Encontro de culturas deu diversidade a culto de São Cosme e São Damião
Elemento central, o caruru é uma prática das religiões afro-brasileiras

Uma sequência de imagens de uma vasta coleção pertencente ao Cedoc A TARDE mostra elementos relacionados ao culto a São Cosme e São Damião. Celebrados como adultos na Igreja Católica, no dia 27 de setembro, por conta do encontro entre o catolicismo e elementos das religiões afro-brasileiras eles passaram a ser cultuados como crianças. Além disso, recebem homenagens com a comida votiva destinada aos Ibejis, Vunjis e erês das tradições afro-brasileiras, que são deuses e encantados com comportamento infantil.
Uma das fotografias mostra crianças reunidas nas imediações da Igreja de São Cosme e São Damião, localizada na Liberdade. Esta é a única sede de paróquia consagrada aos santos em Salvador. Na imagem os meninos estão agitados para alcançar doces que são jogados para o alto. A imagem é da década de 1990.

Outra foto mostra meninos em volta de um alguidar onde está o conjunto de alimentos que a gente chama de caruru e que inclui o homônimo da celebração feito à base de quiabo. Os meninos estão comendo com o uso das mãos no rito que é conhecido como “balbudia” ou “babudia”, uma expressão derivada de balbúrdia. Realmente, enquanto comem, há muita gritaria e disputa especialmente pelos pedaços de galinha. Esse rito, com registro realizado em 2000, é acompanhado de cantigas especificas como a que informa: São Cosme mandou fazer/Duas camisinha azul/ no dia da festa dele/São Cosme quer caruru/Vadea Cosme, vadea.
Um comerciante mostra, sorridente, os ingredientes para o caruru, especialmente as garrafas com azeite de dendê em outra fotografia. Há destaque para os balaios com camarão e quiabo, além de uma balança à direita. A imagem é de 1989 e aponta para o intenso movimento, que se tornou comum, nas feiras e mercados durante todo mês de setembro.



A tradição da realização do caruru é um dos mais fortes motores da economia baseada na cultura afro-brasileira. São Cosme São Damião e seus correspondentes nas outras tradições religiosas, na condição de meninos, são considerados patronos da prosperidade e especialistas na solução de problemas que afetam a saúde. Dessa forma eles têm muitos devotos que impulsionam o comércio para cumprir o mais importante rito desse culto: oferecer a comida votiva, mesmo que seja apenas em ambiente familiar ou a distribuição das quentinhas para os sete meninos.
Uma imagem de 2002 mostra duas mulheres manipulando os ingredientes que vão servir de base para o caruru. Uma cuida de limpar o camarão enquanto a outra corta os quiabos. Esse tipo de interação é muito comum nas casas ou instituições que oferecem o caruru. A reunião costuma ser um aquecimento para a festa mesmo que ela seja mais restrita, pois enquanto se retira as cascas do amendoim, da castanha, dentre outras providências, predomina um ambiente lúdico de conversa, lembranças de histórias e até cantigas.


Diversidade
A composição do caruru, tradição presente por quase todo o território baiano, tem algumas variações regionais na composição do prato. Na capital e no recôncavo ele é servido com uma fartura de alimentos: caruru, vatapá, galinha de xinxim, arroz, feijão preto, acarajé, abará, batata doce, inhame, ovo, farofa de dendê, feijão fradinho, banana frita, pipoca, milho branco, cana e rapadura.
Já em outras regiões, como no Piemonte do Paraguaçu, contexto que conheço de perto, são apenas quatro alimentos: caruru, vatapá, arroz e galinha de ensopado. Alguns têm feijão de corda.
O preparo para a base do caruru e do vatapá passa por algumas variações regionais. Em Salvador e no recôncavo é mais comum o uso de farinha de pão. Já em outras regiões, especialmente aquelas conhecidas como sertões, a farinha de mandioca é que costuma ser misturada ao amendoim, à castanha e ao camarão antes do processo de moer os ingredientes.
Isso ocorre por conta da disponibilidade ou dificuldade para encontrar os produtos. O camarão, por exemplo, é difícil de ser encontrado no interior da Bahia. O disponível costuma ter um tamanho menor do que o vendido na capital. Em alguns casos, no passado, era usado o chamado “de lagoa”, que tem um tamanho reduzido. Outro hábito em algumas regiões, como na Chapada Diamantina e no Piemonte do Paraguaçu, é reforçar o quiabo com folha de bredo. Por isso ela é também conhecida como “caruru”.
Há variação também na celebração. Na capital monta-se a Mesa dos Sete Meninos e em seguida começa a distribuição da comida. Na região do Piemonte do Paraguaçu a celebração do caruru pode ter dois formatos. O que é celebrado em casa particular, geralmente, tem a Ladainha de São Cosme e São Damião, a Mesa dos Sete Meninos e a distribuição.
Mas, nos espaços de prática de religiões afro-brasileiras, tem ladainha, a Mesa dos Sete Meninos ou não, e um samba. Por isso uma das formas de identificá-lo é “Caruru de Samba”. Essa é a senha para marcar que é possível durante o samba, acompanhado de viola, pandeiro, e os tambores, que têm um formato mais arredondado que os atabaques de candomblé, cheguem os Encantados, como os Caboclos, mas também os que apresentam hábitos próprios das crianças, os chamados “Cosminhos”.
Herança múltipla
As variações e diversidades de formas de culto são resultado do encontro de culturas. Na celebração a São Cosme e São Damião estão elementos do catolicismo e de heranças africanas. Nessa associação, o catolicismo foi fortemente influenciado por estas últimas. Um exemplo: segundo a tradição católica, Cosme e Damião eram irmãos, mas não necessariamente gêmeos. Portanto, nessa religião eles são adultos. Além disso, santos católicos não costumam receber comida como agradecimento. Mas, mesmo católicos praticantes os cultuam como meninos e oferecem caruru como pagamento de promessa, geralmente, para agradecer por graças alcançadas contra doenças.
Já os Ibejis, da tradição ketu, e os Vunjis, do candomblé angola, são divindades crianças e gêmeas. Os erês, presentes também na umbanda, têm comportamento infantil. As comidas votivas para esse grupo de deuses e encantados é o que passamos a chamar de caruru, mas também ocorre a oferta de doces. Assim como os santos católicos, eles têm sob a sua proteção a conservação da saúde e distribuem prosperidade.
Na tradição ketu, a herança dos povos de língua iorubá, também chamados de nagôs, e que são originários da região onde está a atual Nigéria, os Ibejis são filhos de Iansã, senhora dos ventos, mas também patrona dos mercados, e de Xangô, o orixá da Justiça. Eles são apontados como gêmeos, mas podem chegar a três, daí a presença de Idowo, que no Brasil ficou também conhecido como Doum, e até nove.
A Nigéria é um território ainda hoje com alta taxa de gemeralidade, ou seja, ocorrência de gêmeos. Já houve casos de gravidez de sétuplos sem tratamentos da área de reprodução assistida. Segundo alguns estudos, a dieta com forte presença de tubérculos como o inhame pode ter contribuído para essa característica da Nigéria. O inhame tem propriedades que passaram a interessar à área de ginecologia, especialmente no tratamento de sintomas da menopausa, Tensão Pré-Menstrual (TPM) e para tratamentos de estímulo à gravidez, pois possui, dentre outras propriedades como o combate às inflamações, a indução para a produção de hormônios.
Em culturas, como as do povo de língua iorubá, mulheres que têm gêmeos são cercadas de cuidados, pois são consideradas pessoas especiais e dotadas de força mágica por reproduzir em seu corpo um milagre observado apenas em algumas relações do mundo natural, como o sol e a lua, que se alternam para marcar dias e noites. Em seu livro Cosme e Damião- o culto aos santos gêmeos no Brasil e na África, o antropólogo Vivaldo da Costa Lima (1925-2010) mostrou essa relação entre santos católicos e a absorção de diversos elementos das tradições de base africana em seu culto. A Bahia, portanto, tem sorte em ser um território de guarda dessas tradições.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE.