Primeiro festival de cinema da Bahia celebrou os 50 anos do jornal A TARDE

Em comemoração aos 50 anos de fundação de A TARDE foi realizado, em Salvador, o 1º Festival de Cinema da Bahia no período de 22 a 28 de outubro de 1962. A capital baiana tornou-se a anfitriã de uma festa que reuniu atrizes e atores em evidência na época, como Odete Lara, Gloria Menezes e Agildo Ribeiro. Cineastas, produtores e críticos de cinema com colunas especializadas em jornais e revistas de outros estados participaram da ocasião em que a geração que fez história com o Cinema Novo deu mais um passo na direção do seu protagonismo.
“No Primeiro Festival de Cinema da Bahia atuei como organizador. Eu fui convidado a ir até a sede do jornal A TARDE para discutir o formato e os detalhes. Mas o festival além de comemorar os 50 anos do jornal foi pensado para celebrar o Cinema Novo. Foi o primeiro evento a reunir os primeiros filmes do Cinema Novo, seus diretores e seus produtores, atrizes e atores”, diz Orlando Senna, cineasta, 80 anos, roteirista e jornalista, então presidente da Associação dos Críticos Cinematográficos da Bahia (ACCB).
Com uma vasta filmografia, como Imagem da Terra e do Povo e Diamante Bruto, Senna tem uma incansável atuação na formação e iniciativas para a defesa da difícil arte de fazer cinema no Brasil. Tem também inserção em outras linguagens, como teatro, literatura e TV. De 2007 a 2008, por exemplo, dirigiu a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), pertencente ao governo federal, começando a executar o que era um projeto de transformação na forma de fazer TV no sistema público.
Senna aponta o destaque que foi dado à produção cinematográfica local, pois muito dos filmes, mesmo os que não estavam sendo realizados por diretores baianos tinham a Bahia como cenário de locação. “Mesmo as produções de fora tinham um espírito baiano como Mandacaru Vermelho e O Pagador de Promessas. Antônio Pitanga, por exemplo, ainda aparece na ficha técnica de Barravento, que estava sendo finalizado em 1962, como Antônio Sampaio. Mas o seu personagem, Pitanga, em Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, foi tão marcante que em seguida ele acabou incorporando o nome do personagem ao seu, como assinatura artística”, conta Senna.
Festa brasileira
O anúncio do festival de cinema foi feito na capa da edição de 22 de outubro de 1962. Mas do que uma festa local, o título da reportagem indicava que seria uma celebração nacional: “Cinema Brasileiro vem à Bahia para o seu primeiro festival”. O texto anunciou a programação com a exibição de Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni, no Cine Guarani. A estrela do filme, Irma Alvarez, argentina, autografou uma fotografia com dedicatória para o jornal. A imagem foi publicada no estilo fotolegenda para informar melhor sobre a trajetória da atriz:
“ESTRELA APARECE HOJE — O 1º Festival de Cinema da Bahia promovido em homenagem ao Jubileu d’ ‘A Tarde’, começou, esta manhã, com a exibição, para o júri, no Cine-Guarani, do filme “Porto das Caixas, estrelado por Irma Alvarez (foto acima). A atriz é a mesma que raspou a cabeça para figurar como ‘filha de santo’ na película ‘O Cavalo de Oxumarê’. Agora de cabelos novamente crescendo e em toda a sua beleza, Irma (que é argentina) vem à Bahia para o I Festival sendo uma das candidatas ao prêmio de “Melhor Atriz”. Na foto que acima estampamos ela escreveu: “A A Tarde com carinho ? Irma Alvarez”. (A TARDE, 22/10/1962, capa).

Irma Alvarez, que morreu em 2007, no Rio de Janeiro, chegou ao Brasil na década de 1950. Fez, cinema, teatro e TV. Ficou conhecida pela polêmica que se seguiu ao aparecer com a cabeça raspada, como aponta o texto de A TARDE, em Cavalo de Oxumarê, filme de Ruy Guerra, que foi um dos integrantes da comissão do júri do festival formada também por Carlos Coqueijo Costa, Hamilton Correia, Leo Juiri, José Augusto Berbert de Castro, Mario Cravo Júnior, Walter da Silveira e Rosalvo Barbosa Romeu.
“Esse é um festival que merece ser mais pesquisado. Ele foi o primeiro e único como costuma acontecer com alguns desses eventos. Mas eles surgem com a ideia de continuação ao se autodenominar numericamente. Este festival em especial deu seguimento a todo um ciclo do cinema baiano iniciado na década de 1950 a partir do Clube de Cinema da Bahia”, explica Izabel de Fátima Cruz Melo, doutora em meios e processos audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP).
Historiadora, Izabel Melo fez uma vasta pesquisa sobre a Jornada de Cinema, organizada pelo cineasta e professor da Ufba, Guido Araújo, um evento que conseguiu se manter por um longo período assim como os festivais realizados em Brasília e Gramado. Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Izabel Melo é autora do livro intitulado Cinema é mais que filme: uma história das Jornadas de Cinema da Bahia (1972-1978).

Escola
A grande estrela da programação anunciada para o festival foi o filme Assalto ao Trem Pagador. Dirigido por Roberto Farias, a produção parte de uma história real: o assalto, em 1960, a um trem que transportava 27 milhões de cruzeiros e com lances como a explosão de trilhos próximos à Estação de Ferro Central do Brasil. O elenco tem como destaques Reginaldo Faria, Miguel Angelo e Eliezer Gomes que, no papel de Tião Medonho, chegou a Salvador como o grande favorito para vencer na categoria “Melhor Ator”.
Assalto ao Trem Pagador tinha os requisitos para vencer o festival, mas houve uma grande torcida por Tocaia no Asfalto, uma história ambientada na Bahia e dirigida por um baiano: Roberto Pires. No filme, Agildo Ribeiro vive Rufino, um matador de aluguel que tem a missão de cometer um assassinato envolvendo as disputas políticas locais. O filme contou com Glauber Rocha como coordenador de produção.
“As produções artísticas em Salvador viviam uma fase de efervescência, mas mesmo com a incorporação da Escola de Belas Artes à Universidade da Bahia, depois Ufba, e a criação dos cursos de Teatro e Dança, o de cinema, defendido por Walter da Silveira, não aconteceu. Mas ainda assim o cinema baiano ganhou força. O próprio Walter da Silveira era muito articulado e esteve presente em eventos internacionais, como Cannes; Glauber Rocha e outros cineastas baianos ganharam cada vez maior projeção”, diz Izabel Melo.
De acordo com ela, um festival de cinema tem a força de estabelecer conexões que movimentam a cidade que o sedia de várias formas, inclusive econômica. Pelo conjunto de nove reportagens publicadas em A TARDEao longo da realização do evento conseguimos perceber dados sobre esta observação da pesquisadora e professora. O festival teve uma programação paralela com o lançamento de livros, encontros entre empresários e artistas nos coquetéis e passeios pela Baía de Todos-os-Santos, apresentação de peças e um debate protagonizado por Walter da Silveira:
“Realizou-se ontem na Escola de Teatro da Universidade da Bahia o debate programado pela Comissão Organizadora do Primeiro Festival de Cinema da Bahia, sob o título ‘Existe um cinema brasileiro?’. O tema foi proposto pelo crítico Walter da Silveira, perante a maioria dos componentes do Festival e algumas pessoas Interessadas. Tomaram parle ativa no debate (que durou cerca de duas horas) além do próprio Walter da Silveira, Glauber Rocha, Paulo Gil Soares, Orlando Senna, Leo Juiri e Ruy Guerra. Na ocasião pronunciou-se o cineasta sueco (observador da Unesco), Arne Sucksdorff que declarou ter notado no Brasil a presença de um estilo de luta e de nacionalidade que demonstra já existir um cinema brasileiro. As declarações de Sucksdorff foram recebidas com aplausos mormente quando declarou que não existe este espírito em nenhum outro país produtor de cinema nem mesmo na Polônia onde as condições de produção são idênticas às nossas”. (A TARDE, 24/10/1962, p.3).

De acordo com Orlando Senna, o cineasta sueco, Arne Sucksdorff veio ao Brasil em articulação com o Itamaraty e a Unesco para dar cursos sobre cinema. Na Bahia, como destacou a reportagem de A TARDE, ele ficou entusiasmado com o que conferiu durante o festival. “Este curso, que durou um ano, foi a escola para muitos cineastas brasileiros”, acrescenta Senna.
Escolha
Em sessão solene no Cine Guarani foram anunciados os vencedores do festival. O favorito Assalto ao Trem Pagador levou o prêmio de melhor filme, mas Tocaia no Asfalto, produção baiana, ganhou um prêmio especial por contribuição ao cinema nacional. Além disso, seu diretor, Roberto Pires, foi o escolhido na categoria “melhor direção”.

Eliezer Gomes, de Assalto ao Trem Pagador confirmou seu favoritismo como melhor ator; já o de melhor atriz foi para Gracinda Freire pela atuação em Três Cabras de Lampião, outra produção mais voltada para os temas com as características do Cinema Novo. Tocaia no Asfalto também venceu na categoria melhor ator coadjuvante com Milton Gaúcho; e Melhor Fotógrafo, com Hélio Silva premiado também por Três Cabras de Lampião. Porto das Caixas ganhou o prêmio de melhor música, composta por Antônio Carlos Jobim.
Nas principais categorias, os dois filmes ? Assalto ao Trem Pagador e Tocaia no Asfalto ? receberam o mesmo número de prêmios devido à decisão do júri de incluir a menção especial. Foram quatro premiações para cada uma das produções. Assalto ao Trem Pagador venceu nas categorias melhor filme, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e melhor roteiro. Tocaia no Asfalto ganhou os prêmios de melhor direção; melhor ator coadjuvante, melhor fotógrafo e o prêmio especial do júri. “Mas o festival não teve um espírito de competição. Eu me lembro que chegamos a discutir que não deveria ter concessão de prêmios porque assim todos sairiam vencedores”, conta Orlando Senna.

Os curtas
No 1º Festival de Cinema da Bahia os curtas também ganharam uma atenção especial. Foram exibidas 15 produções com essas características. Duas levaram o prêmio: O menino de calça branca, de Sérgio Ricardo, convidado especial para o evento e que teve a companhia de Ziraldo na produção, e Aruanda, de Linduarte Noronha. Também foram distribuídas menções honrosas para Festival de Arraia, de Rex Schindler; Aldeia, de Sérgio Sanz e Igreja, de Robato Filho. “O destaque não foi apenas a quantidade, mas a qualidade dessas produções. Os curtas baianos estavam percorrendo o mundo em festivais importantíssimos”, diz Orlando Senna.
O festival de cinema, portanto, foi mais um momento em que A TARDE pôde atuar como mediadora entre poder público, iniciativa privada e movimentos artísticos. De repente, este episódio pode inspirar ações semelhantes para amparar as bravas lutas, alimentadas pela paixão resistente, de quem insiste e persiste em fazer cinema na Bahia.
A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE. Para saber mais: Cinema é mais que filme: uma história das Jornadas de Cinema da Bahia (1972-1978) - (Izabel de Fátima Cruz Melo, Eduneb, 2016).
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia