Há 100 anos o Teatro São João foi consumido por um incêndio
Reportagem publicada na edição de 6 de junho de 1923 contou detalhes da destruição do equipamento
A edição de A TARDE de 6 de junho de 1923 noticiou o fim de uma das casas de espetáculos mais imponentes e cheias de histórias de Salvador: o Teatro São João. Localizado no local onde hoje está a Praça Castro Alves, o equipamento foi destruído por um incêndio. Inaugurado em 1812, o Teatro São João não apenas sediou espetáculos, mas também reuniões políticas em movimentos como o de defesa da Abolição e relacionados às festas em comemoração ao Dois de Julho.
“O Velho São João! Era das tradições mais antigas da cidade, como o primeiro templo da arte aqui erguido, casarão secular ainda reboante das grandes vozes dos nossos poetas, Castro Alves sobranceando a todos; dos nossos oradores, Nabuco, José do Patrocínio, Manoel Victorino e do maior de todos, Ruy; dos nossos escriptores theatraes ou candidatos a isso, Agrário de Menezes à frente; do nossos actores ou projectos delles, Xisto Bahia destacando-se entre eles...Muitas noites de glória à luz das gambiarras, registam as chronicas de várias epochas extintas; ruidosas manifestações em que as plateias se scindiam, vibrantes, em partidos, odes, hymnos, e palmas de estrellas de primeira grandeza; memoráveis comícios políticos pelas grandes causas nacionais, a abolição e a República. Mas tudo isso passou”. (A TARDE, 6/6/1923, capa).
Em questão de horas não restou nada da estrutura imponente do Teatro São João. O jornal lançou a acusação de que o fogo não foi acidental. O incêndio tornou-se mais um capítulo dos conflitos entre as elites políticas locais e, de certa forma, entre a ideia de cidade que considerava o projeto de modernização como sinônimo de esquecer e deixar desaparecer o que representava o antigo, especialmente as construções do período colonial.
O governador do Estado era mais uma vez José Joaquim Seabra (1855-1942). No seu primeiro governo, em 1912, J.J. Seabra, como ficaria mais conhecido, desenvolveu um projeto de modernização de Salvador com destaque para a construção da Avenida Sete. Nesse período, imóveis antigos como a Igreja de São Pedro foi demolida e quase ocorre o mesmo com o conjunto do Mosteiro de São Bento.
Quando pegou fogo, em 1923, o São João já havia perdido o protagonismo de outros tempos.
“Salvador já tinha uma série de opções semelhantes, inclusive com espaços que para além dos espetáculos, exibiam filmes. No entorno do São João, tinha o Cine São Bento e o Cine Guarany , fundado em 1919. Era uma concorrência grande”, diz Daniel Rebouças. Historiador, professor, escritor e doutor em História ele é autor de livros como Lulu Parola- Crônicas e Ironias, que aborda a trajetória do jornalista Aloisio de Carvalho, um especialista na linguagem satírica.
Em sua tese intitulada A liberdade em cena: teatro, humor e racismo no tempo da abolição e além (Salvador, Bahia, 1884-1906), orientada pela doutora em História e professora da Ufba, Wlamyra Albuquerque, o historiador analisou o uso político em espaços como o Teatro São João. Para ele é importante destacar esses aspectos para não deixar a importância da casa de espetáculos ser ofuscada pelo período de abandono que culminou na sua destruição pelo incêndio.
“Desde meados do século XIX, período da minha análise, o Teatro São João tinha uma programação com um repertório diverso. Era uma dinâmica cultural interessante que incluía teatro de revista e o cinema. Até as primeiras décadas do século XX ele mantém essa lógica seguida por outros espaços como o Politeama”, aponta Daniel Rebouças.
Mesmo com um tom de crítica, a reportagem de A TARDE sobre o incêndio mostra como a administração do equipamento tentou encontrar alternativas para que o teatro continuasse funcionando. De acordo com o jornal, o espaço chegou até a abrigar o que denomina “gente de circo”. Mas o incômodo estava em um dos últimos usos descritos como bailes em que a entrada das mulheres era gratuita e que chegaram a ser proibidos pela polícia.
Política no teatro
E essa ocupação diversa foi além das artes. Daniel Rebouças afirma que a ocupação política era realizada por meio das assembleias e eventos institucionais, mas também no que era exibido no palco, afinal o teatro foi uma das principais linguagens do período. “Em 1859, na visita de Dom Pedro II à Bahia, o Teatro São João obteve o protagonismo como espaço. Isso também aconteceu nas festas do Dois de Julho. O teatro no século XIX era a principal forma de diversão. O seu acesso, precisamos refletir, ia além das pessoas que o frequentavam diretamente, mas incluía quem estava no seu entorno, o que é parte da sua dinâmica”, analisa o historiador.
Em relação à luta pela abolição, que foi uma das questões analisadas por Daniel Rebouças na sua tese, o teatro tinha essa dinâmica entre espaço físico e conteúdo das apresentações bem delineadas. Ele sediava as conferências dos grupos abolicionistas, os eventos de alforria dos escravizados, mas também espetáculos das companhias teatrais que debatiam a abolição, ou seja, uma dramaturgia política.
E a política esteve no centro dos problemas que levaram ao fim do Teatro São João. Além da concorrência de outros equipamentos semelhantes, a década de 1920 foi um período de problemas econômicos, inclusive por conta da Primeira Guerra Mundial. Houve uma tentativa de reforma que, de acordo com Daniel Rebouças, chegou a ser proposta por Filinto Santoro, um arquiteto italiano.
“Ele vinha fazendo algumas obras na cidade, mas em uma entrevista, Santoro chegou a dizer que era preciso um investimento grande e muito cuidado com a parte de segurança para prevenção a incêndios. Mas este foi um período de crise econômica mundial e havia a ideia de que o Teatro São João poderia representar a simbologia ligada ao passado que se queria apagar de fase colonial e tradições monárquicas”, acrescenta Daniel Rebouças.
Disputas
Essas disputas políticas estão bem delineadas na cobertura do incêndio realizada pela reportagem publicada na edição de A TARDE de 6 de junho de 1923. Após a descrição do incêndio, o texto lança diversas suspeitas sobre os negócios relacionados à administração do teatro com pesadas críticas ao governo de Seabra. Segundo a denúncia, um negociante da Rua Chile, cujo nome não foi apresentado, sem poder firmar um contrato com o Estado apontou Felisberto Sawzer, um empreiteiro de obras, como arrendatário.
“Assignado o contracto com o governo, o arrendatário registou a sua firma na Junta Commercial, sob a razão de Souza & Cia., com o capital de 100 contos, da qual era o único a usar. Feito isto, e tendo de se dar inicio às obras, foi enviado officio ao' governo pedindo úma vistoria para que fosse feito um calculo do vulto das mesmas. O secretario Barbosa de Souza fez ouvidos moucos, deixando livre o fiscal do governo junto ao theatro, sr. Armando Sebrão Velloso. Desse modo o governo não conhecia o estado do próprio que lhe pertence”. (A TARDE 6/6/1923, capa).
De acordo com a reportagem, o arrendatário do teatro havia viajado para o Rio de Janeiro, quando ocorreu o incêndio. Na então capital federal ele esperava resolver questões relacionadas à compra de mobiliário e contratar uma companhia de espetáculos. Mas o prédio estava sob a proteção de seguro, inclusive um em nome do governo. Com base nessas informações, o jornal considerou o incêndio não um acidente, mas um crime.
“E o que nâo fizeram os poderes públicos, apesar de decretada de há muito a demolição, fez hontem um incêndio fulminante, ateado pela mão de um criminoso com intuitos naturalmente de tirar daquilo o melhor partido, ou quem sabe?, pelo dedo da providência”. (A TARDE 6/6/1923, capa).
O fogo começou, segundo o texto de A TARDE, por volta das 3h40.
“A princípio era uma delgada fumaça que logo engrossou, crepitando a madeira secca da caixa do theatro onde começou o incêndio no andar terreo dos lados do fundo. Propagou-se assim com rapidez incrível”. (A TARDE 6/6/1923,capa).
O incêndio encerrou a bela e imponente história do Teatro São João. Mas a sua memória ficou na cobrança para que Salvador ganhasse um novo equipamento que tivesse importância e protagonismo como o destruído há cem anos. Para o historiador Daniel Rebouças foi o Teatro Castro Alves que veio ocupar essa lacuna. “O Politeama já tinha saído um pouco de foco e ao final veio a construção do Teatro Castro Alves ocorrida quase 30 anos depois, ou seja, permaneceu a ideia que Salvador precisava de um teatro digno da sua dinâmica”, completa.
Talvez por ser o herdeiro de tantas expectativas, o Castro Alves foi palco de várias polêmicas em relação à sua arquitetura, inclusive. Foram uma série de projetos e de governos até que ele esteve pronto para ser inaugurado em 1958. Mas o novo teatro pegou fogo às vésperas da inauguração. Ele só passou a funcionar de fato em 1967.
Confira as páginas de A TARDE que detalharam o incêndio e o início da apuração sobre as causas:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia