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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos

ACERVO DA COLUNA
Publicado Saturday, 14 de October de 2023 às 13:45 h | Autor:

Outubro de 1930 foi tenso para a rotina de A TARDE

Salvador foi sacudida pelo Quebra-Bondes que resultou na invasão da sede do jornal

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Páginas da edição de A TARDE de 6 de outubro de 1930 apresentam colunas em branco. São lacunas incompreensíveis quando se esperava haver um veemente protesto por conta de episódios que sacudiram Salvador dias antes, incluindo a depredação da primeira sede própria do jornal inaugurada em março daquele ano. O dia 4 de outubro foi intenso: já estava em curso o movimento que ficou conhecido como Revolução de 1930 que, para a Bahia, resultou em intervenção federal por 15 anos, quando estourou o Quebra- Bondes, uma manifestação popular contra o aumento das passagens no sistema de transporte público da cidade.

“Houve censura não apenas dos jornais baianos, mas de toda a imprensa nacional”, explica o historiador Jonas Brito. Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o pesquisador analisou o movimento em sua tese intitulada O Quebra-Bondes: política e protesto urbano na I República (Salvador, 1926-1930). A censura foi ação dos revolucionários de 1930. Eles também derrubaram o presidente do Brasil, Washington Luís (1869-1957), encerrando a chamada República Velha. Getúlio Vargas (1882-1954) foi nomeado chefe do governo provisório, mas se manteve no poder por 15 anos, inclusive impondo uma ditadura em 1937, período conhecido como Estado Novo.

O movimento revolucionário foi tímido na Bahia. As lideranças políticas baianas não estavam afinadas com o Tenentismo, movimento surgido no Exército na década de 1920 que teve alguns membros no levante. Eles estiveram ao lado da Aliança Liberal, partido de Getúlio Vargas na eleição tumultuada para a presidência do Brasil naquele ano e que foi o estopim do conflito. Dessa forma, a Bahia continuou legalista. “A Bahia permaneceu legalista até 24 de outubro. A Revolução não chegou a estourar na Bahia”, diz Jonas Brito.

Mas a cidade viveu a partir da noite do dia 4 o seu conflito particular. Calcula-se que dois terços da frota de bondes, o principal meio de transporte no período, tenham sido destruídos. Além disso, a mesma companhia mantinha o serviço do Elevador Lacerda, planos inclinados, fornecimento de luz elétrica e sistema de telefonia, ou seja, o caos estava instalado.

“O Quebra- Bondes ocorreu entre o dia 4 de outubro e o início da madrugada de 5 de outubro. O protesto destruiu o material fixo e rodante da Linha Circular de Carris Urbanos e da Companhia de Energia Elétrica da Bahia que eram duas empresas que pertenciam à General Eletric, uma grande companhia estadunidense. A GE monopolizava o serviço de transporte público constituído de bondes, elevadores e planos inclinados, da eletricidade e do telefone. A Revolução de 1930 foi um movimento que destituiu autoridades públicas e o Quebra- Bondes foi um protesto popular contra as condições do serviço público na cidade”, analisa Jonas Brito.

Quando o protesto passou pela Praça Castro Alves, o prédio de A TARDE virou um alvo. As instalações sofreram vários danos. Isso no ano em que havia sido inaugurada realizando o sonho de Ernesto Simões Filho (1886-1957) de que o jornal tivesse sede própria. Em 1930, A TARDE completou 18 anos.

Embates de Simões Filho

Diferentemente de outros proprietários de jornal no período, a trajetória de Simões Filho na política foi posterior ao jornalismo. Em 1904 ele fundou O Papão, uma revista especializada em literatura e com linguagem satírica. Oito anos depois, em 15 de outubro, apresentou A TARDE com as novidades da aposta no que havia de mais moderno em tecnologia para fazer periódicos, como a adoção de clichês. Outra marca do jornal foi a realização das campanhas de interesse público. Uma delas, logo nos primeiros dias de A TARDE, defendeu as escolas públicas então funcionando de forma precária em ambientes insalubres como mostrou uma reportagem de 21 de outubro de 1912.

“Dirigimo-nos à rua do Saldanha n.18 onde funciona uma escola municipal do sexo masculino. Seguiamos ladeira abaixo e deparamos o número indicado no umbral de uma casa de dois andares, dessas muitas dos tempos coloniaes , às quais deve a Bahia, vista de longe, o cognome de presepio- que pode ser muito poético, muito meigo, mas que significa um retrocesso de mil novecentos e doze annos- uma dessas casas de architectura bisonha, sem esthetica, mal dividida, sem luz, sem ventilação, húmidas, cheirando a bafio, moradia predilecta das aranhas caranguejeiras e dos morcegos”. (A TARDE 21/10/1912, capa).

Leal a Rui Barbosa (1849-1923), Simões Filho se tornou opositor especialmente do grupo liderado por José Joaquim Seabra (J.J.Seabra- 1855-1942). De jornalista nos primeiros anos de A TARDE passou a ocupar cargos eletivos como o de deputado federal que era o que exercia na época do Quebra- Bondes.

“Simões Filho era uma figura proeminente da política baiana nesse período. Ele era não apenas deputado federal, mas líder da bancada baiana na Câmara dos Deputados. Ele era muito ligado ao governador Vital Soares e ao prefeito Francisco Sousa. Inclusive, ele pressionou o presidente Washington Luís a apoiar a candidatura do governador Vital Soares a vice-presidente da República na eleição de 1930 e queria ser o candidato a governador da Bahia, mas teve a sua pretensão frustrada sobretudo por causa dos Calmon”, aponta Jonas Brito.

E tinha mais detalhes que fizeram de Simões Filho um alvo por meio do seu jornal segundo o historiador. “Simões Filho teve um papel crucial na execução de um programa de obras e reformas urbanas desenrolado em Salvador entre 1928 e 1930. Isso implicou em aumentos tributários e aumentos tarifários. Então o preço da eletricidade, o preço do telefone e o preço do bonde aumentaram. Simões Filho era, portanto, muito associado a essa política situacionista e às obras e reformas urbanas. Inclusive, a imagem da sede do jornal na Praça Castro Alves era veiculada em outros órgãos de imprensa vinculados ao grupo político adversário do de Simões Filho”, diz Jonas Brito.

Após ter recebido a notícia dos ataques à sede do jornal, Ernesto Simões Filho enviou um telegrama aos diretores destacando a sua tristeza que tinha outro agravante: seu aniversário de nascimento é 4 de outubro, o dia que começou o Quebra-Bondes.

“Não foram, não podem ter sido bahianos os autores dessa monstruosidade. Não há bahiano digno desse nome, que me não faça justiça e não reconheça que essa grande obra em que empreguei tudo o que me deu uma vida inteira de trabalho sem reparo, sem o escrúpulo, que servirá de modelo ao mais honesto dos homens de bem, e mais o que devo a estabelecimentos de credito- não a realizei senão por dedicação à Bahia e para servir de paradigma e estímulo ao seu sucesso”.

(Transcrição de trecho do telegrama enviado por Ernesto Simões Filho a diretores de TARDE após os ataques à sede do jornal na Praça Castro Alves).

O fundador de A TARDE chegou a dizer que não acreditava nem mesmo que havia ação de adversários na invasão.

“Também não posso atribuir aos meus adversários políticos o atentado porque não os considero vis que não reconhecessem que vindo eu da opposição para o governo, após lutas memoráveis, de que a Bahia foi testemunha admirada, não exerci nunca, como partidário governista, e sob nenhum pretexto, a menor vingança por menor que fosse. Ao revez disso, nos conselhos do meu Partido, tenho sido, firmemente, a palavra decidida e enérgica, a propugnar a prática de attidudes e actos de tolerancia, de respeito integral a todos os direitos”.

(Transcrição de trecho do telegrama enviado por Ernesto Simões Filho a diretores de TARDE após os ataques à sede do jornal na Praça Castro Alves).

Nos parágrafos finais, Simões Filho fez referência à coincidência com o dia do seu aniversário quando afirmou que um dos seus consolos era ter recebido manifestações de parabéns dos mais variados segmentos sociais da Bahia. Também ressaltou que tinha completado 44 anos.

Temores

A empresa prestadora de serviços e o Jornal A TARDE foram os dois empreendimentos atingidos pelo Quebra- Bondes. Os resultados do ponto de vista da política não atingiram especificamente uma liderança, mas este é um movimento que ainda necessita de mais estudos como pontua Jonas Brito.

“As pesquisas sobre o período ainda precisam ser realizadas. Destaco trabalhos já desenvolvidos como o do historiador Luís Henrique Silva Santana, que foi orientado por Antonio Luiggi Negro. Seu trabalho deixou claro que a memória do Quebra- Bondes era ainda muito presente nos anos 30. Na véspera do golpe do Estado Novo ocorreu a articulação de uma greve dos operários da Companhia Linha Circular. Então o problema dos contratos públicos da Linha circular continuou a ser uma questão ao longo dos anos 30”, destaca Jonas Brito.

Na avaliação do historiador o temor de uma multidão anônima ganhar protagonismo em um cenário de convulsão política esteve sempre à espreita. “O Quebra-Bondes representou a ameaça de uma massificação e de uma radicalização da Revolução de 1930. Houve a possibilidade de que ela tivesse a participação de trabalhadores negros de uma maneira absolutamente radical com a destruição em grande escala da propriedade particular que é um dos grandes pilares do capitalismo”, analisa o historiador.

Tanto que a polícia não tomou providências. O motivo? Segundo Jonas Brito foi a avaliação de que as forças do Exército poderiam aproveitar a chance e ter a desculpa para desencadear a ação dos grupos revolucionários na capital baiana. O Quebra- Bondes é um dos muitos eventos que apontam como ainda há muito para se saber sobre esse conturbado período da vida política e social baiana na primeira metade do século XX com A TARDE ocupando um lugar de destaque nessas histórias, inclusive para ajudar a contá-las.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

**A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.

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