Dia da Consciência Negra: há 20 anos, A TARDE lançou primeiro especial
Caderno abriu caminho para cobertura especializada e virou uma referência em conteúdo antirracista

A edição de A TARDE de 20 de novembro de 2003 trouxe encartado o especial intitulado Qual a sua cor? A vida em um mundo racista. Com 12 páginas, o caderno, como costuma ser chamado um conjunto de reportagens que seguem uma linha temática, abordou o quanto a cor da pele mexe com o imaginário dos baianos. A boa recepção entre o público por meio da constatação de que a tiragem dos exemplares da edição esgotou nas bancas iniciou uma trajetória encerrada em 2015 e com premiações no campo do jornalismo. O início dessa abordagem com uma especialização mais aprofundada nos temas étnicos raciais está completando 20 anos.
A história dos “cadernos do 20”, a forma também usada para denominar o projeto na redação de A TARDE, começou com a proposta de uma pauta sobre como se dava o racismo na capital baiana, proposta em abril de 2003. Naquele período, o jornal estava passando por uma reforma editorial sob a coordenação do jornalista Ricardo Noblat. Como eu havia participado de uma experiência criada por ele anteriormente, a Editoria de Verão, fui escolhida para desenvolver a pauta sugerida pela jornalista Daniela Silva que era, na época, da editoria de Economia e que também escreveu para o caderno.
A ideia de Ricardo Noblat era que eu fosse ao lado dos jornalistas Gilson Jorge e Manuela Barros em shoppings e condomínios da cidade realizar uma experiência sobre a comparação de tratamento dispensado a pessoas negras e pessoas não negras. Com o resultado, Ricardo Noblat decidiu que uma ou duas reportagens não bastava, mas um conjunto delas.
O projeto ficou parado até que em meados de outubro foi retomado para ser lançado no dia 20 de novembro sob a coordenação de Olenka Machado, que era a editora- coordenadora da editoria de Salvador, com edição de Marlene Lopes e projeto gráfico de Iansã Negrão e Ana Clélia Rebouças, que fez também a diagramação. O caderno contou com um ensaio fotográfico cedido por Mário Cravo Neto.

Temas
Com a ajuda de Albergaria desenvolvi o projeto editorial e a nossa avaliação foi a de que era necessário escolher um tema ou a abordagem ficaria repetitiva caso prosseguisse em anos seguintes. Decidimos debater a importância da cor no imaginário dos baianos e as origens da centralidade da raça nas discussões sobre a formação cultural do Brasil.
No caderno contamos a experiência vivida por mim, Manuela Barros e Gilson Jorge em um shopping da cidade com o desafio de escrever em primeira pessoa. Esse é um exercício difícil no jornalismo tido como objetivo, que é a característica mais recorrente do desenvolvido no Brasil. Os textos, nessa lógica, precisam aparentar o distanciamento narrativo de quem escreve com base em apresentar diversas versões. O desafio que nos foi proposto era relatar o que apuramos não apenas na posição de quem contava a história, mas também de quem a havia sentido literalmente na pele.
Além dos textos em primeira pessoa, o caderno abordou as chamadas teorias racialistas e seus desdobramentos para a sedimentação do racismo cordial, que é a marca brasileira. Isso levou a subterfúgios para o distanciamento das pessoas de uma associação com categorias de cor consideradas negativas, como preta. Assim surgiram os termos relacionados na metodologia aberta do IBGE como “azulão”, “cor de burro quando foge”, dentre outros. Essas categorias, a partir de uma sugestão de Albergaria, foram o ponto de partida para a realização de uma enquete na Praça da Piedade, que é local da passagem de muita gente com perfis diversos. A pergunta era apenas “Qual é a sua cor?”.
Essa experiência eu fiz ao lado do repórter fotográfico Antônio Queirós e teve resultados interessantes, o que levou à decisão editorial de incluir trechos dessa enquete ao longo das páginas. Outros temas abordados foram as várias cores que aparecem nas famílias baianas em uma mesma geração por conta da miscigenação, o racismo que persegue inclusive quem já alcançou status e fama com o depoimento do ator Lázaro Ramos, do advogado Edvaldo Brito, da chef Dadá, dentre outras fontes. A então iniciante política de ações afirmativas como as cotas nas universidades foi abordada, além de outros temas.
Contextualização
Embora o caderno não tenha surgido por esse motivo, analisando a sua publicação 20 anos depois percebo que foi uma feliz coincidência. Em 2003, o Estado brasileiro, de forma oficial, iniciava uma política no campo do combate ao racismo. Uma dessas iniciativas foi a criação da Secretaria de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (Seppir). Sob a gestão de Matilde Ribeiro, doutora em Serviço Social e hoje professora da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), a Seppir tinha status de ministério com a missão de assessorar a presidência da República a elaborar as políticas para o combate ao racismo na articulação com outros ministérios.
Foi também o ano da publicação da Lei 10.639/2003 que estabelece o ensino de História da África e Cultura Afro-Brasileira nas escolas do país. O caderno de 2003 e os seguintes passaram, inclusive, a servir como material didático especialmente a partir de 2005 quando na gestão da hoje deputada estadual Olívia Santana (PcdoB-BA) na Secretaria Municipal de Educação a Lei passou a ser formalmente cumprida tornando Salvador a primeira capital do país a adotar a legislação de forma prática.
Diante das informações que chegavam à redação sobre o uso do conteúdo dos cadernos em sala de aula, a partir de 2008, com o especial Arte da Resistência, a doutora em Educação, Josiane Clímaco, passou a elaborar desde o início do desenvolvimento da pauta de cada caderno as dicas pedagógicas para aplicação do conteúdo nas escolas. Ao longo dos anos seguintes, as sugestões da professora Josiane Clímaco passaram a incluir outros recursos dos especiais como infografias e fotografias.
Reconhecimento
O Produtores de Owó, caderno de 2009, que discutiu os negócios originados a partir da cultura afro-brasileira, recebeu o Prêmio Banco do Nordeste. O que abordou a formação e importância dos sacerdotes músicos do candomblé denominado Os homens que chamam os Deuses pra Terra venceu a edição 2013 do Prêmio Abdias Nascimento. Essa premiação era nacional e especializada no jornalismo étnico-racial.
Mas outros chegaram às finais de prêmios nacionais. Foi o caso do primeiro, indicado em 2004 para o Prêmio Imprensa Embratel na categoria Nordeste assim como o de 2006 intitulado Sou de Santo e Raça.
Em sua trajetória de 13 anos, os especiais do 20 de novembro abordaram aspectos socioeconômicos da população negra; infância, movimentos negros organizados, capoeira, futebol, dentre outros temas. Foram muitas e muitos colegas das mais variadas áreas que participaram para além da reportagem, como fotojornalistas, designers, profissionais da publicidade e do marketing. Eu tive a sorte de integrar a equipe dos especiais da primeira até a última edição em 2015 e acompanhei como eles foram importantes para a educação e formação no jornalismo étnico-racial de todas e todos nós envolvidos em sua produção. O pioneirismo dessa abordagem em um jornal comercial e os seus desdobramentos foram, inclusive, objetos de pesquisa acadêmica que resultou na dissertação intitulada Ebó de Palavras- uma leitura afirmativa das páginas da Consciência Negra em A TARDE (BA, 2003 – 2015) realizada pelo jornalista Hugo Mansur para a obtenção do seu título de mestre no Programa de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos vinculado à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (Pós-Afro-FFCH- Ufba).
Outra importante informação sobre Qual a sua cor? A vida em um mundo racista: na véspera da sua publicação, após a reunião interna que era chamada de “fechamento” para dentre outras providências eleger quais reportagens seriam anunciadas na capa do jornal, o então secretário de arte, Sérgio Fujiwara, decidiu que o especial ocuparia o espaço quase total da primeira página. Assim, uma das fotos do ensaio de Mário Cravo Neto foi ampliada por toda a capa e o título acima da imagem anunciava em letras enormes e na cor preta: Racismo. O crime sobrevive. Foi uma chamada forte assim como era a nossa necessidade de denunciar a persistência das práticas racistas além de mostrar que o jornalismo pode ser uma ferramenta importante no combate a esses e outros resquícios da história de dor, mas também de resistência às consequências do colonialismo.
VEJA AS PÁGINAS DO CADERNO: