As carnes salgadas que alimentam o Brasil

Desde os primórdios da humanidade, o homo sapiens precisou aprender a conservar alimentos para poder desbravar novos territórios e sobreviver a invernos, secas e estiagens. Está em nossa gênese a conservação de alimentos. E sobre conservação de carnes, temos muita cultura acumulada ao longo de séculos, a ponto de hoje estarmos buscando sofisticação nas técnicas da charcutaria e na produção gourmet de itens que antes eram apenas de sobrevivência, voltado para atar a fome. Do charque e da carne de sol para sobreviver, passamos a apreciar como item de culinária sofisticada as carnes salgadas e defumadas.
O processo de colonização do Brasil, realizado por mestiços, índios, negros e alguns poucos brancos, denominados genericamente de bandeirantes, foi viabilizado por uma dieta à base de alimentos que podiam ser levados mata adentro sem condições mínimas de refrigeração. Basicamente, comia-se farinha de mandioca, charque e as frutas, hortaliças e caças que se encontravam pelo caminho.
Mais radical era a provisão dos navios de carga e navios negreiros. Além de algum pescado que pudesse se obtido nas longas travessias, tripulantes e a imensa massa de escravos que passavam de 40 a 80 dias no mar se alimentavam de uma ração formada por farinha e charque, além de inhame e aipim e alguma parcela de melaço de cana ou mel de abelha. Eram os alimentos que podiam sobreviver ser apodrecer nos úmidos e fétidos navios.
A história da carne do sol na Brasil se confunde com sua irmã, a carne de charque. Tudo indica que esse é um produto genuinamente brasileiro, que começa a ser produzido na região de Aracati, no Ceará por obra do português José Pinto Martins, em meados do século XVIII. Provavelmente, ele adaptou as técnicas usadas em Portugal para conservação de peixes para a conservação da carne de boi, levado para aquela região.

Sem caminhões frigoríficos e nem mesmo geladeiras, restava ao criador de gado abater as reses e salgá-la, retirando a umidade e permitindo seu transporte e comercialização. A técnica daquele período consistia em aproveitar o sal produzido na região cearense para mergulhar mantas da carne do boi recém-abatido e retirar a umidade. Depois, as mantas passam para a salga seca quando são colocadas umas sobre as outras, entremeadas por sal, formando as pilhas que periodicamente tem as posições das carnes e das próprias pilhas invertidas. O processo termina com a dessecação ao sol em duas ou três etapas. O processo dura ao todo 21 dias.
Ainda no século XVIII, esse mesmo charqueador pioneiro teve que abandonar a região de Aracati por causa de uma fulminante seca que dizimou seu rebanho. Mas ele aproveitou uma oportunidade criada com a ação dos bandeirantes, que exterminaram anos antes as populações das missões jesuítas no sul, onde hoje está o Rio Grande do Sul. Nas incursões em busca de índios catequisados para ser usados como escravos, os bandeirantes deixaram para trás rebanhos inteiros levados um século antes pelos jesuítas para a região. Os bovinos passaram a viver soltos na natureza.
Pinto Martins se instalou em 1780 no sul e implantou ali uma próspera charqueda (similar do que hoje chamamos de abatedouro), logo rodeada por outras muitas. De lá, saiu durante dois séculos a carne dessalgada que alimentou os engenhos de açúcar do litoral nordestino, os navios negreiros, a mineração de ouro e diamante de Minas, Goiás, Mato Grosso e Bahia e toda a população da então mais próspera colônia portuguesa. Um fato curioso é que a carne dessalgada era embalada em bolas forradas de couro para ser transportadas. Essas embalagens eram chamadas de pelotas, nome que batizou em 1835 a até então conhecida Freguesia de São Francisco de Paula como cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
Nesse período a técnica de charqueamento da carne era aplicada a todas as partes do boi, fato que começa a mudar a partir de 1940, no século XX, quando as tecnologias de resfriamento e congelamento começam a chegar ao Brasil e a carne in natura começa a poder chegar ao mercado consumidor. É nesse período que o charque passa a ser produzido apenas com a ponta de agulha e as dobras do dianteiro, que passaram a ter menos valor comercial como carnes frescas.

Hoje o charque é uma carne destinada primordialmente aos mercados do Nordeste e do Norte. Mais recentemente, surgiu a técnica do jerked beef, que é resultado de processo industrial semelhante ao charque, mas com vantagens em termos de tempo e custos de produção por conta do uso de nitrato ou nitrito de sódio ou de potássio. Ele tem uma cor mais avermelhada o ou rósea, diferente da marrom do charque.
Mas nenhum dos dois se assemelha à famosa e saborosa carne do sol, que apesar do nome não pode pegar sol em seu processo de preparação. Reza a lenda que nas casas do sertão, a carne fresca era salgada e penduradas nas cercas sob o sereno da noite para perder a umidade. Quando amanhecia, a dona da casa gritava para o filho: “Tira a carne do sol! A medida era importante para que a carne não desidratasse. Daí ela passou a ser conhecida como carne do sol.
O processo de produção da carne do sol guarda algumas semelhanças com o chearqueamento, mas é muito mais simples. Em tempo idos, chegava-se a sar proporções de sal bastante altas, de até 8% do peso da peça de carne fresca para garantir algum nível de conservação, mas a carne do sol nunca foi um produto que visava a um longo período de preservação de suas condições de consumo como o charque, que poderia sobreviver a meses de armazenamento. Buscava-se apenas mantê-la em condição de consumo por alguns dias após o abate. Hoje, com a geladeira na maioria das casas, ela poder ter teor de sal bastante inferior e manter suas propriedades sem a perda de umidade radical de antigamente.
Para fazer uma boa carne do sol, não é preciso nenhuma técnica especial, como ensina o mestre charcuteiro Fábio Vidal, que estuda o tema há 20 anos e que desde 2016 abriu mão de uma carreira no setor de extração de petróleo para realizar seu sonho de produzir na Bahia artigos de charcutaria de alto padrão. Ele conta que a ascendência espanhola e as constantes visitas aos parentes que vivem em Pontevedra, na Espanha, e produzem chouriços, linguiças e salames como rotina formaram a base de seu interesse e formação na área, mas que fi preciso estudar muito, em cursos na França, Itália, Portugal e Espanha antes de decidir fazer do antigo hobby uma profissão.

“Hoje eu produzo basicamente para grandes chefs de cozinha, fornecendo a eles insumos para que eles possam brilhar”, explica o charcuteiro baiano-espanhol dono da Vidal Charcuteria, empresa que tem em seu portfólio produtos como o chouriço espanhol, peperone, bacon, frios e defumados, além de carnes.
Fábio Vidal conta hoje com reputação nacional e até internacional e é um dos grandes responsáveis pelo crescimento do consumo de carne de porco na Bahia, segundo ele vítima da imagem negativa das criações de suínos misturados com lixo e em condições sanitárias vexatórias. “É a carne mais saudável, mais saborosa e que rende os melhores produtos de charcutaria. Mas a Bahia ainda tem um rebanho ínfimo de suínos, o que dificulta e encarece o processamento das carnes certificadas e Salvador”, decreta.
Fábio Vidal é quem apresenta a receita de hoje da carne do sol, com a vantagem de que essa técnica não exige mais que a carne precise ser dessalgada antes de ser preparada, “Com a técnica certa, a gente faz uma carne do sol saborosa sem precisar do excesso de sal, que tia sua umidade e a torna ressecada”, ensina. E na receita dele, ainda vem uma dica especial para fazer a sua carne do sol ficar ainda mais macia e saborosa. Confira!
Carne do sol no suco de laranja
Ingredientes
1kg de alcatra (ou outra peça de carne de sua preferência)
30g de sal marinho ou sal grosso
5g de açúcar
½ gomo de noz-moscada ralada
Suco integral coado de 4 laranjas
Uma colher de sopa de manteiga
Obs: a proporção do sal e do açúcar em relação ao peso da carne deve ser mantida em 3% de sal e 0,5% de açúcar.
Modo de fazer
Misture o sal, o açúcar e a noz-moscada em uma tigela e povilhe toda a superfície da carne com a mistura de maneira uniforme. Coloque a carne em uma assadeira e deixe descansar na geladeira. Depois de 24 horas, retire o líquido que porventura se acumular na assadeira e vire a posição da carne, colocando para baixo a parte que estava para cima. Deixe por mais 24 horas na geladeira. Após esse período lave a carne em água corrente para retirar a salmoura e seque-a com papel toalha.
Para fritar, despeje o suco de laranja numa frigideira grande, corte a carne do sol em lascas médias e ponha para fritar até que o líquido seque completamente. No final despeje uma colher de manteiga sobre a carne. Se quiser, pode ainda acrescentar uma cebola cortada em rodelas e frita por cima da carne.
