Tombamento da Casa Branca há 40 anos inovou política de patrimônio
Sessão realizada em Salvador foi marcada por um debate acalorado que estabeleceu primeiro bem afro-brasileiro
Na segunda metade do século XIX a institucionalização do candomblé na Bahia foi ganhando forma. De cultos domésticos ou celebrações pontuais, as formas rituais e cosmogonia de várias civilizações africanas organizaram-se de forma mais precisa. O Ilê Axé Iya Nassô Oká, que ficou mais conhecido como Casa Branca do Engenho Velho da Federação é uma das referências neste processo. São muitas as histórias já descobertas em pesquisas como as de Lisa Earl Castillo, Luís Nicolau Parés, Renato da Silveira e outras em processo. Considerado o mais antigo terreiro de candomblé da tradição dos povos que vieram do território da atual Nigéria, a Casa Branca, há 40 anos, se tornou o primeiro bem cultural de origem afro-brasileira reconhecido como patrimônio do Brasil.
“Outra decisão, considerada histórica pelo secretário de Cultura do MEC e presidente do Conselho, Marcus Vinícius Villaça, foi a do tombamento da casa e área total onde funciona o Terreiro Casa Branca, na Avenida Vasco da Gama, por três votos a favor, dois contra, duas abstenções e um voto nulo. Esta foi a primeira vez que a SPHAN tombou um monumento ligado à cultura negra. Eufórico, ao final de uma decisão que por pouco não foi negativa, Marcus Villaça deixou a mesa e foi "tomar um pouco de ar" numa das sacadas, exclamando: "Ah, meu Deus, até que enfim. Há um ano que luto por isso". (A TARDE, 1/6/1984, p.3).
Além da importância de considerar como patrimônio do Brasil um edifício pertencente a uma prática religiosa que foi perseguida e marginalizada inclusive pelo Estado, o debate sobre o tema foi um divisor de águas sobre a ideia de formação cultural brasileira. Em 1984, o candomblé estava há apenas oito anos na condição de liberdade da tutela exercida pela Delegacia de Jogos e Costumes, ou seja, era ainda um caso de polícia. Por outro lado, a ideia de patrimônio nacional valorizava a arquitetura europeia afinal desde o Decreto-Lei nº 25, de 1937, o que predominava com esse status eram as igrejas e outras construções do período colonial, como sobrados.
“Até então o que se considerava patrimônio era a arquitetura chamada de pedra e cal e herdada dos colonizadores: as casas de câmera e cadeia, as igrejas barrocas, os fortes, o casario colonial, ou seja, o que o movimento moderno brasileiro reconhecia como as origens da nação brasileira”, explica Fábio Velame, doutor em Arquitetura, professor e diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Coordenador do grupo EtniCidades, que realiza pesquisas na área de Urbanismo a partir da perspectiva étnico-racial, o professor Fábio Velame é um especialista em monumentos das populações tradicionais, como os terreiros. A configuração desses espaços passou a ter visibilidade sobretudo a partir da política de organização dos movimentos que reuniram em torno da defesa de uma ação os intelectuais, artistas e organizações negras de várias áreas.
No final da década de 1970 e início dos anos 80 ocorreu o fortalecimento dos movimentos negros políticos e culturais, como os blocos afro, e a redemocratização brasileira após 21 anos de ditadura militar. Foi também um período de efervescência no cenário internacional com os movimentos de independência de países africanos e a denúncia do apertheid na África do Sul. “Houve um contexto que destacou a necessidade de reconhecimento e valorização da cultura negra no Brasil com o alargamento da visão do que era patrimônio”, acrescenta o professor Fábio Velame.
Debate
A proposta do tombamento da Casa Branca não foi um ponto pacífico no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), que era, na época, a denominação do setor que se transformou no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O debate foi acalorado com as defesas do repúdio à proposta a partir de argumentos, como o do conselheiro Gilberto Ferrez, de que o imóvel não estava em nome da comunidade.
Relator do processo, o antropólogo Gilberto Velho, em entrevista para A TARDE reiterou a importância da Casa Branca para a cultura negra brasileira e fez uma análise articulada à avaliação que hoje é unânime sobre a força daquela iniciativa.
“O terreiro está em plena atividade e devemos não submeter e ferir as regras da SPHAN mas agir de acordo também com o que pensa e quer a comunidade. Os critérios dos grupos com os quais lidamos são variáveis, sempre muito importantes”. (A TARDE, 1/6/1984, p.3).
O placar, de acordo com a reportagem de A TARDE, registrou três votos a favor, dois contra, duas abstenções e um voto nulo. A aprovação da proposta de tombamento foi comemorada por Marcus Vilaça, então secretário de cultura do MEC e presidente do conselho do Sphan.
“Congratulo-me com o povo da Bahia, neste momento em que é reconhecida uma das mais importantes vertentes da cultura africana. Tomamos uma deliberação absolutamente inovadora e modernizante no sentido da visão do que é cultura, quebrando as amarras da ideia de que só o que vale como bem cultural, por exemplo, é o barroco". (A TARDE, 1/6/1984, p.3).
Transformações
De fato, a partir daquela sessão de 1984 muita coisa mudou no âmbito da discussão de patrimônio. Uma dessas transformações foi o conceito de patrimônio imaterial, ou seja, algo que não se pode tocar, como o jeito que se prepara acarajé ou que se organiza uma festa de largo, tem força para despertar conexões importantes de uma coletividade, inclusive para além do local onde ocorre com mais frequência.
“A partir do processo da Casa Branca importantes intelectuais que estiveram inclusive envolvidos naquele processo, como os professores Ordep Serra e Márcia Santana passaram a se empenhar no campo de construção de toda uma política e do pensamento sobre o patrimônio imaterial”, diz Fábio Velame. E o campo continua avançando em reflexões importantes, como a existência de formas de pensar o mundo e se organizar existentes nestas comunidades que é diferenciada da seguida por demais grupos da população brasileira. É um indício da diversidade na formação cultural do Brasil.
“Esse tombamento foi tão importante que hoje temos um alargamento teórico e crítico desses processos. Há dois grandes grupos na área do patrimônio: o material e o imaterial afinal no universo dos povos tradicionais que estão no território brasileiro, como indígenas, ciganos, quilombolas, povo de terreiro, povo de fundo de pasto e ribeirinhos a forma como eles veem o mundo e seus valores éticos e estéticos não separam o que é material e imaterial. O papel do Estado, seja em qual âmbito for é garantir a proteção tanto para os espaços materiais os protegendo da especulação imobiliária e de outros agentes, como também de garantir o registro de suas práticas e saberes, pois nesses casos os dois lados estão unidos. O necessário é avançarmos em legislação para atender a essas questões”, completa Velame.
Um dos desafios apontados pelo professor é, por exemplo, intensificar a criação de fóruns e conselhos para ter melhor participação dessas comunidades no debate sobre a destinação dos recursos para a garantia de proteção dos espaços com salvaguarda que já são insuficientes e, muitas vezes, continuam a privilegiar, como no passado, os bens de origem colonial.
E a necessidade de luta segue contínua. Se a Casa Branca foi tombada em 1984 houve uma espera de 16 anos para o reconhecimento do segundo terreiro como patrimônio brasileiro: o Ilê Axé Opô Afonjá. A partir daí os processos avançaram de forma mais rápida e a importância da Bahia continua em evidência. Dos 13 terreiros de religiões de matrizes africanas reconhecidos como bem culturais brasileiros apenas um não fica em território baiano: a Casa das Minas, localizada no Maranhão. Assim, como no século XIX, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, que tem o orixá Xangô, que é o Senhor da Justiça, como patrono continua apontando novos caminhos.
Confira as páginas de A TARDE sobre o tema:
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia