História contada por A TARDE abordou conexão entre Direito e costumes
Decreto de um agente policial em Jacobina foi criticado na edição de 5 de março de 1921

Na edição de 5 de março de 1921, A TARDE publicou a história de um agente policial de Jacobina que expediu um decreto invadindo a área de costumes. Jogos de azar, manejo de armas e o comprimento das roupas de mulheres consideradas de “vida livre” foram algumas das preocupações do decreto criticado pelo jornal. O caso é uma oportunidade para o debate sobre as intersecções entre o campo do Direito e a área de costumes.
“O Direito é uma área que pode ser considerada conservadora. À medida que acontecem mobilizações sociais é que as transformações começam a acontecer”, diz o advogado Efson Lima. Doutor em direito e professor, ele é membro do conselho estadual LBTQUIA+, escritor e membro da Academia de Letras de Ilhéus e da Academia Grapiúna de Letras.
Segundo a reportagem publicada em A TARDE, Davino Teixeira dos Santos, suplente da Delegacia de Polícia em Jacobina publicou um decreto proibindo corrida com animais em alta velocidade pela cidade; usar armas como pistolas, facas, dentre outras, além dos jogos com cartas de qualquer tipo. Em seguida, ele decidiu legislar sobre a roupa das mulheres que não estavam na categoria das consideradas obedientes ao que era considerado boa reputação. Classificadas no decreto como “de vida livre”, estas ficavam proibidas, de acordo com a decisão, de usar saias que tivessem um comprimento de mais de cinco centímetros acima dos tornozelos.
Mesmo em um período em que os direitos reservados às mulheres estavam no âmbito da raridade, A TARDE criticou, por meio da ironia, os arroubos do agente policial a quem caracterizou como “o moralista”. Além disso, a análise das medidas foi tratada em um tom de deboche:
“Para que ninguém se chamasse á ignorância, o cidadão Davino fez affixar a sua pastoral no edifício do Paço da Cidade, donde sacrilegamente a arrancou um desses expontaneos reporters de A Tarde. E aqui está ella, no original, quase em autrographo, na integra, como jamegão de Davino, a enriquecer os nossos archivos de preciosidades, onde ficará perpetuamente e de que não a cobicem um dos doutores Bernadino de Souza ou Borges de Barros. Elevemos os pensamentos para os céos! As mulheres desçam os saiotes nos calcanhares; para uns e outros receberem as indulgênicas, que provirão da leitura e acatamento da pastoral do cidadão Davino”. (A TARDE 5/3/1921, capa).
Vestes no alvo
As roupas, segundo Efson Lima, sempre estiveram no alvo das políticas de controle social. Controlar o que se veste, especialmente em relação às mulheres, é uma ação que costuma estar associada ao estabelecimento de padrões, o que é uma ameaça reiterada à diversidade. As normas estabelecem convenções que ao ser contestadas provocam, de certa forma, a própria legislação. “O Direito, geralmente, está a serviço de um determinado segmento social. Em relação às roupas, na maioria das vezes, as regras são para os corpos femininos, quando as leis, em sua maioria, são feitas pelos homens”, diz Efson Lima.
E o debate sobre roupas não é algo dos tempos mais remotos. Efson Lima destaca as ações de Jânio Quadros (1917-1992). Mesmo com um governo que durou apenas sete meses, devido à renúncia, Jânio Quadros, eleito com uma pauta associada à performance - o símbolo da sua campanha foi uma vassoura para varrer a corrupção - e ao discurso de defesa do que era considerado valores conservadores seguiu a linha de proibir a rinha de galos e o biquini em piscinas e praias.

“A proibição do biquini, que é uma das marcas do Brasil e encanta com sua variedade de modelos, tamanhos e cores, dá bem uma dimensão das ambiguidades que marcaram o curto governo de Jânio Quadros”, analisa Efson Lima. Eleito pela pauta dos setores conservadores ele se viu no meio de uma crise ao condecorar Ernesto Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana.
Mas o advogado aponta que parte da sociedade brasileira seguiu em décadas seguintes apegada a valores que estabelecem o corpo, especialmente o feminino, como algo a ser disciplinado. “Basta lembrar que na década de 1970 o país ficou escandalizado porque a atriz Leila Diniz mostrava na praia sua barriga de grávida. E, vale mencionar, que há quatro anos a eleição ficou marcada por uma pauta de costumes assim como o último governo que tentou colocar essa discussão como central o tempo inteiro”, avalia Efson Lima.
Mobilização
Os avanços que têm acontecido na pauta de costumes resultam de um longa e insistente ação, usando as mais variadas estratégias, dos movimentos sociais. Esta trajetória se repete desde a luta sufragista das mulheres até as conquistas mais recentes, como a união entre casais homoafetivos.
“O Supremo Tribunal Federal, que é a instância para discutir as questões constitucionais tem avançado no sentido de atender as demandas sociais. Mas isso, no Brasil é feito ainda em meio a muita polêmica. No Reino Unido, por exemplo, os próprios conservadores foram favoráveis a esse direito seguindo o raciocínio de que a união estável, mesmo de pessoas homoafetivas, preserva o princípio da formação da família”, acrescenta Efson Lima.
Mesmo na primeira geração de direitos, como afirma o professor, há uma combinação de fatores que favorecem ou endurecem a concordância em estendê-los ao maior número de pessoas possível. Efson Lima cita como exemplo a reação francesa à independência política do Haiti, ocorrida em 1804. “A Revolução Francesa ocorreu sob o lema de igualdade, fraternidade e liberdade. Mas quando veio a independência dos haitianos estes rapidamente defenderam a liberdade como algo que só poderia beneficiar os franceses”, explica Efson Lima.
Mas há alguns avanços para comemorar e fortalecer a luta contra as tentativas de controle exagerado na área do comportamento. As chamadas delegacias de costume são estruturas que desapareceram. Na Bahia, esse tipo de órgão manteve durante décadas o controle, por exemplo, sobre os terreiros de candomblé, Até janeiro de 1976, para realizar suas festas, as comunidades das religiões afro-brasileiras necessitavam retirar uma autorização na Delegacia de Jogos e Costumes.
“Muitas vezes as mudanças são lentas, mas as mobilizações sociais são cruciais para provocar o Direito e ele precisa ter sensibilidade para acompanhar as mudanças sociais”, afirma Efson Lima. Em um país multicultural como o Brasil esse movimento pode até ter alguns períodos de recuo ou até mesmo de retrocesso para alguns segmentos. Mas contextos de opressão especialmente para grupos como mulheres, negros, indígenas, e muitos que reúnem, na mesma pessoa, vários desses marcadores, não permitem uma trégua prolongada.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE