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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 11 de novembro de 2023 às 6:00 h | Autor:

Há 100 anos o Teatro São João foi consumido por um incêndio

Reportagem publicada na edição de 6 de junho de 1923 contou detalhes da destruição do equipamento

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Teatro São João, principal casa de espetáculos de Salvador, foi destruído por um incêndio em 1923
Teatro São João, principal casa de espetáculos de Salvador, foi destruído por um incêndio em 1923 -

A edição de A TARDE de 6 de junho de 1923 noticiou o fim de uma das casas de espetáculos mais imponentes e cheias de histórias de Salvador: o Teatro São João. Localizado no local onde hoje está a Praça Castro Alves, o equipamento foi destruído por um incêndio. Inaugurado em 1812, o Teatro São João não apenas sediou espetáculos, mas também reuniões políticas em movimentos como o de defesa da Abolição e relacionados às festas em comemoração ao Dois de Julho.

“O Velho São João! Era das tradições mais antigas da cidade, como o primeiro templo da arte aqui erguido, casarão secular ainda reboante das grandes vozes dos nossos poetas, Castro Alves sobranceando a todos; dos nossos oradores, Nabuco, José do Patrocínio, Manoel Victorino e do maior de todos, Ruy; dos nossos escriptores theatraes ou candidatos a isso, Agrário de Menezes à frente; do nossos actores ou projectos delles, Xisto Bahia destacando-se entre eles...Muitas noites de glória à luz das gambiarras, registam as chronicas de várias epochas extintas; ruidosas manifestações em que as plateias se scindiam, vibrantes, em partidos, odes, hymnos, e palmas de estrellas de primeira grandeza; memoráveis comícios políticos pelas grandes causas nacionais, a abolição e a República. Mas tudo isso passou”. (A TARDE, 6/6/1923, capa).

Em questão de horas não restou nada da estrutura imponente do Teatro São João. O jornal lançou a acusação de que o fogo não foi acidental. O incêndio tornou-se mais um capítulo dos conflitos entre as elites políticas locais e, de certa forma, entre a ideia de cidade que considerava o projeto de modernização como sinônimo de esquecer e deixar desaparecer o que representava o antigo, especialmente as construções do período colonial.

O governador do Estado era mais uma vez José Joaquim Seabra (1855-1942). No seu primeiro governo, em 1912, J.J. Seabra, como ficaria mais conhecido, desenvolveu um projeto de modernização de Salvador com destaque para a construção da Avenida Sete. Nesse período, imóveis antigos como a Igreja de São Pedro foi demolida e quase ocorre o mesmo com o conjunto do Mosteiro de São Bento.

Quando pegou fogo, em 1923, o São João já havia perdido o protagonismo de outros tempos.

“Salvador já tinha uma série de opções semelhantes, inclusive com espaços que para além dos espetáculos, exibiam filmes. No entorno do São João, tinha o Cine São Bento e o Cine Guarany , fundado em 1919. Era uma concorrência grande”, diz Daniel Rebouças. Historiador, professor, escritor e doutor em História ele é autor de livros como Lulu Parola- Crônicas e Ironias, que aborda a trajetória do jornalista Aloisio de Carvalho, um especialista na linguagem satírica.

São João teve protagonismo histórico na capital baiana
São João teve protagonismo histórico na capital baiana | Foto: Sem data | Reprodução Cedoc A TARDE

Em sua tese intitulada A liberdade em cena: teatro, humor e racismo no tempo da abolição e além (Salvador, Bahia, 1884-1906), orientada pela doutora em História e professora da Ufba, Wlamyra Albuquerque, o historiador analisou o uso político em espaços como o Teatro São João. Para ele é importante destacar esses aspectos para não deixar a importância da casa de espetáculos ser ofuscada pelo período de abandono que culminou na sua destruição pelo incêndio.

“Desde meados do século XIX, período da minha análise, o Teatro São João tinha uma programação com um repertório diverso. Era uma dinâmica cultural interessante que incluía teatro de revista e o cinema. Até as primeiras décadas do século XX ele mantém essa lógica seguida por outros espaços como o Politeama”, aponta Daniel Rebouças.

Mesmo com um tom de crítica, a reportagem de A TARDE sobre o incêndio mostra como a administração do equipamento tentou encontrar alternativas para que o teatro continuasse funcionando. De acordo com o jornal, o espaço chegou até a abrigar o que denomina “gente de circo”. Mas o incômodo estava em um dos últimos usos descritos como bailes em que a entrada das mulheres era gratuita e que chegaram a ser proibidos pela polícia.

Política no teatro

E essa ocupação diversa foi além das artes. Daniel Rebouças afirma que a ocupação política era realizada por meio das assembleias e eventos institucionais, mas também no que era exibido no palco, afinal o teatro foi uma das principais linguagens do período. “Em 1859, na visita de Dom Pedro II à Bahia, o Teatro São João obteve o protagonismo como espaço. Isso também aconteceu nas festas do Dois de Julho. O teatro no século XIX era a principal forma de diversão. O seu acesso, precisamos refletir, ia além das pessoas que o frequentavam diretamente, mas incluía quem estava no seu entorno, o que é parte da sua dinâmica”, analisa o historiador.

Em relação à luta pela abolição, que foi uma das questões analisadas por Daniel Rebouças na sua tese, o teatro tinha essa dinâmica entre espaço físico e conteúdo das apresentações bem delineadas. Ele sediava as conferências dos grupos abolicionistas, os eventos de alforria dos escravizados, mas também espetáculos das companhias teatrais que debatiam a abolição, ou seja, uma dramaturgia política.

E a política esteve no centro dos problemas que levaram ao fim do Teatro São João. Além da concorrência de outros equipamentos semelhantes, a década de 1920 foi um período de problemas econômicos, inclusive por conta da Primeira Guerra Mundial. Houve uma tentativa de reforma que, de acordo com Daniel Rebouças, chegou a ser proposta por Filinto Santoro, um arquiteto italiano.

“Ele vinha fazendo algumas obras na cidade, mas em uma entrevista, Santoro chegou a dizer que era preciso um investimento grande e muito cuidado com a parte de segurança para prevenção a incêndios. Mas este foi um período de crise econômica mundial e havia a ideia de que o Teatro São João poderia representar a simbologia ligada ao passado que se queria apagar de fase colonial e tradições monárquicas”, acrescenta Daniel Rebouças.

Teatro também foi espaço de ocupação política
Teatro também foi espaço de ocupação política | Foto: Benjamin Mulock | Reprodução Cedoc A TARD

Disputas

Essas disputas políticas estão bem delineadas na cobertura do incêndio realizada pela reportagem publicada na edição de A TARDE de 6 de junho de 1923. Após a descrição do incêndio, o texto lança diversas suspeitas sobre os negócios relacionados à administração do teatro com pesadas críticas ao governo de Seabra. Segundo a denúncia, um negociante da Rua Chile, cujo nome não foi apresentado, sem poder firmar um contrato com o Estado apontou Felisberto Sawzer, um empreiteiro de obras, como arrendatário.

“Assignado o contracto com o governo, o arrendatário registou a sua firma na Junta Commercial, sob a razão de Souza & Cia., com o capital de 100 contos, da qual era o único a usar. Feito isto, e tendo de se dar inicio às obras, foi enviado officio ao' governo pedindo úma vistoria para que fosse feito um calculo do vulto das mesmas. O secretario Barbosa de Souza fez ouvidos moucos, deixando livre o fiscal do governo junto ao theatro, sr. Armando Sebrão Velloso. Desse modo o governo não conhecia o estado do próprio que lhe pertence”. (A TARDE 6/6/1923, capa).

De acordo com a reportagem, o arrendatário do teatro havia viajado para o Rio de Janeiro, quando ocorreu o incêndio. Na então capital federal ele esperava resolver questões relacionadas à compra de mobiliário e contratar uma companhia de espetáculos. Mas o prédio estava sob a proteção de seguro, inclusive um em nome do governo. Com base nessas informações, o jornal considerou o incêndio não um acidente, mas um crime.

“E o que nâo fizeram os poderes públicos, apesar de decretada de há muito a demolição, fez hontem um incêndio fulminante, ateado pela mão de um criminoso com intuitos naturalmente de tirar daquilo o melhor partido, ou quem sabe?, pelo dedo da providência”. (A TARDE 6/6/1923, capa).

O fogo começou, segundo o texto de A TARDE, por volta das 3h40.

“A princípio era uma delgada fumaça que logo engrossou, crepitando a madeira secca da caixa do theatro onde começou o incêndio no andar terreo dos lados do fundo. Propagou-se assim com rapidez incrível”. (A TARDE 6/6/1923,capa).

O incêndio encerrou a bela e imponente história do Teatro São João. Mas a sua memória ficou na cobrança para que Salvador ganhasse um novo equipamento que tivesse importância e protagonismo como o destruído há cem anos. Para o historiador Daniel Rebouças foi o Teatro Castro Alves que veio ocupar essa lacuna. “O Politeama já tinha saído um pouco de foco e ao final veio a construção do Teatro Castro Alves ocorrida quase 30 anos depois, ou seja, permaneceu a ideia que Salvador precisava de um teatro digno da sua dinâmica”, completa.

Talvez por ser o herdeiro de tantas expectativas, o Castro Alves foi palco de várias polêmicas em relação à sua arquitetura, inclusive. Foram uma série de projetos e de governos até que ele esteve pronto para ser inaugurado em 1958. Mas o novo teatro pegou fogo às vésperas da inauguração. Ele só passou a funcionar de fato em 1967.

Confira as páginas de A TARDE que detalharam o incêndio e o início da apuração sobre as causas:

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Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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