estética do Ilê Aiyê, desde a graduação Valéria Lima tem realizado pesquisas sobre as experiências políticas de mulheres negras em diferentes áreas sempre com sua avó como protagonista. Na dissertação intitulada Mãe Hilda Jitolu - A Trajetória de uma Líder Espiritual Baiana, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia (Ufba), sob a orientação do professor Jeferson Bacelar, a jornalista organizou e analisou a biografia da avó.

Atualmente, Valéria Lima, dentre outras atividades, é diretora executiva do Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, instalado em 6 de janeiro deste ano, no dia do centenário de nascimento de Mãe Hilda. Um dos objetivos do instituto é tornar a sua trajetória e de outras mulheres negras mais conhecidas, como também viabilizar e construir projetos de geração de renda para esse segmento que enfrenta diversas vulnerabilidades.

Esse é mais um indício de como as lideranças de terreiro, especialmente as mulheres, historicamente contribuíram não apenas para garantir a continuidade e o direito de prática de uma religião perseguida de várias formas, mas também para transformar o espaço religioso em potência de cidadania.

E a conexão prosseguiu com os mais variados segmentos do movimento negro investindo na educação como uma poderosa ferramenta para auxiliar na destruição das amarras deixadas pelo racismo em suas variadas faces.

No livro O Movimento Negro Educador, Nilma Lino Gomes, doutora em antropologia e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostra como as mais variadas organizações dos movimentos negros brasileiros, ao longo do tempo, deram uma atenção especial à educação formal.

Matriarca comandava rito de saída do Ilê Aiyê
Matriarca comandava rito de saída do Ilê Aiyê | Foto: Rejane Carneiro | Cedoc A TARDE

Estratégia

O trabalho da pesquisadora, que foi reitora para a instalação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), instituição que tem um campus no município baiano de São Francisco do Conde, e ministra de Promoção da Igualdade Racial no governo de Dilma Rousseff aponta para a compreensão do ativismo de que era necessário ocupar espaços formais, mas com estratégias que surgiram da experiência no cotidiano.

É interessante como isso tem se repetido no universo dos terreiros de variadas formas. No Ilê Axé Opô Afonjá, a preocupação de Mãe Aninha de que os filhos de Xangô, o orixá que rege o espaço religioso, precisavam estar aos seus pés também de anel no dedo resultou na escola que leva seu nome.

A escola Eugênia Anna dos Santos tem um projeto pedagógico inspirador criado pela doutora em Educação Vanda Machado que é sacerdotisa da Casa.

A estratégia de Mãe Hilda foi utilizar a rede de visibilidade que já possuía como liderança religiosa e a do Ilê Aiyê. Um dos apoios que ela garantiu, segundo Valéria Lima, foi do professor Edivaldo Boaventura (1933-2018), secretário de educação do Estado da Bahia por duas vezes (1970 a 1971 e 1983 a 1987). Boaventura foi também diretor geral de A TARDE.

“Minha avó não frequentou a escola, mas sempre passou para os filhos e depois para os netos o quanto era importante ter educação formal. E depois ela quis proporcionar isso aos vizinhos, ou seja, à comunidade onde estava. Ela foi construindo como podia, aproveitando a presença de autoridades que circulavam o Ilê Aiyê, como o professor Edivaldo Boaventura. Com isso ela foi fundamental para a criação dos projetos sociais do Ilê Aiyê, pois a escola passou a ter a inserção dos diretores, que iam também em outras escolas, ou seja, a Escola Mãe Hilda fez a inserção pedagógica ir crescendo”, acrescenta Valéria Lima.

Em épocas em que a educação integral ainda é um desafio, as crianças atendidas nos projetos sociais mantidos pela associação cultural podem participar de atividades no turno oposto ao que estudam. E os cursos vão além de percussão, dança e outras atividades mais relacionadas ao Carnaval. Tem cursos de estética com um cuidado especial e já implantado muito antes do debate sobre diversidade: o de reaproveitamento de material de costura.

Ministrado por Dete Lima, o curso tem equidade de gênero. “Meninos e meninas aprendem a costurar, a bordar. Além disso há a preocupação com toda uma formação em cidadania”, explica Valéria Lima.

Dos bailes ao Jitolu

Hilda Dias dos Santos nasceu em 6 de janeiro de 1923 na Quinta das Beatas, localidade da região de Brotas hoje conhecida como Cosme de Farias.

Ainda criança mudou para a Caixa D’Água até que aos 11 anos foi morar na Rua do Curuzu, a casa onde está o Terreiro Jitolu e de onde sai o desfile do Ilê Aiyê no sábado de Carnaval. O imóvel é também a sede do instituto que a homenageia. Na juventude adorava dançar. Para cada baile aos sábados mandava fazer um vestido.

“Uma vizinha nossa que está com 106 anos e que a gente chama de Tia Luzia era quem costurava os vestidos. A cada baile ela ia com um modelo diferente. Aos 19 anos ela já namorava com meu avô pois eles trabalhavam juntos em uma fábrica de vassoura”, relata Valéria.

Mais ou menos nesse período dos bailes, Hilda Santos passou a ver piorar um mal-estar que até a fazia desmaiar. Até o médico disse que era melhor procurar assistência espiritual, pois fisicamente não aparecia a causa.

Mesmo com uma resistência inicial da jovem preocupada em não poder fazer atividades como frequentar os bailes durante o período e outras regras, ela fez a obrigação no candomblé.

A primeira foi na tradição angola que cultua os inquices. Ela foi iniciada para a divindade Obaluaê, senhor dos mistérios sobre o campo da saúde e especialmente do controle de doenças infecciosas e de pele. Pouco tempo após a sua iniciação, seu pai de santo faleceu. Ela ficou um tempo sem frequentar outro terreiro.

“Depois de muitos anos de casada ela finalmente engravidou do primeiro filho que é meu tio Vovô. No começo ela imaginou que estava com o retorno dos problemas que tinha antes de fazer santo e foi procurar Mãe Tança que fez as obrigações para ela, mas na tradição jeje savalu. Tanto que o santo dela sempre esteve na casa que se transformou no terreiro sob a sua liderança como indicou Mãe Tança que era a sua missão”, acrescenta Valéria Lima.

No candomblé baiano há quatro grandes tradições que dão a direção da herança étnica dos terreiros e são conhecidas pelo termo “nação”: angola, que cultua os inquices e tem elementos herdados de civilizações que vieram do atual território de Angola e parte do Congo; ketu e ijexá, que tem o culto a orixás e são herança dos grupos vindos da atual Nigéria; e Jeje. Esta tradição tem elementos herdados dos povos que vieram do atual Benim e cultua os voduns. Nela há dois segmentos: mahi e savalu. Essa última é a seguida pelo Jitolu.

O Jitolu foi fundado por Mãe Hilda em 1952. E a sua liderança religiosa se estendeu para outras ações ligadas aos movimentos negros. Em 1988, por exemplo, o Ilê participou do rito fúnebre para Zumbi dos Palmares, na Serra da Barriga, em Alagoas.

A Fundação Palmares e ativistas de referência dos movimentos negros, como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez estiveram presentes na cerimônia, como destaca Valéria Lima.

“Como mulher negra e neta dela eu fico feliz de poder resgatar a sua história e mostrar para as próximas gerações quem foi Mãe Hilda e o que ela fez para ser tão importante. O Instituto Mãe Hilda Jitolu tem a missão de contar a história dela e de outras mulheres negras”, acrescenta a jornalista.

Memória, realmente, tem sido um instrumento poderoso não apenas para dar continuidade. Ela também ensina sobre estratégias de se fazer política que nascem em ambientes como um terreiro de candomblé, o que demonstra a potência cultural que eles representam movidos à inteligência, especialmente, do poder feminino.

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE

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