Legado de Cid Teixeira será celebrado duas vezes no seu centenário
Historiador baiano era assíduo frequentador do acervo de A TARDE e dedicou a vida a reconstituir a memória de Salvador
Entre outros significados, a palavra efeméride define a celebração de um acontecimento ou data importante. O historiador baiano Cid Teixeira, que dedicou a vida a preservar a memória dos eventos significativos da história da Bahia e, principalmente, de Salvador, ganhará duas efemérides pelo centenário de seu nascimento. Uma este ano, na segunda-feira (11), dia de seu aniversário, e a outra no ano que vem, na mesma data. Os eventos são organizados por entidades ligadas à história, jornalismo e literatura, três das áreas de atuação de Cid Teixeira, que morreu em 21 de dezembro de 2021, aos 97 anos.
O professor Cid, natural da Ilha de Maré, uma das três da baía de Todos-os-Santos que integram o município de Salvador, foi registrado em 11 de novembro de 1924. Mas, seus amigos íntimos afirmam que ele nasceu, de fato, no mesmo dia e mês, só que um ano depois daquele que consta no registro, em 1925. O antropólogo Ordep Serra, presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB), explica que essa alteração no ano de nascimento do historiador foi proposital e feita pelo pai de Cid Teixeira.
“Acadêmico que tinha uma relação muito próxima com Cid Teixeira, Aramis Ribeiro Costa [escritor baiano] disse que na verdade, ele não nasceu em 1924, mas sim em 1925. O pai dele antecipou o registro para que ele entrasse mais cedo no colégio”, conta Ordep Serra, que conheceu Cid Teixeira quando ambos ensinavam na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (FFCH).
“Convivi com o meu querido amigo na universidade. Ele também foi professor em São Lázaro [campus da Ufba, na Federação]. Foi lá que nos encontramos. Quando eu entrei, ele já estava saindo, estava aposentado, mas frequentava São Lázaro e travamos conhecimento. Ele era uma pessoa de uma infinita simpatia”, acrescenta.
Antecipar o ano de nascimento dos filhos para que eles parecessem mais velhos do que de fato eram, foi uma prática relativamente comum até a primeira metade do século XX e, geralmente, a intenção era adequar a idade da criança à sua entrada na escola. No período, as crianças eram aceitas na alfabetização a partir dos 7 anos, mas não existia o conceito de pré-escola como conhecemos hoje e muitas entravam no curso já conhecendo as primeiras letras, aprendidas em casa com os familiares ou preceptores, no caso daquelas de famílias de melhor condição financeira.
Dois centenários
Por conta da divergência no ano de nascimento de Cid Teixeira, o professor ganhará homenagens pelo seu centenário nesta segunda-feira (11) e na mesma data, em 2025. A ALB, explica Ordep Serra, vai celebrar o nascimento do historiador no ano que vem. Autor de vários livros sobre a história de Salvador, Cid entrou para a academia antes do atual presidente da casa. “Quando eu ingressei na academia, ele já não a frequentava porque já andava doente. Então, não nos encontramos na academia, mas ficou a lembrança da nossa amizade muito forte”, diz.
Ordep Serra acrescenta que queria homenagear Cid Teixeira este ano, pois é prática da ALB comemorar o centenário dos acadêmicos. “Nós fizemos uma homenagem na altura da morte dele e pretendíamos fazer outra agora. Mas decidimos celebrá-lo no ano que vem. É bom, porque ele vai ter dois centenários e ele merecia até três vezes essa celebração”, brinca o antropólogo.
A Associação Baiana de Imprensa (ABI) fará sua efeméride pelo centenário de Cid Teixeira na próxima segunda-feira, com a roda de conversa ‘O comunicador Cid Teixeira’, às 10h, na sede da ABI, na Praça da Sé. Cid foi jornalista e radialista. Apresentou um programa famoso em Salvador na segunda metade dos anos 1960, o ‘Pergunte ao José’, transmitido pela Rádio Cruzeiro de 1966 até 1970.
O programa de rádio foi recriado por um breve momento, em 2002, com apresentação do próprio Cid Teixeira, na rádio Excelsior, especialmente para a gravação do documentário ‘A Enciclopédia da Bahia’, do cineasta e fotógrafo Roberto Gaguinho. O filme de 55 minutos reconta a trajetória do professor que tinha um vozeirão marcante de locutor. É por conta de Pergunte ao José e de outras participações assíduas na mídia que Cid Teixeira é muito conhecido também fora dos círculos acadêmicos e personifica a própria memória da história de Salvador. Como jornalista, foi editor-chefe do jornal Tribuna da Bahia e no Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (Irdeb), foi o responsável por implantar a Rádio Educadora.
A edição de 02 de fevereiro de 2002 de A TARDE, na pág. 6, destaca a recriação do programa Pergunte ao José para o documentário de Roberto Gaguinho e informa que para a realização do filme foram gastos um ano e meio entre pesquisa e elaboração do roteiro. “Uma equipe de oito pessoas atua na produção, que tem apoio da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Prefeitura Municipal de Salvador, Câmara de Vereadores, além das prefeituras onde acontecem as locações, tais como,Maragogipe,Cachoeira, São Félix e São Francisco do Conde,entre outras”, enumera a reportagem. O filme, atualmente, pode ser assistido no Youtube.
Além da homenagem da ABI, este ano o centenário de Cid Teixeira também entrou na programação do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB). O evento acontece na próxima segunda-feira, a partir das 17h, na sede da instituição, na Piedade. Na ocasião, ocorrerá uma sessão solene no auditório da entidade, com a participação de escritores, jornalistas, historiadores e representantes da cena cultural de Salvador que conviveram com o homenageado. Cid Teixeira foi funcionário e associado ao IGHB.
O dono da história
Cid Teixeira é autor de pelo menos 10 livros sobre a Bahia, com destaque para a história de Salvador. Na edição de 01 de setembro de 1998, o Caderno 2 de A TARDE reporta o lançamento de uma dessas obras, ‘Bahia: Caminhos... Estradas... Rodovias... Notas para a História’, ilustrado com fotografias garimpadas no Centro de Documentação (Cedoc) de A TARDE e em outros arquivos frequentados pelo historiador. O acervo do jornal também preserva pastas de fotografias e documentos sobre a trajetória do pesquisador. O arquivista Valdir Ferreira, que atua no Cedoc desde a criação do acervo, em 1978, recorda que Cid Teixeira era assíduo no local.
Na abertura da reportagem sobre o lançamento do livro do professor Cid, assinada pela jornalista e poeta baiana Kátia Borges, ela afirma: “O historiador Cid Teixeira é um verdadeiro mago/mito da História da Bahia”. O professor Ordep Serra complementa, lembrando que todo mundo procurava por Cid quando queria saber alguma coisa da cidade. No seu gabinete e biblioteca pessoal, na casa onde morava na Pituba, ele recebia pesquisadores e jornalistas em busca de informações para pautas que exigiam um mergulho na história. Era bibliófilo também (amante e colecionador de livros) e, ainda, mantinha uma famosa discografia com milhares de discos de vinil, muitos raros.
“Ele era um apaixonado pela cidade de Salvador, pela Bahia como um todo. Era um homem que tinha uma capacidade maravilhosa de comunicação, tanto oral quanto escrita. Escrevendo, ele seduzia, a gente lê Cid com alegria, com prazer, poucos historiadores têm este dom. Ele era um homem sério, um pesquisador sério, um pesquisador emérito, ele sabia procurar as fontes mais precisas, mais importantes, era um verdadeiro mestre da historiografia”, afirma Ordep.
O presidente da ALB acredita que o grande legado de Cid Teixeira foi justamente a contribuição do amigo para registrar a história de Salvador. Ordep Serra também afirma que o velho mestre marcou a trajetória de muitos acadêmicos e de muita gente fora da universidade, com o seu amor pela memória baiana.
“Ele deixou uma biblioteca muito boa, deixou uma discoteca muito boa. Além disso, ele foi um grande mestre, um professor maravilhoso, muita gente que entrou para a historiografia, muitos estudantes de ciências sociais de um modo geral, todo mundo recebeu de Cid um grande dom, essa capacidade de mestre, sua didática generosa, calorosa, ele fazia com que as pessoas gostassem de estudar”.
A paixão por Salvador era alardeada dentro e fora da Bahia. Quando dava palestras, Cid Teixeira também seduzia a plateia, encantava a sua maneira quase mítica de referir-se a personagens e fatos da história. Além do carisma como orador, os amigos recordam do quanto ele era um homem mais do que inteligente, um sábio muito generoso e íntegro. “Essa generosidade dele está presente em tudo o que ele fez. Era muito agradável ouvir Cid. Ele tinha o dom, a gente chamava naquele tempo de prosa, era o homem da prosa. Ele era um conversador admirável, uma enciclopédia. Sabia de coisas extraordinárias e contava com uma graça fantástica”, recorda Ordep Serra.
Gestor público
Em 1993, Cid Teixeira assumiu a presidência da Fundação Gregório de Mattos (FGM), órgão da prefeitura de Salvador vinculado à Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult). Em entrevista ao A TARDE, publicada na edição de 20 de janeiro daquele ano, também no Caderno 2, ele falou sobre as metas da sua gestão que seria marcada pela pluralidade: "Salvador é uma cidade múltipla. Durante quase três séculos, ela foi a mais importante cidade europeia fora da Europa e a africana fora da África. Estas características, de uma certa forma, ainda existem, Nela tem lugar tanto para o monólogo de Hamlet, de Shakespeare, como para o oriki de Oxóssi”, afirmou o professor, na ocasião. A reportagem também repercutiu a nomeação do historiador com representantes da cena cultural da cidade e muitas das propostas sugeridas pelos artistas e produtores coincidiam com as políticas públicas que Cid pretendia implantar.
O historiador também foi homenageado com a comenda Thomé Souza, concedida pela Câmara Municipal de Salvador, em março de 1992, meses antes dele assumir a FGM. Na ocasião, na edição de A TARDE do dia 31 daquele mês, foi publicada a foto da cerimônia e o relato da palestra que o professor fez sobre a história da fundação de Salvador - a cidade tinha completado 443 no dia 29 de março. Na conferência, Cid aproveitou para falar da criação da Câmara da capital, que foi a primeira no Brasil.
Aos 77 anos, por ocasião do lançamento do documentário do cineasta Roberto Gaguinho sobre sua vida, o professor Cid Teixeira, definido por Ordep Serra como ‘um homem de muitos talentos’, deu uma longa entrevista ao A TARDE, publicada na edição de 3 de agosto de 2003. Nessa conversa, ele explicou os motivos pelos quais trocou a carreira no Direito, após advogar por um tempo, pela História, uma paixão que ele carregava desde criança.
“Eu passei a escola primária e o ginásio já pensando em história. Fui trabalhar na biblioteca do Instituto Histórico, juntando a fome com a vontade de comer. Quando já estava ingressando na universidade, fiz concurso para professor de História. Aliás,comecei a dar aula de História em colégio particular. Quando terminei o curso de Direito,já estava fazendo concurso para ensinar História no colégio público. Tive algum tempo de militância forense, fui advogado durante algum tempo, mas a opção era fazer História, e, como ninguém é bom em duas coisas,eu procurei ser melhor em História”.
No texto de abertura da entrevista pingue-pongue, assinado pela jornalista e doutora em antropologia Cleidiana Ramos, ela escreveu: “Se alguém resolvesse, de repente, representar por imagem a memória de Salvador, com certeza uma gravura ou fotografia do professor Cid Teixeira seria escolhida em primeira mão”. Melhor definição não há para um homem que dedicou sua vida a resguardar a memória, a histórias e as muitas histórias da ‘velha cidade da Bahia’.
*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE