Festa de São Nicodemus inicia o calendário do verão de Salvador
Próxima segunda será realizada a comemoração em homenagem ao padroeiro dos portuários

Após uma pausa de dois anos devido à pandemia, a Festa de São Nicodemus, padroeiro dos portuários está de volta esse ano. Ela vai acontecer na próxima segunda-feira, dia 27, nas dependências do Porto de Salvador. É uma chance da festa que já foi o marco de abertura do verão baiano, segundo reportagens de A TARDE publicadas em 1978 e 1982, voltar a ter essa condição. Um minidoc sobre a Festa de São Nicodemus, veiculado na edição desta semana do canal REC, outro dos projetos no campo de memória do Cedoc A TARDE, iniciou o especial de Verão que será seguido também nesta coluna.
Em Salvador, o início do verão no calendário mágico, ou seja, aquele relacionado a comemorações com base religiosa convive com o oficial. A estação marcada pelo sol mais forte e proliferação das celebrações de largo por conta das festas para santos católicos, mas profundamente entrelaçadas a elementos das religiões afro-brasileiras, começa muito antes do marco utilizado para essa estação no hemisfério sul que é 21 de dezembro. A Festa de São Nicodemus foi durante algum tempo considerada a largada do período de verão soteropolitano.
“A Festa de Sâo Nicodemus do Cachimbo, padroeiro dos trabalhadores das Docas e do Cais do Carvão, marcará, amanhã, a abertura oficial do ciclo de festas populares da Bahia, que terá prosseguimento, em dezembro, com os festejos de Santa Bárbara, de Nossa Senhora da Conceição — padroeira da Bahia — e da Boa Viagem”. (A TARDE 27/11/1978, p.2).

A partir de 2001, o Porto de Salvador teve que se adequar, de forma mais rígida, às normas internacionais de segurança devido aos atentados terroristas ocorridos nos EUA em 11 de setembro daquele ano. A festa acabou ficando em ambiente restrito, o que diminuiu a sua visibilidade.
Mas, atualmente, há vontade e empenho da comissão responsável pela Festa de São Nicodemus, integrada por servidoras como Marlene de Jesus e Rita Mota, e da direção da Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba). O diretor empresarial e de relação com o mercado, José Demétrius Silva Moura, que é graduado em filosofia e mestrando em História está integrado a esse esforço. “Queremos voltar a ver a Festa de São Nicodemus alcançar a importância que já teve nesse calendário de celebrações do verão baiano”, acrescenta o diretor.

Narrativa mágica
Uma descrição detalhada da origem da Festa de São Nicodemus foi feita por Antônio Monteiro (1918-2011), guia de turismo, folclorista e membro atuante de comissões para organização das festas de largo baianas, especialmente a do Bonfim, em artigo publicado na edição de A TARDE de 26 de novembro de 1966. Neste texto, Antônio Monteiro situou a festa como resultado da articulação de trabalhadores do chamado Cais do Carvão no âmbito de uma sociedade secreta criada para diversão. A associação foi denominada Sociedade do Cachimbo.
“Entre a fuzarcaria do samba, houve uma pausa, quando surgiu a idéia de se realizar, ali mesmo, uma sociedade que tomou o nome de sociedade do cachimbo. O seu idealizador anunciara logo, que todos os presentes eram considerados sócios fundadores, por obrigação, sob pena de incorrerem numa multa de cerveja. Originou- se, assim, o nome da sociedade quando todos rodopiando em torno de um bolo de barro em forma exótica de uma disforme figura que a transformaram num cachimbo, simbolizado no cachimbo "inglês" ora usado pelo seu idealizador. A sociedade formada deste motivo, apesar de curta duração, teve seu regimento à base de exigências curiosas: obrigava o comparecimento às reuniões, que cada sócio levasse um cachimbo de barro, cuja falta implicaria numa muita de $1.00 (um cruzeiro) e suas contribuições eram estipuladas em 0,40 (quarenta centavos por semana.” ( A TARDE, 26/11/1966, Caderno 2, capa).
Essa primeira brincadeira esteve no centro da transformação da Sociedade do Cachimbo em uma instituição religiosa. Mais tarde, novamente com o uso de um bolo de barro, o desafio era encontrar nomes para ele. Foram proclamados vários até que Cirilo Manuel dos Reis gritou “Nicodemus”. Alguns dias depois, ele surpreendeu os colegas de estiva ao contar que sonhou com um homem que pedia para que seu nome não fosse pronunciado em vão. Em visita à tenda de um santeiro, Cirilo encontrou a ilustração de um santo com as mesmas características do homem que havia sonhado. Era São Nicodemus. Durante um tempo, a imagem ficou na tenda de um ferreiro conhecido como Glicério.
“Naquela ocasião, o ferreiro foi logo escolhido patrocinador da festa que em breve havia de se celebrar em louvor ao santo. Antes, porém, tratou-se de dissolver a falada "Sociedade do Cachimbo”, prevalecendo daí uma outra com finalidade mais séria, que tomou o nome de Sociedade de São Nicodemos, Padroeiro dos Trabalhadores do Cais do Carvão”. (A TARDE, 26/11/1966, Caderno 2, capa).
A primeira edição da festa incluiu missa e procissão na Igreja de Nossa Senhora do Pilar, localizada no Comércio. Eles também instituíram a Segunda-feira do Cachimbo, dia em que a celebração ganhava atividades mais lúdicas e que Antônio Monteiro associou à Segunda-Feira Gorda do Bonfim e, que mais tarde, se transformou na Festa da Ribeira.
“Intercalaram também, a obrigação de se incorporarem à festa marítima do Senhor dos Navegantes, ocasião em que fazem oferta de uma corbelha de flores, em nome da devoção de São Nicodemos, na hora em que a galeota ancora no cais das Docas, em frente a um altar ali improvisado da véspera para tal fim”. (A TARDE 26/11/1966, Caderno 2, capa).
Raridade
Por conta do seu artigo publicado em 1966, Antônio Monteiro cedeu ao jornal uma coleção de fotografias que são registros preciosos. As imagens são de autoria do fotógrafo Voltaire Fraga (1911-2006), um importante cronista do cotidiano de Salvador e das celebrações da cidade. As fotos que compõem o acervo do Cedoc A TARDE registraram Cirilo Manuel dos Reis segurando a imagem original que tinha um cachimbo e um carvão em sua base, a procissão e uma corrida de saveiros.
Como a festa da Sociedade do Cachimbo acontecia em setembro e com caruru, esse elemento foi incorporado à Festa de São Nicodemus e ainda hoje faz parte da celebração. O crescimento da comemoração também resultou em uma capela dedicada a São Nicodemus.

Com o tempo, a última segunda-feira de novembro foi estabelecida como o dia da festa anualmente. Ela mantém especialmente a missa, a procissão e a distribuição do caruru dentre outras atividades que algumas vezes fazem parte da programação como uma corrida nas dependências do porto.
Outra característica interessante da festa: São Nicodemus não é um santo conhecido. Também não foram ainda encontrados registros de outra festa dedicada a ele por trabalhadores da área portuária ou outra categoria. No livro Um Santo para Cada Dia, de Maria Sgarbossa e Luigi Givovannini, considerado uma referência na catalogação e biografia dos santos celebrados pela liturgia católica, São Nicodemus está ausente. Mas ele é um personagem dos evangelhos.

No Evangelho de João, Nicodemus é descrito como um homem importante das categorias que tinham protagonismo no Templo de Jerusalém, centro da sociedade em que Jesus viveu. No capítulo três desse relato, Nicodemus, membro do grupo dos fariseus, reconhece a autoridade de Jesus e faz algumas perguntas que iniciam um ensinamento sobre as questões relacionadas à força do Espírito Santo. Em outra passagem do mesmo evangelho, no capítulo 7, ele defende Jesus da crítica feita por outros membros das elites do templo. Mas Nicodemus participou ainda de um acontecimento crucial: o sepultamento de Jesus. Segundo João, no capítulo 19, Nicodemus foi quem forneceu 30 quilos de mirra e resina para os ritos do enterro. A escolha por um santo desconhecido mesmo entre os católicos, seguindo critérios mágicos, diz muito sobre a força mágica da primeira das festas do calendário de verão.

Confira as páginas de A TARDE sobre a Festa de São Nicodemus:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia