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Poeta anarquista foi excomungado por bispo católico

Morte de Deus Saturnino Barbosa recebeu punição, noticiada por A TARDE em 1916

Publicado sábado, 21 de maio de 2022 às 06:02 h | Autor: Cleidiana Ramos
Em abril de 1916, Dom João Nery decretou a excomunhão do poeta Saturnino Barbosa, autor de um poema denominado “A morte de Deus”
Em abril de 1916, Dom João Nery decretou a excomunhão do poeta Saturnino Barbosa, autor de um poema denominado “A morte de Deus” -

Uma notícia curta, mas que desperta interesse foi publicada na capa da edição de A TARDE de 22 de abril de 1916: Dom João Nery, bispo de Campinas, São Paulo, decretou a excomunhão do poeta Saturnino Barbosa autor de um poema denominado “A morte de Deus”, além de proibir que católicos da sua diocese lessem o texto. O ato episcopal é apenas uma dimensão de quanto Saturnino Barbosa, atualmente pouco conhecido, era um autor com potencial para incomodar, afinal ser excluído da comunhão católica, de forma oficial mesmo já no século XX consistia em algo inusitado. 

O autor da excomunhão do poeta, Dom João Nery (1863-1920), foi o primeiro titular da diocese de Vitória, no Espírito Santos. Em seguida foi transferido para Pouso Alegre, Minas Gerais.  Natural de Campinas, São Paulo, foi o escolhido para ser o primeiro bispo da cidade quando ela se tornou sede de diocese em 1908. 

Saturnino Barbosa, de quem não se tem informações biográficas tão precisas, já era alguém acostumado a polêmicas. Poeta, escritor e professor, nasceu em Cubatão, São Paulo. Tornou-se conhecido pelo estilo sarcástico e era anarquista. 

“Ele era conhecido por romper com a métrica tradicional e pelo uso simplificado da ortografia. Essas qualidades lhe foram atribuídas mais recentemente, pois sofreu muito com as críticas a seus textos e a sua conduta”, explica o jornalista, escritor e pesquisador Gilfrancisco que escreveu um artigo sobre Saturnino Barbosa.  

De acordo com Gilfrancisco, o poeta trabalhou em escolas literárias que possuíam relações com o movimento caracterizado como anarco-sindicalista brasileiro.  O anarquismo é uma das teorias sociais que sustentaram um movimento político surgido na segunda metade do século XIX. A base mais geral desse movimento é a ideia de que a existência e funcionamento das sociedades são independentes e antagônicas ao poder exercido pelo Estado e que por isso ele é dispensável e até nocivo. 

Era graduado em pedagogia, mas encontrou diversos obstáculos para prosseguir na carreira do magistério no sistema público devido à sua militância no âmbito da literatura positivista e naturalista. O seu poema intitulado “A Morte de Deus” ter ganhado a atenção de uma autoridade eclesiástica e uma punição tão forte como a excomunhão já são amostras da visibilidade que ele tinha alcançado. No mesmo texto, por exemplo, A TARDE anunciou o apoio que Barbosa encontrou até no meio empresarial.       

“Aproveitando o escândalo, o sr. Julio Conceição, capitalista e livre pensador, residente em Santos, mandou editar 20 mil exemplares do referido poema”. (A TARDE 22/4/1916, capa). 

E, segundo o mesmo texto publicado em A TARDE, Saturnino Barbosa estava cotado para assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). A vaga era a deixada pela morte de José Veríssimo, ocorrida dois meses antes naquele mesmo ano. 

Veríssimo era jornalista, professor e crítico literário. Natural do Pará foi um dos participantes das reuniões preparatórias para a instalação da ABL. Foi o fundador da cadeira n° 18 com João Francisco Lisboa como patrono. Ao lado de Araripe Júnior e Silvio Romero constituiu a que era considerada a trindade crítica da era naturalista. Era, portanto, esse intelectual que Saturnino Barbosa foi cogitado para suceder na ABL.

“O poeta Saturnino Barbosa é candidato ao preenchimento da vaga, na Academia de Letras, do sr. José Veríssimo”. (A TARDE, 22/4/1916, capa). 

Raridades

Com essas e outras polêmicas no currículo, como a peleja, ou seja, uma disputa por meio de textos, com o poeta Emilio Menezes, Saturnino Barbosa é ainda alguém a ser melhor descoberto. Gilfrancisco, por exemplo, o tinha na sua lista de referências sobre expoentes da divulgação das ideias socialistas, comunistas e anarquistas em Santos. Na cidade paulista vários intelectuais com este perfil se reuniram vindos de Sergipe, estado onde Gilfrancisco reside e que tem sido a localidade base de vários dos temas que tem pesquisado. 

“Por muitos anos não havia encontrado referências a ele e seu nome ficou no meu arquivo esquecido até que fiz um artigo com o que tinha sobre ele. O movimento anarquista era muito forte em Santos. Lá tinha revista e jornais anarquistas. O socialismo também era muito forte. E nesta corrente a participação de sergipanos foi muito importante”, completa Gilfrancisco.  

Em sua pesquisa, Gilfrancisco encontrou diversos textos e correspondências para colegas assinados por Saturnino Barbosa. Foi nesse material que o pesquisador constatou a sua dificuldade em conseguir avançar na carreira de magistério com a transferência de Santos para São Paulo. Para ele isso tem a ver com a sua militância anarquista. 

“Saturnino ficou oitos anos em Santos e poderia estar em São Paulo, mas não conseguia avançar porque alguém se definir como anarquista quando era professor de uma escola pública significava colocar a cabeça a prêmio. Mas em Santos ele publicou livros e folhetos que causavam espanto. Além de tudo se declarava ateu”, acrescenta Gilfrancisco. 

Em sua avaliação, Saturnino Barbosa inovou em estilo. “Muitos dos seus textos se assemelham com os que os modernistas fizeram em 1922, mas ele é um pré-modernista. Sua poesia tinha uma base filosófica e ele não esteve engajado em bases do que seria o movimento modernista. Também não parece ter participado de círculos com autores modernistas. Vale também destacar que ele era um professor e esteve envolvido na formação de operários e dos seus filhos por meio de uma espécie de universidade aberta”, diz Gilfrancisco. 

Apesar de até ter sido cogitado, com informou A TARDE, para uma vaga na ABL, Saturnino Barbosa não costuma ser citado em compêndios especializados. “Há uma espécie de apagamento. Eu imaginava que encontraria no compêndio de Afrânio Coutinho informações sobre ele, mas havia pouco. Estou ainda investigando porque o acho extremamente interessante e espero ainda este ano ampliar o artigo que escrevi sobre ele para publicação na coletânea que estou preparando”, completa o pesquisador.    

Polêmico

“Nos meus livros A Morte de Deus e o Poema Transcendente, eu tive intenção de mostrar que tudo é matéria, que a ideia de Deus não passa de uma divinização da matéria e não mais. Daí o barulho que se fez em torno d’aquelas duas obras. No Canto do Cisne, modifiquei por completo o lirismo e mostrei que não só é poeta lírico aquele que fala com o coração na mão, mas mesmo o que tem algum pensamento grandioso e novo, capaz de reformar princípios sociais e extinguir preconceitos”. Este trecho é do artigo intitulado “Como escrevem os nossos homens de letras” assinado por Saturnino Barbosa, publicado em “O Pirralho”, em 1913, e que foi localizado por Gilfrancisco. 

Segundo o pesquisador, a bibliografia de Saturnino Barbosa é formada pelos seguintes títulos: Poema Transcendente (São Paulo, 1909); A morte de Deus- poema filosófico (1911); O Cosmopolitismo dos Carrapatos (1912); A capital artística- biografia (1912); Ensaios de Crítica Racionalista (sem data); O canto do Cisne (1913) e Filosofia da Morte (1950).   

Em sua pesquisa Gilfrancisco ainda não localizou o ano de nascimento nem o da morte de Saturnino Barbosa. Mas há outra informação interessante identificada pelo pesquisador: três anos após o episódio da excomunhão, Saturnino Barbosa concorreu novamente para a ABL, mas não foi eleito. Desta vez era para a sucessão de Olavo Bilac. Seria um efeito ainda da repercussão de suas ideias anarquistas ou do ateísmo? É mais um dos mistérios que cercam a sua trajetória, embora o apagamento não tenha sido completo, afinal em 2022 ele está aqui em evidência.   

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

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