Reportagens de A TARDE mostram trajetória de caboclos | A TARDE
Atarde > Colunistas > A Tarde Memória

Reportagens de A TARDE mostram trajetória de caboclos

De 1913 a 1943, os carros com as estátuas experimentaram uma certa discrição até chegar ao protagonismo atual

Publicado sábado, 02 de julho de 2022 às 06:00 h | Autor: Cleidiana Ramos
O Caboclo subindo o Largo do Pelourinho em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1973
O Caboclo subindo o Largo do Pelourinho em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em 1973 -

As estátuas dos Caboclos são as protagonistas das celebrações da Festa do 2 de Julho atualmente. A expectativa maior durante a saída do cortejo da Lapinha é para o momento em que elas são apresentadas à multidão. Há aplausos e correria de quem deseja conseguir algum elemento da decoração dos carros ou colocar um bilhete com agradecimento ou pedido. Mas esta participação especial dos símbolos por excelência da festa teve altos e baixos neste protagonismo. Isso tendo como base a cobertura da festa nas edições de A TARDE. De 1914 até a década de 1920 os chamados carros emblemáticos são citados na programação, mas não estão em destaque inclusive na celebração do centenário da Independência. O protagonismo parece ter se sedimentado, ao menos nos registros de A TARDE, na década de 1940 quando uma reportagem cita que havia anos- embora sem precisar quantos- que os carros não saíam. 

“A Grande Jornada Cívica do 2 de Julho. Foi imponente o desfile dos carros emblemáticos que há muitos anos não saíam”.  (A TARDE 3/7/1943, p.2). 

Os Caboclos têm uma profunda ligação com a celebração do 2 de Julho. De símbolo cívico, ou seja, a representação brasileira a partir da emancipação de Portugal, ligaram-se também ao ambiente religioso, pois são encantados celebrados nas religiões afro-brasileiras como o candomblé e a umbanda.  A versão mais aceita para o início da celebração, em 1824, é a que aponta que um indígena real foi colocado em cima da estrutura de uma canhoneira que restou da guerra liderando um desfile caricatural do que havia sido feito no ano anterior pelas tropas do chamado Exército Libertador, pois a vida do povo não foi transformada com a emancipação.  

“Nos anos seguintes ocorreu uma transfiguração da realidade em imagem. Em 1826, os “patriotas” mandaram esculpir a imagem do Caboclo, colocando-a sobre a mesma carreta que desfila até hoje nas ruas de Salvador. A imagem é em tamanho natural, de cor marrom viva, com traços físicos característicos do ameríndio. Ela traz uma corrente no pescoço e segura uma lança de madeira, com a qual ataca um dragão, símbolo da opressão colonial, que está sob os seus pés. À sua frente está uma armadura de estilo medieval, feita de ferro, sobre um canhão. Dos lados esquerdo e direito do canhão encontram-se três baionetas. Há uma bandeira do Brasil no canto direito do carro. Este é todo enfeitado de palmas e “folha brasileira”, com dois anjinhos barrocos em cada lado, além das placas com nomes dos heróis da Independência, em sua maioria estrangeiros, entre os quais se destacam Labatut e Cochrane”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, p.32). 

Em 1846, o militar português, naturalizado brasileiro, José de Souza Soares de Andrea, que era o presidente de armas da Província da Bahia, tentou retirar a estátua do Caboclo do desfile. Para ele, uma imagem feminina seria mais apropriada e comparada a Catarina Paraguaçu na função da criação de um elo entre brasileiros e portugueses por conta do seu casamento com Caramuru. 

“Era preciso que o caboclo desaparecesse de circulação. Entretanto, diversos veteranos da Independência se reuniram e manifestaram seu descontentamento com as disposições tomadas. Uma comissão se dirigiu ao Presidente da Província e, depois das explicações, um exaltado declarou: “Olha, o Caboclo pertence ao povo, não é do governo. Ele sai nem que tenha que morrer alguém”. A solução encontrada foi o desfile tanto do Caboclo quanto da Cabocla do presidente, que foi assim retratada pelo poeta baiano Francisco Moniz Barreto: Essa cabocla engraçada/que traz a face tostada/Dos beijos que dá-lhe o sol”. O carro da Cabocla, semelhante ao do Caboclo, é feito de madeira e possui a estátua de uma índia esbelta e ereta, com colares no pescoço, segurando numa mão a bandeira brasileira e na outra um emblema, onde está escrito ‘Independência ou Morte’”. (O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia, Jocélio Teles dos Santos, p 33-34).

Defesa da festa  

Dois anos depois da sua fundação, A TARDE passou a apresentar um contexto em que a celebração ao 2 de Julho era tímida se comparada a décadas seguintes. Na capa da edição de 1º de julho de 1914, por exemplo, um título destacou que naquele ano não aconteceria o cortejo. Dois anos depois a sugestão do jornal em uma reportagem publicada na edição de 3 de julho, foi a de que o povo assumisse a organização do desfile. A descrição da reportagem sobre a apatia no dia anterior faz jus ao título dado a ela: “O dia maior da nossa terra teve, hontem, um aspecto de finados”: 

“Na Praça Barão do Triunpho nem um palanque. Estava deserta e triste. Os encarregados, por eleição, dos festejos, repoisavam, resguardados da chuva miúda que caía, satisfeitos por terem transformado o barracão dos caboclos na Lapinha numa funilaria. À noite populares foram buscar os carros symbolicos precedidos pela filarmônica S. Salvador. Fizeram uma alegre passeata. De uma das janellas do Gymnasio Carneiro, um orador fez-se ouvir. Foi uma homenagem tocante”. (A TARDE, 3/7/1914, capa)”.     

Talvez, a crítica de A TARDE tenha dado um rápido resultado, pois, em reportagem de 3 de julho do ano seguinte, foi registrado que, durante a cerimônia alusiva à data no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB) ocorreu a sugestão para que a instituição adquirisse o local onde estavam os carros emblemáticos na Lapinha. 

“O dr. Álvaro Reis recitou belíssima poesia, terminando por apresentar uma proposta para que o Instituto Histórico faça aquisição do barracão da Lapinha conservando para o seu museu os emblemas da nossa emancipação política ali existentes. Essa proposta foi aprovada sendo em seguida levantada a sessão”. (A TARDE, 3/7/1915, capa). 

Três anos depois, o Pavilhão 2 de Julho na Lapinha foi inaugurado. A solenidade contou com a benção do arcebispo do Ceará, dom Manoel Gomes, autoridades militares e um discurso do secretário perpétuo do IGHB, Bernardino de Souza, segundo reportagem da edição de 3 de Julho de 1918. No centenário da Independência da Bahia, que seria celebrado cinco anos depois, Bernardino de Souza foi o responsável pela campanha de arrecadação de fundos para construção da sede do IGHB. 

“O Panteão da Lapinha está em um casarão que foi adquirido em 1860 para abrigar as carruagens dos Caboclos. É estranho que eles tenham ficado em um espaço no Maciel de Baixo até 1918”, diz José Dirson Argolo, professor aposentado da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Desde 1997, o diretor do Studio Argolo Antiguidades e Restaurações é o responsável pelo reparo dos carros e das estátuas e de outros importantes monumentos da cidade.  “As estátuas são consideradas pelo povo verdadeiras divindades. É muita gente, inclusive, antes do desfile, que se ajoelha e reza aos pés delas”, conta Argolo.           

Ausência e retorno

Já na celebração do centenário da Independência, ao longo da cobertura de dez dias que foi realizada por A TARDE, os Caboclos não apareceram com protagonismo nas imagens ou citados com destaque. Além dos aviadores da Marinha Nacional, que foram bastante celebrados após a apresentação durante a festa, os holofotes estiveram na imagem do Senhor do Bonfim levada em procissão marítima. Após o desembarque, a imagem ficou na Igreja da Vitória para receber homenagens. O retorno para o Bonfim foi em procissão terrestre que, segundo a reportagem do dia 7 de julho de 1923, reuniu 60 mil pessoas. Como a imagem do Senhor do Bonfim esteve ligada a uma espécie de guerra psicológica portuguesa com a sua retirada da Colina Sagada durante o cerco da cidade, afinal a devoção já era grande, e o aspecto da religiosidade afro-indígena ainda não estava em evidência talvez seja uma explicação para o tratamento discreto que as estátuas dos Caboclos receberam em 1923.       

Na década de 1940, os Caboclos começaram a ter maior proeminência nos conteúdos de A TARDE. Em um artigo, publicado na edição de 1º de julho de 1942, Pedro Calmon fez uma homenagem, mas apenas à Cabocla. O destaque com protagonismo para os Caboclos ocorreu na reportagem de 1943 já citada anteriormente com a informação, não detalhada, de que eles voltavam ao cortejo depois de muitos anos de ausência.  

“Essas informações que aparecem nesse conjunto de reportagens são muito interessantes. A comparação em 1914 e 1915 com o Dia de Finados. Mas o retorno do Caboclo é da Cabocla foi o que salvou a festa com filarmônica e participação popular. Em 1918 há uma certa volta da normalidade ao evento. Nesta cobertura de 1943 chama a atenção a crítica para determinados escritores que viam a Independência como um "acordo" e a defesa da história popular”, diz Jocélio Teles dos Santos, professor titular da Ufba e autor de O Dono da Terra- O Caboclo nos candomblés da Bahia. 

O texto fez uma alusão à necessidade de união nacional:  “Oradores inspirados louvaram os heróis do 2 de Julho, cujos exemplos devem guiar as gerações atuais. O povo vibrou e mostrou que a união nacional é um imperativo da hora presente”. (A TARDE, 3/7/1943, p.2).   

Em 1943 estava em vigência o Estado Novo de Getúlio Vargas, inclusive com a presença do interventor federal nas comemorações, Renato Aleixo. Outro detalhe: parte das comemorações foi transmitida pelo Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda em parceria com uma rádio, ou seja, sob controle oficial. 

Jocélio Teles dos Santos destaca a informação presente nessa reportagem de 1943 sobre a participação de um homem indígena, originário do Acre. É uma semelhança com o início da comemoração em 1824.   

"Tomou parte no cortejo cívico o índio Dejaci da Tribu Canela levado do Acre para o Rio de Janeiro pelo General Cândido Rondon. O indígena que tem presentemente vinte e quatro anos de idade vibrou de entusiasmo numa demonstração sadia de brasilidade”. (A TARDE, 3/7/1943, p2). 

Dejaci foi retratado em um clichê onde aparece vestido com um terno. A legenda da imagem dá uma dimensão de como a construção ideológica sobre os povos indígenas, mesmo quando é no contexto do que seria entendido como uma homenagem, apresenta os indícios de uma forma no mínimo controversa.  O texto referente à fotografia, que é chamado de legenda na linguagem jornalística, usa a denominação “caboclo” para se referir a Dejaci, como era corrente no período. Há também a afirmação de que ele foi “capturado”, quando tinha cinco anos, por Cândido Rondon. São indícios de como a comemoração do 2 de Julho oferece a análise sob diversas perspectivas.   

Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em Antropologia

*A reprodução de trechos das edições de A TARDE mantém a grafia ortográfica do período. 

Publicações relacionadas