A obra de José Murilo de Carvalho
Confira a coluna Conjuntura Política desta segunda-feira
O cientista político e historiador José Murilo de Carvalho faleceu na última semana, deixando um legado valiosíssimo de contribuição ao debate profundo sobre os rumos do país. A publicação em 1987 da sua tese de doutorado “Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi”, analisou o período de transição entre o fim do Império e o início da República no Brasil.
O historiador revela que havia uma farsa na Proclamação da República em 1889, já que a sociedade brasileira se encontrava ausente da participação efetiva, uma vez que a república emergente estava sob controle das elites urbanas e militares, muitas vezes sem elos orgânicos com as camadas populares.
Em que resultou essa nova república? As antigas estruturas do poder imperial foram substituídas por uma nova elite no poder, mas sem mudanças radicais e profundas, o que levou à manutenção de nova “velha ordem”, ou seja, embarcamos em um processo de republicanização limitado e carcomido, afastando a inclusão social e política como elemento fundamental para uma revolução democrática.
Outra agenda de pesquisa importante de José Murilo foi sistematizar o debate conceitual sobre mandonismo e coronelismo. Em uma primeira dimensão, o mandonismo nada mais é do que a expressão do poder descentralizado, informal e fragmentado.
Já o coronelismo funcionou como uma extensão do mandonismo dos "coronéis", efetivando um controle político e social de maneira autoritária e ligado à propriedade da terra e ao controle de recursos públicos. José Murilo agigantou a análise do coronelismo no Brasil ao dialogar intensamente a partir da década de 1980 com o jurista Victor Nunes Leal que publicou “Coronelismo, Enxada e Voto” (1948), um marco na análise do poder político no Brasil.
José Murilo reitera que a obra de Leal foi original ao entender que o coronelismo não é um mero fenômeno da política local, não é mandonismo. O coronelismo funcionou como um sistema complexo de conexão entre município, Estado e União, isto é, entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação sistêmico em nível nacional.
No século XXI, a publicação do livro "Cidadania no Brasil: O Longo Caminho" (2002) inseriu novamente José Murilo no debate sobre os destinos da sociedade brasileira. O livro explora a história da cidadania no Brasil ao longo dos séculos, expondo uma ferida aberta: a abolição da escravidão não alterou a exclusão da população que fora escravizada, uma vez que muitos permaneceram marginalizados em termos de direitos e participação política, o que nos trouxe até aqui com um passado nefasto no que se refere às desigualdades socioeconômicas e o acesso aos direitos. O legado de José Murilo seguirá vivo e revisitado entre o passado e o futuro do Brasil.
*Cláudio André de Souza é Professor Adjunto de Ciência Política da Unilab e um dos organizadores do “Dicionário das Eleições”. E-mail: [email protected]