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A Tarde Memória

Por Andreia Santana*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 26 de outubro de 2024 às 7:00 h | Autor:

Salvador parou, chorou e até precisou de terapia por causa de O Exorcista

Há 50 anos, estreia do clássico de terror na Bahia provocou longas filas nos cinemas da capital e testou os nervos nem tão de aço dos soteropolitanos

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Filas para a estreia do filme O Exorcista, no Cine Tamoio, na Praça Castro Alves, em 11 de novembro de 1974
Filas para a estreia do filme O Exorcista, no Cine Tamoio, na Praça Castro Alves, em 11 de novembro de 1974 -

Um dia comum e fresco em Salvador, na primavera de 1974. A adolescente Perpétua Maria Portela saiu de casa, em Cosme de Farias, para a aula de datilografia, na Barroquinha. Depois do curso, estava combinado que ela e o irmão, Jorge, iriam ao Cine Tamoio assistir àquela estreia que todo mundo comentava. Na porta do cinema, a fila era imensa. Já sentada na sala escura, viu uma moça ao seu lado passar mal e outro espectador, nem bem as primeiras cenas apareceram, levantar-se num rompante e sair da sessão gritando: ‘Vá matar o diabo, não a mim!’.

A ideia era mesmo ‘matar’ o tinhoso. Ou, pelo menos, mandá-lo de volta para as profundezas do inferno. Perpétua ficou até o final do filme. Mas, até hoje, guarda as lembranças e o trauma da experiência. Depois de assistir à estreia de O Exorcista, em Salvador, há 50 anos, acabou a coragem para ver filmes de terror, para o resto da vida.

“Eu fiquei vários dias, meses, que não conseguia dormir. Foi uma coisa terrível. Até hoje, não tem quem me faça assistir a um filme de terror. Foi uma sensação terrível. Nunca mais, na minha vida, eu quis assistir a um filme de terror”, conta dona Perpétua, hoje com 68 anos.

A estreia de O Exorcista na capital, em 11 de novembro de 1974, quase um ano depois do filme entrar em cartaz nos Estados Unidos, na semana do Natal de 1973, foi registrada nas páginas de A TARDE em 12 de novembro, com direito a foto da fila na porta do Tamoio, destacada na primeira página do jornal, e relato dos preços dos ingressos inflacionados em quase 50%.

Na ocasião, o jornal reportou, na chamada de capa: “As filas começaram a crescer às 12 horas de ontem. Era o primeiro dia da exibição, em Salvador, do badalado filme O Exorcista. Os empurrões e gente furando fila foram tantos que a Polícia teve que intervir [...]. Diante de tanta procura, os cinemas Tamoio e Tupy cuidaram logo de aumentar o preço dos ingressos: 8 cruzeiros a inteira e 4 cruzeiros a meia”, diz o texto.

Na página 3 da mesma edição, o jornal narra “a infernal premiére de O Exorcista” na cidade, que causou engarrafamentos de veículos e de pessoas na Praça Castro Alves e na Baixa dos Sapateiros. A reportagem também denuncia a maneira truculenta como a polícia da época, em plena Ditadura Militar, tentava conter a multidão.

“Desde as primeiras horas da tarde de ontem, as extensas filas começaram a se formar na Praça Castro Alves e na Baixa dos Sapateiros, provocando, além de engarrafamentos, algumas confusões que culminaram com a agressão, por parte da Polícia, contra um dos inúmeros espectadores que tentava comprar seu ingresso de qualquer maneira”, continua o texto.

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No decorrer do ano de 1974, O Exorcista fez sua estreia em outras capitais. Em Recife (PE), o filme entrou em cartaz em 19 de dezembro, mais de um mês depois da tumultuada premiére em Salvador. Nas capitais, os relatos eram de confusão, longas filas e pessoas saindo das salas antes da conclusão da história dirigida por William Friedkin e inspirada no romance de Peter Blatty. No interior, a situação era outra.

No país de origem, a estreia do filme causou bastante celeuma por conta dos protestos de entidades religiosas, que acusavam o longa de blasfêmia por conta de cenas fortes envolvendo masturbação e crucifixos. Cidades no interior do Brasil seguiam essa mesma tendência, principalmente aquelas que abrigavam comunidades evangélicas fortes. Muita gente passava mal nas salas de exibição, também, diante da quantidade enorme de gosma verde, sangue e outros fluidos que apareciam na tela com grande realismo. O boca a boca sobre as cenas fortes, por sua vez, eram o rastilho de pólvora para inflamar a curiosidade dos espectadores em todas as praças que enfrentaram as convenções morais e religiosas e exibiram o longa-metragem.

O Cine Jandaia foi uma das salas de exibição onde o filme ficou em cartaz nos anos 1970 e em reprise, nos 1980
O Cine Jandaia foi uma das salas de exibição onde o filme ficou em cartaz nos anos 1970 e em reprise, nos 1980 | Foto: Cedoc A TARDE | 01-11-1977

Terapia com psiquiatra

A classificação indicativa do filme no Brasil foi de 21 anos, um fato inédito na época. Mas, Perpétua, com apenas 18, conseguiu entrar no Tamoio. Com as sessões superlotadas e a confusão do lado de fora, os bilheteiros nem pensavam em checar o RG dos espectadores. Ao recordar a experiência de 50 anos atrás, ela conta que ficou muito chocada com a tão comentada cena do crucifixo. Além disso, a gosma verde não a deixou mais em paz. “Era aquela baba verde horrível, então eu ficava só sonhando com aquilo. Acordava assustada”, revela.

Perpétua foi ao cinema sem contar para a mãe que pretendia assistir ao filme com pecha de maldito. Na saída da sessão, encontrou o primeiro namorado, que a perguntou por que ela tinha ido assistir justamente àquele filme. Depois de meses de insônia crônica e pesadelos constantes, contou a verdade para a família. "A minha mãe teve que me levar em um psiquiatra. Na época não tinha psicólogo”. Depois de meses de tratamento, ela se livrou dos sonhos ruins e da dificuldade para dormir, mas o receio dos filmes de terror permaneceu para o resto da vida.

Vizinhas e amigas de Perpétua também foram ver o filme. Algumas gostaram e outras ficaram tão impressionadas quanto ela. O irmão, no entanto, gostou tanto que ajudou a fazer a propaganda entre os colegas de trabalho. Um desses amigos, que assistiu ao filme após a concorrida estreia, relatou a Jorge que as sessões agora exibiam o filme com cortes nas partes mais traumáticas.

O Exorcista permaneceu meses em cartaz em Salvador nos anos 70 e foi reprisado diversas vezes ao longo do tempo. Em 1982, o filme ficou quase dois meses na sala do Cine Teatro Maria Bethânia, conforme mostram as páginas do roteiro cultural de A TARDE, da época. Nos anos 80, ocorreram sessões também no antigo Cine Jandaia.

Com o passar do tempo, as edições com cortes foram sendo substituídas por versões estendidas, à medida que os novos públicos se tornavam mais difíceis de assustar. Em março de 2001, nos 30 anos de lançamento do livro de Peter Blatty, estreou no Brasil a versão do diretor, que tinha entrado em cartaz nos Estados Unidos no ano anterior. Nesta edição, foram acrescidos 11 minutos ao longa exibido nos anos 70.

Em 1982, O Exorcista ficou em cartaz durante semanas no Cine Teatro Maria Bethânia
Em 1982, O Exorcista ficou em cartaz durante semanas no Cine Teatro Maria Bethânia | Foto: Cedoc A TARDE | 16-04-1980

Divisor de águas

Quem nasceu muito depois do lançamento de O Exorcista dificilmente nunca ouviu falar do filme. Há cinco décadas, a história da inocente menina Reagan, que é possuída por um demônio antigo, cruel e bastante resistente aos rituais de exorcismo, figura como ícone da cultura pop. De meme na internet até inspiração para um sem número de produções cinematográficas dentro do seu gênero, o filme não é considerado um clássico a troco de nada.

“O Exorcista tem uma grande importância no cinema. Pode-se dizer que foi um dos primeiros blockbusters. Embora, na verdade, o primeiro blockbuster tenha sido Tubarão, em 1975. Mas, é a base de qualquer filme sobre possessão, sobre demonologia. Eu recomendo muito às pessoas assistirem ao primeiro, o clássico. A versão do diretor tem cenas estendidas, cenas que ficaram de fora, que dão até uma nova visão sobre a possessão e o destino dos personagens”, opina Val Oliveira, quadrinista, criador e curador do Festival Cine Horror (@cine.horror.festival).

Ele conta que a primeira vez que assistiu ao filme foi na infância, em uma das muitas reprises que passavam nas madrugadas, na TV. “Na época, a gente não tinha VHS, eu era bem pequeno, e eu fiquei impressionado pelos efeitos especiais, a menina levitando, girando a cabeça, uau! Incrivelmente, eu não fiquei assustado [...] Eu gosto de O Exorcista, é um filme impactante, se você parar para assistir e perceber todas as nuances e entrelinhas que tem no filme”, recorda.

Ainda de acordo com o cinéfilo, a versão do diretor deixa bem claro o quanto o filme permanece impactante mesmo cinco décadas depois da estreia brasileira. “A forma como eles lidam com a possessão é influência para todo filme de exorcista hoje em dia, como Emily Rose [O exorcismo de Emily Rose]. Tudo o que você assiste sobre exorcismo, a base é esse filme. Inclusive, os efeitos especiais da possessão, da deformação do corpo, dos fluidos corporais sendo lançados sobre outras pessoas”.

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Terror à baiana

Criado por Val Oliveira em 2016 para valorizar o cinema nacional de terror e, principalmente, a produção baiana no gênero, o Cine Horror já teve nove edições. Segundo o cinéfilo e curador, a partir de 2017, a mostra começou a receber filmes estrangeiros e já exibiu produções da América Latina e EUA, Ásia, Austrália e Europa.

“A partir de 2017, pulamos de 15 filmes [na primeira edição] para 70 filmes. E o evento se mantém nessa média de 70/71. Este ano, foram 81 produções”, acrescenta Val. Foi a partir de 2017 também, complementa, que a mostra passou a receber filmes de diretores baianos e de cidades como Juazeiro e Vitória da Conquista.

“O Cine Horror é o primeiro evento de cinema fantástico do Nordeste. Os cineastas da Bahia têm uma produção constante. Hilda Lopes e Calebe Lopes [cineastas baianos] têm uma produção firme, sólida, premiada, inclusive, em vários eventos e festivais. Eles trabalham com a temática mais social, o fantástico, fantasmas, coisas que podem acontecer no cotidiano”, diz Val.

Além do Cine Horror, ele também está envolvido na realização de um festival de literatura, o Necronomicon, que retira seu nome de uma das obras do escritor H. P. Lovecraft, considerado um dos expoentes do chamado terror cósmico, que mistura histórias de horror e extraterrestres.

“Este ano foi o primeiro Necronomicon, que é o nome do livro dos mortos de Lovecraft. É um encontro literário de autores de horror de Salvador. Já temos data para o encontro de 2025, para a segunda edição, que será sexta-feira, 13 de junho. Queremos realizar junto com a décima edição do Cine Horror”, anuncia.

*Colaboraram Priscila Dórea e Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época

*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE

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