Dono da Terra mantém-se como principal referência de culto a Caboclos
Livro de Jocélio Teles dos Santos foi lançado há 28 anos
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Após 28 anos do seu lançamento, O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, de autoria de Jocélio Teles dos Santos, doutor em antropologia e professor titular da Universidade Federal da Bahia (UFBA) continua leitura obrigatória. Resultado da sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) a partir da ampliação da pesquisa científica realizada durante a sua graduação em Ciências Sociais, o texto, em meio ao cuidado com o levantamento de dados, sejam teóricos ou depoimentos, consegue apresentar de forma acessível algo tão complexo como é o Caboclo, um ente que transita entre a literatura, a política e a religião, principalmente em meio à maior festa cívica baiana: o Dois de Julho. A presença desse chamado “Dono da Terra”, em uma síntese do que ele unifica em suas muitas faces fica patente nas centenas de imagens sobre as suas variadas representações nas coleções do acervo do Cedoc A TARDE, por exemplo.
A categoria “Caboclo” nos arquivos do Cedoc, em sua maioria, tem referências vinculadas às estátuas que são levadas no cortejo do Dois de Julho. Mas eis que em meio a essas coleções aparecem o monumento em homenagem a ele instalado no Campo Grande e sua representação no ambiente de um terreiro ou em espaço público, especialmente no Parque São Bartolomeu.
“Representação complexa que combina tanto elementos intrínsecos ao próprio sistema religioso afro-baiano, quanto valores “indígenas” e regionais- e porque não dizer nacionais- externos a esse mesmo sistema, o Caboclo do candomblé baiano explicita visões contidas na sociedade abrangente acerca do elemento autóctone”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, p.12).
Ao longo dos seus capítulos, o livro apresenta questões como a delicadeza do termo de referência sobre o que seria um candomblé de Caboclo, os ritos destinados a este culto como o abate ritual de animais; as chamadas sessões de giro, como acontece na umbanda, e, especialmente o Dois de Julho.
“Em 2 de Julho de 1823, a Bahia tornou-se independente do jugo português com a entrada, na cidade de Salvador, do Exército Libertador vindo do Recôncavo baiano. Um ano após esse fato, o povo- em sua maioria negros e mestiços- foi às ruas comemorar”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, p.31).
Em cima de uma carreta remanescente da guerra e enfeitada com folhas colocaram um descendente de indígenas e foi percorrida parte do caminho preservado no atual cortejo. Em 1826, o indígena de carne e osso, como se conta, foi substituído por uma estátua. Vinte anos depois, em uma tentativa de apaziguar a iconografia guerreira do Caboclo atacando o dragão que representava Portugal, o tenente general José de Souza Soares de Andrea, um português que havia se naturalizado brasileiro e era o comandante de armas na Bahia, resolveu trocá-la por uma feminina para simbolizar Catarina Paraguaçu. Assim, o guerreiro seria substituído pelo ideal da “mãe brasileira” que, ao se unir ao português Caramuru teria feito dos dois povos um só apagando a contribuição africana na formação do povo brasileiro, inclusive.
“Entretanto diversos veteranos da Independência se reuniram e manifestaram seu descontentamento com as disposições tomadas. Uma comissão se dirigiu ao Presidente da Província e, depois das explicações, um exaltado declarou: “Olha, o Caboclo pertence ao povo, não é do governo. Ele sai nem que tenha que morrer alguém”. A solução encontrada foi o desfile tanto do Caboclo quanto da Cabocla do presidente, que foi assim retratada pelo poeta baiano Francisco Moniz Barreto: “Essa cabocla engraçada/que traz a face tostada/Dos beijos que dá-lhe o sol”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, pp 33-34).
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Política e fé
Essa conhecida característica cívica não foi, entretanto, o que fez surgir em Jocélio Teles dos Santos a inquietação científica sobre o Caboclo. O que lhe despertou a iniciativa de desenvolver uma pesquisa foi o aspecto da religiosidade que, à medida que avançou, confirmou estar também associada, ao Dois de Julho. Mas a presença constante nos candomblés, sobretudo os de tradição angola, era algo que sobressaía de forma significativa.
“Um dia recebi uma mensagem enfática de um pai de santo com o questionamento do porquê não pesquisar o Caboclo no universo dos terreiros. A sua existência nos terreiros de nação angola era muito explícita”, aponta Jocélio Teles dos Santos.
Após a conclusão do projeto de pesquisa no âmbito da graduação, o antropólogo a ampliou para o seu mestrado na USP. Em 1995, a editora Sarah Letras, na época coordenada por Antônio Rizério, e que tinha como membros do seu conselho editorial intelectuais como Jorge Amado, Caetano Veloso, Darcy Ribeiro, Eduardo Viveiros de Castro, João José Reis, Muniz Sodré, dentre outros, publicou o livro, atualmente com tiragem esgotada, o que dá uma dimensão da boa aceitação que ele conquistou em vários espaços.
É compreensível o sucesso do livro, afinal Jocélio Teles dos Santos cumpre ao longo das páginas o seu principal objetivo: dar conta de um fenômeno único que é a reprodução nas ruas do que chama de o “mito vivido” e que conta muitas histórias: o protagonismo do povo na Guerra da Independência; resistência indígena e um pacto para além do mundo físico entre africanos e os donos do território onde se formou o Brasil.
“É o que eu chamaria de sacralização da política, obviamente relacionada à figura do Caboclo e posteriormente quando se estabelece nos anos 40 do século XIX a introdução do carro da Cabocla. Essa sacralização pode ser feita no final do desfile ou durante à tarde, pós desfile, quando adeptos das mais variadas religiões depositam pedidos relativos aos seus desejos seja em relação à materialidade, como o aspecto financeiro, ou sentimentais, no espaço público. O Caboclo apresenta a possibilidade de que a gente entenda o que é uma interrelação da política com o âmbito do sagrado”, acrescenta Jocélio Teles dos Santos.
Antiguidade
A relação dos Caboclos com os ritos dos terreiros foi algo que se fortaleceu em espaços marcados por uma estrutura hierárquica bastante rígida e em meio aos debates sobre uma autenticidade africana. Esta foi colocada em contraposição a uma característica brasileira marcada pela mistura de elementos indígenas e até de devoções do chamado catolicismo popular e, portanto, de base europeia, especialmente portuguesa e espanhola.
“Os candomblés já com sua hierarquia conhecida hoje aparecem na primeira metade do século XIX. Encontrei uma notícia do final dos anos 80 do século XIX dando conta da existência de um terreiro para uma Cabocla. Não há mais detalhes, infelizmente, mas a gente pode inferir que a presença do Caboclo era algo já presente no universo dos terreiros de Salvador há muito tempo”, aponta Jocélio Teles dos Santos.
Essa presença antiga não significou tranquilidade na análise sobretudo acadêmica. Os estudos clássicos, sobretudo os de Édison Carneiro, mostram como a presença do Caboclo aparecia como um contraponto a uma espécie de reconhecimento de certa “pureza africana” para quem não permitia o seu culto. Os candomblés que cultuavam Caboclos eram os heterodoxos, ou seja, misturados, em contraponto aos ortodoxos, que estariam filiados a uma preservação apenas de ritos de origem africana.
“Édison Carneiro chega a definir os cultos aos Caboclos como algaravia. Essa tensão atravessou a primeira metade do século XX, mas atualmente os terreiros, em sua maioria, cultuam os Caboclos de modo aberto, embora alguns o façam apenas na intimidade, ou seja, de forma reservada”, acrescenta Jocélio Teles dos Santos.
Os Caboclos, ao seu modo, venceram mais uma guerra ao se imporem como parte de um panteão que perpassa os variados segmentos das religiões afro-brasileiras, como Candomblé, Umbanda, Jarê, dentre outras que inclusive não se encaixam nas categorias mais clássicas. Além disso, além dos indígenas, esses Encantados sacralizaram ofícios como o de vaqueiro, por meio de Boiadeiro, e das águas, nas apresentações de Martim Pescador e outros marujos.
“A partir de elementos presentes na simbologia afro-baiana, construiu-se a imagem de um autóctone que, se por um lado espelha, assimila e reproduz valores ditos oficiais, também reelabora esses valores, dando-lhes uma feição própria: o autóctone deixa de ser aquele que não se deixou dominar no processo histórico brasileiro para representar, na sua gama de significados, o “dono da terra”. Desse modo, o candomblé recria, a partir de elementos próprios, um índio que a sociedade brasileira imagina conhecer. Num processo para o qual a Independência da Bahia (com a consequente ascensão do Caboclo, que é seu símbolo por excelência) muito contribuiu, construiu-se essa representação multiforme em que a referência básica é o índio, mas que nele não se esgota, pois inúmeros são aqueles Caboclos que se diz provirem de além mar”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, p.147).
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE
Para saber mais: O Dono da Terra - O Caboclo nos candomblés da Bahia-Jocélio Teles dos Santos, Editora Sarah Letras, 1995.
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