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São Jorge conectou duas religiões em ritos no Corpus Christi

Protagonismo do santo nas antigas procissões conectou a data com as celebrações nos terreiros

Publicado sábado, 11 de junho de 2022 às 06:00 h | Atualizado em 11/06/2022, 13:30 | Autor: Cleidiana Ramos
Multidão sobe a escadaria para o interior do Terreiro Casa Branca
Multidão sobe a escadaria para o interior do Terreiro Casa Branca -

A Festa de Corpus Christi é o único dia na liturgia católica em que a presença de Jesus na eucaristia, um dogma, ou seja, um princípio no âmbito da fé e que não pode ser contestado por quem pratica o catolicismo, deixa o recolhimento do sacrário, recipiente que fica em lugar de destaque no altar central das igrejas, e é levado em desfile pelas ruas.

Em Salvador nesta mesma data os terreiros de candomblé Ilê Axé Iyá Nassô Oká, conhecido  também como Casa Branca do Engenho Velho da Federação; Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (Gantois), e Ilê Axé Opô Afonjá iniciam seu calendário de festas públicas com homenagens para Oxóssi. A conexão entre essas duas festas é atribuída à importância que São Jorge, associado a Oxóssi no encontro entre candomblé e catolicismo, ocupou nas procissões de Corpus Christi. Essa celebração foi noticiada por A TARDE seguidamente. 

“S. Thomaz de Aquino, um dos mais bellos luzeiros da egreja, compoz o officio divino, um dos mais completos, piedosos e bellos tanto pela energia das expressões como pela doutrina que nelle se expande sobre todo o mysterio eucharistico. O que mais realça essa festa e a distingue é a procissão solene com que o corpo de Jesus Christo é levado em triumpho pelas ruas com muita ostentação e com uma pompa magnifica”. (A TARDE, 19/6/1930, p.2). 

Dez anos depois, a notícia sobre a festa ficou centrada na programação das igrejas da cidade. Em 1950, o texto de registro da celebração foi acompanhado por duas imagens. Em uma o destaque é para o pálio, a cobertura que protege o ostensório, onde está a eucaristia, para o desfile público. A segunda imagem mostra pessoas ajoelhadas, com destaque para mulheres e crianças. 

“À passagem, ontem de Jesus Sacramentado, pelas ruas da velha cidade de Tomé de Souza, milhares e milhares de fiéis ajoelhavam-se, em adoração ao Salvador do Mundo, presente na Sagrada Hóstia, em riquíssima custódia. As varas do pálio eram seguras por altas autoridades civis e militares. A procissão de Corpus Christi que saiu da Catedral Basílica constitui um dos mais imponentes cortejos religiosos dos últimos anos, sendo o desfilar assistido, com grande recolhimento, por uma verdadeira multidão. Nele tomaram parte quase todas as agremiações e cortejos católicos”. (A TARDE, 9/6/1950, p.2).  

Celebração

As festas realizadas nos terreiros na mesma data demoraram para virar notícia. Em uma rápida pesquisa nas edições de A TARDE, a primeira ocorrência é da década de 1980 e no contexto de uma desapropriação de área para proteção da Casa Branca. No ano anterior, o terreiro havia sido reconhecido como bem cultural brasileiro pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) que depois teve as atribuições reunidas em uma estrutura de instituto denominado pela sigla Iphan. 

No texto é feita a referência à festa que seria celebrada pela comunidade da Casa Branca em homenagem a Oxóssi. 

A TARDE noticia  Corpus Christi
A TARDE noticia Corpus Christi |  Foto: Arquivo A TARDE
 

“Hoje, os atabaques do Terreiro da Casa Branca, na Vasco da Gama, vão tocar bem mais alto, na festa de Oxóssi. O prefeito Manoel Castro, durante a festa, vai assinar, às I4h30min, o decreto que declara de utilidade pública para fins de desapropriação a área de 6,306 metros quadrados do tradicional candomblé da Bahia”. (A TARDE, 6/6/1985, p.2). 

No mesmo dia foi também anunciado o edital de licitação para construção de uma portaria e posto policial no Parque São Bartolomeu, outra importante área para os ritos das religiões afro-brasileiras, e o envio, pela prefeitura, de um projeto de lei à Câmara Municipal delimitando a área do Ilê Axé Opô Afonjá que também celebra Oxóssi no mesmo dia da Festa de Corpus Christi. 

“Com essa medida ficam proibidos os desmatamentos e novas edificações ou empreendimentos que não sejam destinados exclusivamente ao funcionamento dos ritos de candomblé. A área de proteção rigorosa compreende as edificações de uso religioso e seu entorno, a área verde contínua e a de uso residencial. É considerada de área verde de proteção cultural e paisagística aquela vinculada à imagem da cidade, seja por caracterizar monumentos históricos significativos da vida e construção urbanas, seja por se constituir em meios de expressão simbólicas de lugares importantes no sistema especial urbano”. (A TARDE, 6/6/1985, p.2). 

Posteriormente, Afonjá e Gantois foram também reconhecidos como patrimônio cultural do Brasil. Atualmente, dez terreiros de candomblé são tombados pelo Iphan. Além da Casa Branca, Gantois e Afonjá são reconhecidos como bens culturais brasileiros o Bate Folha, Ilê Maroiá Láji (Alaketu), Oxumarê e Tumba Junsara, localizados em Salvador; Seja Hundé, situado em Cachoeira e Ilê Agboula em Itaparica. Do grupo, a Casa das Minas, sediada no Maranhão é o único fora da Bahia. 

Proeminência 

Na Bahia, talvez a longa tradição da associação de São Jorge à fartura de colheitas o fez ser aproximado ao orixá Oxóssi. Na tradição do povo ketu, um dos grupos culturais vindos do atual território da Nigéria, seu patrono Oxóssi é o especialista na atividade da caça entendida como a forma de garantir a alimentação da sua comunidade. Além disso, ele é o protetor das florestas. Os ketu tiveram forte proeminência no legado de tradições para a formação cultural baiana especialmente no ambiente religioso. 

Não se tem uma hipótese segura sobre o porquê de três dos importantes terreiros da chamada tradição Ketu iniciarem seu calendário religioso no dia de Corpus Christi. Mas uma das interpretações mais conhecidas é o encontro entre elementos do culto de Oxóssi com a celebração católica à memória de São Jorge. Este santo tinha proeminência na procissão de Corpus Christi em Portugal muito antes desta nação ter reivindicado a posse do território brasileiro como sua colônia. 

No livro Procissões Tradicionais da Bahia, de João da Silva Campos, há o relato da importância que São Jorge ocupava no modelo português da procissão e que depois se repetiu no Brasil: 

“São Jorge a cavalo, luxuosamente arreiada a montaria, com numeroso e luzido estado-maior, e os tradicionais pretos bailando à retaguarda; santos, anjos, sátiros, ninfas, diabos, feiticeiros, gigantes, deuses da mitologia helênica e romana, reis, imperadores; Jesus Cristo e os doze apóstolos. Todo esse heteróclito séquito apresentava-se entremeado de danças, momos e invenções de mouros, negros e ciganos, de mercadores, de espadeiros, e de outros ofícios”. (Procissões Tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, páginas 330 e 331). 

Segundo Silva Campos, São Jorge substituiu Santo Iago, que chegou a ser padroeiro de Portugal, à frente da procissão com referências de realização já no século XIV. Mas por decreto, o rei Dom João I, deu precedência à imagem de São Jorge, pois Santo Iago era também o padroeiro de Castela, território espanhol. Portugal e Espanha tinham uma relação marcada por atritos frequentes.  

“Daí então foi que o lendário patrono da cavalaria passou a tomar parte na procissão. Logo, esta já se fazia em Portugal no ano de 1385.” (Procissões tradicionais da Bahia, João da Silva Campos, p.332). 

Se Corpus Christi já era uma festa importante em território português ganhou em Salvador ainda mais protagonismo. Esta foi a primeira celebração oficial realizada após a chegada de Tomé de Souza para fundar a primeira cidade brasileira. A data da procissão, que em 1549 foi em 13 de junho, chegou a ser uma das sugeridas como o marco do aniversário de Salvador para as comemorações dos 400 anos. 

Para Waldir Freitas de Oliveira, em Santos e Festas de Santos na Bahia, a proeminência de São Jorge na procissão de Corpus Christi foi o que fez com que ele ganhasse popularidade e adoção por semelhança nas religiões afro-brasileiras com associação a Oxóssi, como ocorre no candomblé baiano, e a Ogum, que é uma aproximação mais frequente no Rio de Janeiro e na umbanda. 

“A procissão de Corpus Christi, também conhecida como a do Corpo de Deus, foi algo, portanto, que se incorporou, desde os seus primeiros momentos de existência, aos costumes da população de Salvador, havendo passado até a figurar em seu folclore, através da quadrinha, até bem pouco tempo, muitas vezes repetida pelos mais velhos: Amanhã é dia santo/dia de Corpo de Deus/Quem tem roupa vai à missa/quem não tem faz como eu”. (Santos e festas de santo na Bahia, Waldir Freitas de Oliveira, p. 34). 

A procissão de Corpus Christi, segundo Silva Campos, era uma das celebrações que deveria receber contribuição oficial especialmente da Câmara. Havia também neste conjunto as chamadas procissões reais e até previsão de pagamento de multa para quem não participasse. O autor cita diversos atritos entre autoridades civis e eclesiásticas por desentendimentos relacionados ao custeio e participação nas celebrações. Atualmente, embora sem as homenagens nos moldes do passado, essa memória da relação que a Câmara de Vereadores manteve com a procissão de Corpus Christi é lembrada em uma parada à frente da sede do legislativo municipal. 

Esses diversos elementos, portanto, indicam como uma celebração católica dialoga também com as referências culturais de matrizes africanas. Além disso é impressionante como o culto a São Jorge, originário do chamado cristianismo oriental, com uma das suas origens atribuídas ao território da atual Turquia, é tão rico em referências de culturas aparentemente tão diferentes.   

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