No futebol e ginástica artística, as mulheres lutam contra desigualdades | A TARDE
Atarde > Colunistas > A Tarde Memória

No futebol e ginástica artística, as mulheres lutam contra desigualdades

Publicado sábado, 31 de julho de 2021 às 06:01 h | Autor: Cleidiana Ramos*
Rebeca é a 1ª a medalhar na ginástica em Olimpíadas | Foto: Loic Venance | AFP
Rebeca é a 1ª a medalhar na ginástica em Olimpíadas | Foto: Loic Venance | AFP -

Cada Olimpíada reúne uma coleção de histórias de superação, heroísmo que nem sempre é traduzido em medalha e conquistas que desafiam a lógica. Com os jogos realizados em Tóquio, Japão, em andamento até o próximo dia 8, essa característica ganha reforço diante das condições atípicas, como a pandemia que provocou um inédito adiamento – a edição era para ser no ano passado. Mas já há consenso de que o protagonismo desta edição está com as mulheres. Pela primeira vez no total dos cerca de 11 mil atletas há um equilíbrio na participação de gênero com 48,8% de mulheres e 51,2% de homens. A atuação das mulheres nos atuais jogos continua a desafiar tabus, ter rebeldia contra o que ainda é norma, mas precisa de debate, além de visibilizar desigualdades. No caso do Brasil dois esportes podem contar melhor essa história do esporte como luta pelo equilíbrio em direitos: futebol feminino e ginástica artística.

A referência ao futebol feminino brasileiro será sempre obrigatória em qualquer relato sobre a teimosia das mulheres para viver os dramas e glórias do esporte que, no Brasil, é o que possui maior visibilidade e popularidade. E não apenas pela brasileira Marta Vieira ter sido eleita seis vezes como a melhor jogadora da modalidade no mundo pela Fifa, órgão que administra o futebol. Em 1996, nos jogos realizados em Atlanta, EUA, o Brasil foi uma das seleções a marcar presença na estreia do futebol feminino em Olimpíadas.

Uma derrota nas semifinais para a Noruega deu ao time o 4º lugar. Em um país em que todos os holofotes eram para a seleção masculina em busca do então inédito ouro olímpico, a derrota não conseguiu traduzir o que a participação no torneio teve de heroica. Ainda hoje a estrutura, atenção e contratos publicitários para os homens são superiores aos das mulheres, apesar das melhoras por conta do ativismo de atletas como Marta.

Mas a luta das mulheres para ganhar espaço no futebol é bem mais antiga. Em 14 de agosto de 1920, 76 anos antes de o futebol feminino estrear nas Olimpíadas de Atlanta, A TARDE noticiou o que classificou como “feminismo no sport”. Era uma disputa de futebol entre francesas e inglesas.

“Os franceses estão ufanos com a victoria estrondosa de sua ‘equipe’ feminina nas partidas de ‘football’ em Londres. Elles mandaram à ilha, não só mulheres formosas como robustas, que arrancaram palmas calorosas da habitual frieza britannica. Melle Oury, a ‘goalkpeer’, apparece em todos os jornais como o ‘nosso anjo da guarda’”. (A TARDE, 14/8/1920, capa).

Imagem ilustrativa da imagem No futebol e ginástica artística, as mulheres lutam contra desigualdades
Capa realça partida de futebol feminino || 14.8.1920

Proibição

Se as francesas conseguiram empolgar o público do seu país, os desafios para as brasileiras que decidem jogar futebol ainda hoje são enormes devido ao machismo e sexismo. Insinuações sobre a sexualidade das atletas, lesbofobia contra aquelas que vivem relações homoafetivas e falta de patrocínio são alguns efeitos colaterais do contexto que chegou a proibir a prática do esporte por mulheres.

Em 14 de abril de 1941, o decreto-lei 3.199 do então presidente Getúlio Vargas incluiu o futebol nas modalidades que atentavam contra a “natureza feminina”. Com o decreto revogado em 1979, a regulamentação só ocorreu em 1983. Mas a via crucis de atletas continua para chegar a histórias de excelência, como a da baiana Miraildes Mota, que usa no ambiente esportivo o pseudônimo Formiga. Ela, que estava no pioneiro grupo que estreou em Atlanta, chegou a Tóquio para a sua sétima Olimpíada e, aos 43 anos, é titular do time e joga em grande estilo.

Desde a estreia do futebol feminino em jogos olímpicos, a seleção brasileira mantém um retrospecto vitorioso, mesmo sem a conquista da cobiçada medalha de ouro. O quarto lugar em Atlanta se repetiu nos jogos seguintes, em Sidney.

Em duas edições – Atenas (2004) e Pequim (2008) –, a equipe feminina conquistou medalhas de prata. Como efeito de comparação, apesar de toda a estrutura e investimento, a seleção masculina, que estreou em jogos olímpicos em 1952, só conseguiu uma medalha de ouro na Rio-2016. O futebol começou a ser disputado nas Olimpíadas a partir de 1900, mas como modalidade competitiva só oito anos depois. Antes do ouro, a equipe masculina, apesar do protagonismo em copas do mundo, conquistou três medalhas de prata (Los Angeles-1994; Seul-1988 e Londres-2012) e duas de bronze (1996-Atlanta e 2008-Pequim).

A equipe feminina só não repetiu as performances de ficar perto de finais ou ganhar medalhas em 2012 e 2016.

“A seleção feminina lutou, tentou buscar um jogo que parecia perdido e ficou perto de levar a decisão do terceiro lugar para a prorrogação ontem. Mas não deu. Nos 15 minutos finais, o Canadá segurou a pressão das brasileiras e da torcida que lotou o estádio Itaquerão e venceu o Brasil por 2 a 1 em São Paulo, conquistando a medalha de bronze”. (A TARDE, 20/8/2016, B2).

Imagem ilustrativa da imagem No futebol e ginástica artística, as mulheres lutam contra desigualdades
Estreia do futebol feminino em Atenas || 2.8.1996

As brasileiras não conquistaram um resultado para chegar à final em Tóquio, mas só participar de todos as edições dos jogos até aqui mostra que uma partida não é apenas uma disputa, mas a possibilidade de enviar recados de como o esporte está atento ao debate sobre transformações necessárias. A ginástica artística é outro esporte em que mulheres brasileiras sinalizam sobre discussões importantes.

Contra o racismo

De forma surpreendente, a ginasta brasileira Rebeca Andrade conseguiu no último dia 25 um segundo lugar na classificação para as finais da categoria chamada de individual geral, que é a soma da performance em um conjunto de aparelhos. À sua frente estava a atual estrela da modalidade, Simone Biles, autora de performances que encantam pela plasticidade e força, além de ter ganhado cinco medalhas nos jogos realizados no Rio de Janeiro em 2016.

A norte-americana abandonou a disputa por equipes e anunciou que não concorreria ao individual geral para preservar sua saúde mental. Depois de conquistas históricas, como a de ter sido a primeira negra a ganhar medalhas na ginástica feminina em jogos olímpicos, Simone Biles enfrentou tempestades. Ela foi uma das atletas que denunciou o ex-médico da seleção de ginástica artística dos EUA, Larry Nassar, por abuso sexual. Ele foi condenado, em 2018, a passar de 40 a 175 anos na prisão por esses crimes. A ginasta também chegou a Tóquio pressionada para ser uma das chamadas lendas de Tóquio. Ela abriu mão dessa condição para abrir o importante debate sobre o quanto tem de humano em pessoas que levam seus corpos além dos limites considerados possíveis.

Na última quinta-feira, Rebeca Andrade brilhou na competição que ganhou ainda mais holofotes com a ausência de Simone Biles e tornou-se a primeira atleta brasileira negra a conquistar uma medalha na ginástica artística feminina. O feito soma-se ao de Daiane dos Santos, que não venceu provas nas Olimpíadas que disputou (2004, 2008 e 2012), mas foi a primeira atleta negra da modalidade a vencer uma Copa do Mundo em 2003 e teve movimentos com o seu nome fixado no Código da Ginástica.

Outro feito das duas: ambas embalaram suas coreografias no solo com versões de músicas brasileiras misturadas às clássicas que são uma marca da modalidade. Daiane dos Santos encantou ginásios com “Brasileirinho”. Já Rebeca Andrade ganhou a prata com a prova de solo ao som de uma mistura entre a Tocata e Fuga, composição de Johann Sebastian Bach (1685-1750), e o funk Baile da Favela, do MC João. Ela ainda pode ganhar mais duas medalhas em provas que serão disputadas amanhã, domingo, e na segunda-feira.

Além do futebol e da ginástica, os jogos de Tóquio serão lembrados pelo feito de uma menina de apenas 13 anos: a maranhense Rayssa Leal, que, ao disputar a prova com a leveza de uma brincadeira, ganhou uma medalha de prata no skate, modalidade estreante desta edição dos jogos olímpicos. Rayssa Leal tornou-se a mais jovem medalhista brasileira

Não é, portanto, apenas a busca pelo sucesso após a preparação durante quatro ou cinco anos. Para as mulheres, sempre, e agora com mais protagonismo em Tóquio, as Olimpíadas podem ser a oportunidade para que as causas de combate à desigualdade em que estão inseridas de forma explícita ou como indicativo ganhem maior ressonância.

A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período Fontes: Edições de A TARDE.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

Publicações relacionadas