Santa Bárbara reúne elementos de culturas religiosas diferentes
Celebração que acontece em 4 de dezembro sobreviveu a um período de esvaziamento
Na coleção do Cedoc A TARDE sobre o ciclo das celebrações de verão tem 245 registros de textos em A TARDE no período de 1912 a 2016 sobre a Festa de Santa Bárbara, que acontece, anualmente, em 4 de dezembro. Essa comemoração é considerada, atualmente, como o início do verão de Salvador. O conjunto de fotografias sobre essa comemoração soma 180 registros. A celebração para a padroeira dos comerciantes do mercado que leva o seu nome e dos bombeiros é a oitava no ranking de referências em A TARDE dentre as 13 celebrações que analisei na minha tese intitulada Festa de Verão em Salvador- Um estudo antropológico a partir do acervo documental do jornal A TARDE sob a orientação da professora Fátima Tavares e apresentada há seis anos no Programa de Pós-graduação em Antropologia da Ufba (PPGA).
O ranking de publicações em A TARDE é liderado pelas festas do Bonfim e Iemanjá. A análise desse material consegue mapear as estratégias que resultaram na persistência de uma comemoração que passou por vários períodos com ameaça de desaparecer, mas hoje alcançou uma alta visibilidade especialmente a partir da ênfase nos elementos do encontro com as religiões afro-brasileiras por meio do culto a Iansã. A festa, inclusive, foi reconhecida como patrimônio imaterial da Bahia há 15 anos pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC).
A primeira referência sobre a Festa de Santa Bárbara que encontrei na coleção de textos de A TARDE é de 1918. Trata-se de um registro curto sobre a celebração de uma missa na Igreja do Passo por meio de um pedido dos comerciantes do Mercado de Santa Bárbara. Não houve referência a uma procissão.
Após essa nota, A TARDE só voltou a fazer um registro sobre a festa 12 anos depois. Nesse texto publicado na edição de 4 de dezembro de 1930, a reportagem enumera os organizadores da festa, como comerciantes portugueses, mas a ênfase é na contribuição de mulheres negras para que ela fosse estabelecida. Trata-se de mulheres que por meio do seu trabalho, como ganhadeiras, ou seja, as escravas que tinham autorização para realizar um ofício fora do espaço da sua escravização, ou libertas. O negócio da maioria dessas mulheres tinha como foco a alimentação- venda de comida pronta ou dos ingredientes para este fim.
“Embora tal festa fosse feita às expensas das creoulas, que commerciavam no mercado e nos quiosques figurando no primeiro plano entre ellas, María do Carmo, Damiana, Martinha da “Farinha” e outras e outras havia ainda o concurso da "portuguesada”– Antônio Niger, Manoel Mattos – Felippe Mello ؘ– Souza Vianna – Manoel J. Gondinho, Manoel “Meu bem” – Manoel “Queixadas” – Bernardo Ferrera da Rocha, Alexandre da Banca, Joaquim Manso – e muitos outros e também dos embarcadiços generalizando-se os festejos que eram pompozos na capella até os pontos distantes do commercio, durante o dia e à noite. (A TARDE, 4/12/1930, p.2).
A importância das mulheres negras no comércio de alimentos em Salvador é detalhada no livro Mulher Negra na Bahia no século XIX, da historiadora, doutora em antropologia e professora da Uneb, Cecília Soares. De acordo com o estudo, a importância delas era tão grande que chegavam a regular o preço do peixe na capital baiana. Na edição dessa coluna, em 13 de novembro de 2021, o protagonismo dessas mulheres foi contado por meio de uma greve realizada pelas fateiras em 1937. Foi um protesto contra o tabelamento de preços de alimentos.
Assim como as fateiras, as baianas de acarajé são a linha contínua dessa tradição. Esta categoria tem um forte protagonismo na Festa de Santa Bárbara, mas por meio da associação com Iansã. Nas culturas dos povos, especialmente os que vieram do hoje território nigeriano, Iansã é a padroeira dos mercados e de quem neles atua. As baianas a tomaram como sua padroeira, pois, uma das suas comidas votivas é o akará, conhecido em Salvador como acarajé.
Renascimento
A partir da retomada de publicação de notícias sobre a Festa de Santa Bárbara em 1930, A TARDE destacou, sobretudo, a decadência da festa. Já na década de 1970 com o caruru incorporado à programação, o discurso concentrou-se na dificuldade anual dos comerciantes para realizá-lo na proporção capaz de atender a todos os devotos que participavam da festa.
Na coleção de fotografias uma imagem de 1985 mostra poucas pessoas na procissão por ruas do Centro Histórico. Ao lado há acúmulo de lixo. Neste período, a região, especialmente o Pelourinho, passava por uma fase de deterioração visível principalmente pelo mau estado de conservação dos imóveis. Em 1991, o governo do Estado começou um processo definido como de revitalização, mas que consistiu na aposta de multiplicação das unidades comerciais, algumas de lojas de griffie, com a retirada de moradores levados para conjuntos habitacionais distantes da região, o que provocou polêmica. O grupo cultural Olodum foi um dos mais ferrenhos defensores dos moradores do local, um processo que esteve documentado pelo Bando de Teatro Olodum na trilogia que inclui Ó Paí Ó, espetáculo que mais tarde virou filme e série de TV. A parte dois do filme está em exibição nos cinemas. O processo de revitalização prosseguiu até o início dos anos 2000.
A partir da década de 1990, a Festa de Santa Bárbara foi ganhando novo vigor. A ida da celebração para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que tem uma liturgia centrada na cultura afro-brasileira, para mim, teve um papel decisivo nessa retomada. Em 2008, a festa foi proclamada patrimônio imaterial da Bahia, mais um reforço para a sua visibilidade.
Desde então, a Festa de Santa Bárbara, que é uma mártir do cristianismo, passou a figurar como uma das grandes celebrações de verão. Em 2015, quando realizei o trabalho de campo na comemoração, policiais militares que trabalharam no evento afirmaram que, durante a manhã e início da tarde cerca de 30 mil pessoas passaram pelo Pelourinho e áreas próximas.
Uma das características da festa é a sua expansão por vários endereços. A missa tem acontecido no Largo do Pelourinho. A procissão passa por ruas do Centro Histórico e tem importantes paradas: a primeira é no Quartel do Corpo de Bombeiros, localizado na Barroquinha. Em alguns anos há acesso à área interna do quartel. Nas décadas de 1970 até 1990 havia o rito de benção da água acondicionada em uma das viaturas da corporação. Em seguida os jatos d´água eram direcionados ao público, um auxílio considerável por conta do calor. Mas nem sempre a corporação adota esse procedimento por questões variadas, como, por exemplo, economia de água. Outra oferta dos bombeiros costuma ser a distribuição de caruru.
A procissão faz outra pausa no Mercado de São Miguel, na Baixa dos Sapateiros, e a mais importante que é a no Mercado de Santa Bárbara, onde estão os comerciantes responsáveis pela festa há séculos. Eles costumam oferecer um caruru e, em seguida, o samba está liberado. Assim, a procissão retorna para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos com um público bem reduzido.
Encontros
A Festa de Santa Bárbara é que a tem um dos mais visíveis encontros entre culturas religiosas diferentes. Segundo a tradição católica, Bárbara era uma moça de extrema beleza. Ao se converter ao cristianismo, em um tempo de perseguição a essa prática religiosa, decidiu permanecer virgem, o que enfureceu seu pai. Ele a denunciou às autoridades.
Bárbara, segundo essa versão, foi torturada e por fim decapitada. Ao retornar da sessão pública do martírio da filha, seu pai acabou fulminado por um raio. O vermelho que fica em evidência nas suas vestes é por conta do martírio.
Já Oyá tem o título de Iansã. Este pode ser traduzido como “Senhora do Nove”, porque ela tem domínio sobre todas as dimensões que formam o mundo na cosmogonia iorubá. Oyá-Iansã domina os raios e os ventos, veste vermelho e dentre as suas comidas preferidas está o akará, um bolinho feito à base de feijão fradinho, cebola e sal, frito no azeite de dendê. Na tradição angola uma divindade com características semelhantes é chamada de Bamburucema.
A comida preferida de Iansã se tornou uma das mais conhecidas na Bahia: o acarajé. Fora dos terreiros e nos tabuleiros das vendedoras chamadas de baianas ele ganhou acompanhamentos ao longo do tempo: vatapá, caruru, salada de tomate, pimenta e camarão. A maioria dos consumidores arremata o consumo com uma dose de Coca Cola, em uma amostra da dinâmica alimentar que articula a tradição e o moderno.
Em 2004, especialmente por conta de ações de intolerância e racismo religioso contra o alimento por membros de denominações neopentecostais, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconheceu o ofício das baianas como o patrimônio imaterial do Brasil. Assim está resguardada a forma de preparo e a venda por mulheres que seguem uma tradição vinculada à herança cultural africana que inclui os seus aspectos religiosos inclusive as devoções a orixás e inquices. É por isso que a Festa de Santa Bárbara tem tantas nuances e, com isso, os elementos que garantiram a sua persistência.
Confira as páginas de A TARDE sobre a festa:
Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia