Reportagens auxiliaram saída da coleção de peças sagrada do DPT
Textos publicados em 2010 abriram espaço para ação de retirada de artefatos do acervo pertencente à SSP-BA
No último dia 15, A TARDE publicou uma reportagem sobre a doação de um acervo que será feita pela Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) ao Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (Mafro-Ufba). Trata-se de uma coleção composta por 241 peças relacionadas às religiões afro-brasileiras, que pertenceu à Secretaria de Segurança Pública (SSP) e ficou exposta no Museu Estácio de Lima, na sede do Departamento de Polícia Técnica (DPT). A posse desses artefatos por órgãos do Estado conta, sobretudo, a história da violência desencadeada contra a prática de candomblé e umbanda. Em 2010, a exposição dessas peças nas dependências do DPT seria retomada se não fosse uma reportagem exclusiva publicada por A TARDE.
Para estabelecer melhor a importância dessa atuação de A TARDE é importante contar as relações entre a criminalística baiana e os estudos sobre o candomblé. Fundador da cátedra de Medicina Legal na Faculdade de Medicina na Bahia, o maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), é autor do que se considera uma etnografia pioneira sobre os candomblés intitulada O animismo fetichista dos negros baianos. O trabalho de Nina Rodrigues, com todos os problemas relacionados à sua trajetória racialista e destinada ao controle das práticas dos africanos e seus descendentes, abriu caminho para a produção no mesmo campo de outros professores da instituição.
No início do século XX, em meio a debates sobre modernidade, a população negra foi apontada sob diversas perspectivas, como um problema. Maioria nos indicadores de extrema pobreza, enfrentava em suas alternativas de sobrevivência, como o comércio ambulante, o combate dos higienistas. Sua principal prática religiosa, o candomblé, costumava ser interpretada pelas elites intelectuais ora como exótica ora presa a costumes tidos como primitivos e que precisavam ser banidos.
Jornais, inclusive A TARDE, mediavam esses discursos dentre os quais estavam os da ala repressiva que incentivavam as batidas policiais. Não demorou para que o candomblé passasse a ser controlado pela segurança pública. Para que pudesse realizar seus ritos, os terreiros necessitavam de uma autorização das delegacias especializadas em manter o que se considerava ordem pública e bons costumes. Era o mesmo departamento que vigiava e reprimia o jogo e a prostituição, por exemplo.
Os candomblés, por outro lado, mantinham as suas estratégias, como estabelecer alianças com intelectuais por meio da distribuição de cargos em suas organizações internas, mesmo que muitas vezes honorários, para ter proteção contra os abusos. Os que não seguiam esse caminho se tornavam mais vulneráveis. Um exemplo: em 1937, Salvador sediou o II Congresso Afro-Brasileiro. Organizado, sobretudo por Édison Carneiro (1912-1972) e Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943), o evento deu visibilidade ao debate sobre culturas, especialmente o candomblé, com a participação de lideranças religiosas nas atividades e inclusão das visitas aos terreiros na programação. Mas como nem todos estavam protegidos das ações de repressão, na mesma edição de A TARDE de 15 de janeiro de 1937, que informou sobre o congresso, foi publicada uma reportagem detalhando uma batida policial no terreiro de Pedro da Telha.
“Há dias, o dr. Antonio Mattos, delegado da 1ª Circunscrição Policial, recebia a denuncia de que, na Areia Branca, lá para as bandas da Rodagem funcionava, diariamente, um candomblé, pertencente a um preto, conhecido por Pedro da Telha. Segundo a denuncia desenrolavam-se, ali scenas que atentavam contra as nossas formas de civilização além de constituir um attentado ao socego dos moradores daquela zona. UMA BATIDA EM REGRA- Em vista disso, aquella autoridade ordenou uma batida na macumba organizando uma caravana composta de vários investigadores e praças”. (A TARDE, 15/1/1937, p.10).
Muitas dessas batidas permitiam a participação dos repórteres de jornais locais para fazer os registros. Nessas incursões, objetos de cultos, como atabaques, as ferramenta s- peças que são ícones de uma divindade, como a espada do orixá Ogum - eram apreendidas. Com o tempo, esse material passou a incluir acervos. Um deles foi o de homenagem a Nina Rodrigues denominado Museu de Medicina Legal, Etnografia, Antropologia Física e Criminal, instalado em 1902 na Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus. O espaço foi destruído três anos depois em um incêndio. Uma nova unidade foi aberta em 1915 e fechada em 1923. Nos 50 anos de morte de Nina Rodrigues, em 1956, Estácio de Lima, um dos seus mais ardorosos discípulos, montou o Museu de Medicina Legal, Antropologia, Cultura e Etnologia. São peças desse acervo que serão doadas ao Mafro.
Com o nome modificado alguns anos depois para Museu Estácio de Lima, instalado no DPT, a unidade teve várias contestações por conta da natureza das suas exposições. Uma dessas foi a exibição de restos mortais de integrantes do cangaço, como as cabeças de Lampião, Maria Bonita, Corisco, dentre outros. A exposição só foi suspensa por conta da mobilização de familiares dos cangaceiros.
Em 1984, A TARDE noticiou uma denúncia contra a exposição das peças relacionadas ao candomblé realizada pela União Brasileira dos Cultos Africanos que tinha entre os seus integrantes Edvaldo Brito, ogã e babá egbé do Terreiro Gantois, professor e jurista. Atualmente vereador em Salvador, Brito foi prefeito da cidade de 1978 a 1979.
“O ex-prefeito de Salvador e membro da União Brasileira de Preservação dos Cultos Africanos, Edvaldo Brito, voltou esta semana a defender a devolução de peças que fazem parte dos rituais de candomblé expostas no Museu Estácio de Lima anexo ao Instituto Médico Legal Nina Rodrigues. “Elas fazem parte de um culto sagrado, não são coisas para ficar sendo apreciadas e expostas. Se fosse a hóstia consagrada do sacrário não estariam expondo”, afirmou.”. (A TARDE 21/2/1984, p.3).
Em 1997 foi a vez de um movimento protagonizado por membros das comunidades de terreiro incomodados com o tipo de discurso construído na mostra. O Museu Estácio de Lima consistia em uma ala com a exposição de armas, as peças relacionadas às religiões afro-brasileiras e o que era considerado “curiosidades científicas”, como embriões de animais com alterações genéticas.
“Representantes de terreiros de candomblé querem a transferência dos objetos de culto, que estão no Museu Estácio de Lima, no Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues para outro museu. Reunidos no Grande Hotel da Barra, no último sábado, eles reclamaram que as peças estão sendo mantidas ao lado de aberrações da natureza e testemunhos de crime, como armas e drogas, também expostos no museu, atentando contra a proibição de racismo e a liberdade de culto garantidas pela Constituição”. ( A TARDE 3/2/1997, p.4)
O caráter mórbido, inadequado e violento da exposição, sobretudo em relação ao povo de santo, havia sido denunciado no artigo intitulado Memória Violentada de autoria de Ordep Serra, doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Serra, que publicou o artigo na década de 1980, foi um dos participantes do movimento de 1997 que incluiu também a Koinonia, uma organização do terceiro setor com religiosos de várias denominações. A mobilização teve o apoio do Ministério Público da Bahia que, por meio da sua promotoria de combate ao racismo, na época conduzida pelo hoje desembargador Lidivaldo Britto recomendou a retirada da coleção das dependências do DPT. Elas foram levadas para o Museu da Cidade, unidade da Prefeitura de Salvador.
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A partir da informação de que as peças estavam no Museu da Cidade, em 2010, encontrei o fio para a reportagem publicada naquele ano. Em uma visita ao espaço fiquei sabendo que as peças haviam sido requisitadas pelo DPT, pois seriam expostas na reativação do Museu Estácio de Lima. Nas primeiras apurações vi que ali estava uma grande história.
O choque com a notícia da possível reabertura do museu foi compartilhado pelo professor Ordep Serra com representantes do Ministério Público, como a procuradora Márcia Virgens, o desembargador Lidivaldo Britto e o então deputado federal Luiz Alberto. Foi este último que me disse que iria conversar com o governador Jaques Wagner.
Com a reportagem já finalizada, quase no final da noite, recebi uma ligação do professor Ubiratan Castro de Araújo (1948-2013). Segundo ele, já havia uma articulação no governo da Bahia para impedir a reabertura da exposição e dar outro tratamento à coleção. A missão incluiu a Sepromi que, na época, tinha como gestora a socióloga Luiza Bairros (1953-2016).
“As peças ligadas à religião e cultura afro que estão sob a guarda do Departamento de Polícia Técnica (DPT) não voltarão a ser exibidas no Museu Estácio de Lima, mantido pela instituição. O retorno das peças para o DPT, quebrando uma recomendação feita pelo Ministério Público (MP) em 1997, foi tema de matéria publicada na edição do último domingo em A TARDE. Seguindo recomendação do governador Jaques Wagner, a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade (Sepromi) assumiu o comando de ações para dar novo tratamento ao acervo”. (A TARDE, 20/7/2010, p.A10).
Meses depois, soube do cuidado de Luiza Bairros em consultar lideranças das religiões afro-brasileiras, como a ebomi Cidália Soledade (1930-2012), a ialorixá Mãe Stella de Oxóssi (1925-2018), o babalorixá Air José, dentre outros, sobre o que pensavam em relação ao acervo. Outra medida imediata foi a de colocar as peças sob os cuidados do Mafro-Ufba.
Nestes 12 anos, a coleção passou por processos de limpeza, catalogação e tem sido objeto de estudos no campo da antropologia e da museologia. O diretor do Mafro, Marcelo Cunha, em algumas conversas e, diante de questões como a realização de uma exposição, tem reiterado que é preciso ter sensibilidade e cuidados para decidir como essa história será contada. Afinal, como afirma sempre professor Ordep Serra, a principal memória dessa coleção é a da violência histórica desencadeada contra as religiões afro-brasileiras.
Com as informações e reflexões à medida que tenho acompanhado o desenrolar dessa história tenho certeza de que há, nesse caso, muitos ensinamentos, especialmente, para nós, jornalistas. Como não poderia ser diferente, os jornais e outras plataformas de comunicação traduzem questões do seu tempo, mas também tem suas dívidas a pagar sob a perspectiva da responsabilidade social e da consciência de que trabalham com informação distribuída em escala difusa e por isso em situações complexas. Nesse caso, A TARDE reviu sua postura de décadas passadas quando, em 2010, abriu espaço para visibilizar a violência que naturalizou em outros tempos. Por isso revistar memórias em conteúdo de jornal continua uma medida necessária e fascinante.
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia
*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período.
Fontes: Edições de A TARDE, Cedoc A TARDE