Comida afetiva
Com seu habitual senso crítico aguçado, Anton Ego chegou ao restaurante Gusteau’s com aquele olhar soberbo que lhe é tão peculiar. Sentou-se à mesa e ficou a imaginar o que a cozinha do pretenso restaurante, que tinha um chef totalmente atrapalhado e sem fama, poderia proporcionar a ele, o mais renomado crítico de gastronomia de Paris.
Algum tempo depois, eis que surge o chef trazendo em um prato elegante a comida numa porção minúscula, bem à moda dos parisienses. Anton Ego se serviu educadamente dos talhares e colocou um naco da iguaria colorida na boca. O que se seguiu foi uma ode à gastronomia afetiva. O ferrenho crítico arregalou os olhos argutos, imensamente, e o sabor daquela sublime iguaria o arrebatou e o levou para muito longe: para o cenário da sua tenra e amada infância. O ratattouille era a comida que sua mãe fazia e ele estava degustando um pedaço fiel de lembrança da sua meninice.
Este episódio do filme Ratatouille nos traz, dentre outras reflexões, o conceito da comida afetiva, aquela guardada em nossos corações, despertada ao se deliciar com alguma iguaria de memória de nossas emoções. A que lembra alguém muito especial nas nossas vidas e nos prende pelo estômago e pelo coração.
A chef Rosa Guerra, do Larri Bistrô, acredita que a comida afetiva começa pelo acolhimento ao cliente logo quando entra no estabelecimento e de pronto acredita que está em casa, sentimento que passeia pela comida e tem o propósito de trazer boas lembranças, conforto, que só mesmo um alimento feito com amor é capaz de despertar. Não por acaso, uma das peças decorativas da casa traz como lema a afetividade: “Cozinhar para alguém é fazer cafuné por dentro”, diz o cartaz pendurado na parede do Larri Bistrô.

Larri Bistrô/ Divulgação
Rosa conta que certa vez um cliente foi para o Larri com os amigos, que pediram um filé de moela à base de azeite de oliva e ervas. “Ao dar a primeira colherada, ele imediatamente se emocionou, os olhos ficaram úmidos e disse: ‘Lembrei do meu avô. Ele gostava muito de moela’”, contou a chef.

Agência Hike/ Divulgação
Outro episódio interessante, lembra Rosa, foi quando um cliente a convenceu a cozinhar um prato que lembrava muito a infância e não estava no cardápio fixo do Larri. “O rapaz pediu uma salada de batata com maionese e camarão e saiu com a promessa de retornar e degustar a iguaria, que trazia carinhosas lembranças de quando era garotinho, lembrando a infância.
“Você faz mesmo?”, indagou sobre o pedido”, contou Rosa. Nem é preciso dizer que a experiência gustativa da infância foi um sucesso entre o Larri e o cliente.
Mas há experiências afetivas que contaminam, no melhor sentido, o próprio chef. Foi o caso de Sandro Borges, do Varandagourmet. A história afetiva do chefe se desenrola em torno de uma mesa e uma receita de galinha desossada da avó Maria de Lourdes.

Sandro Borges/ Divulgação
“Era um prato que vovó sempre fazia nas festas da família e todas as vezes que ela ia cortar o frango, a galinha desossada, todo o mundo fazia silêncio. Os 12 filhos e mais de 30 netos ficavam em volta da mesa. Este era o único momento em que se fazia silêncio, o de se cortar a galinha sem ossos com o recheio de farofa de miúdos”, conta Sandro em sua mais doce lembrança da vó Lourdinha.
A galinha desossada fez muito sucesso em vários episódios da vida de Sandro, quando ele ainda nem sonhava em aterrissar na área de gastronomia. As pessoas, em várias oportunidades, pediam, com insistência, àquela altura, o já famoso frango desossado da vó Lourdinha. Sem que ele percebesse, a galinha da sorte era um amuleto para o resto da vida de Sandro, uma receita mágica que um dia o levou para o lugar onde ele sempre deveria estar: o mundo da gastronomia.
Ao longo do seu processo evolutivo como chef, Sandro passou a rechear o frango desossado com fumeiro em vez da farofa de miúdos, que não gostava muito. “A farofa próximo da galinha, molhava e virava um pirão. Então, quando vi um fumeiro, pensei: ah, vai ficar ótimo dentro da galinha da vovó! Então, criei esse recheio que era fumeiro, banana da terra e queijo”, explicou.
Com o passar dos anos, o chefe criou o Varandagourmet, quando servia somente o prato que a Dona Maria de Lourdes inventou.
“Comecei a servir somente ela, a galinha da vovó. Depois, o negócio cresceu e hoje vou inaugurar o restaurante O Porco, mas terá como carro-chefe a Prometida, porque ela é recheada com fumeiro, a carne do porco”, conta entusiasmado.
Para as irmãs Thais e Helena, sócias do Restaurante Manjericão, por se tratar de um espaço familiar e fruto da energia criativa e amorosa que passou dos pais para elas, toda e qualquer iguaria do restaurante resulta em afetividade. Até porque, contam, o tempero do cardápio, simples e muito caseiro, remete ao que há de mais familiar, que lembra bem o aconchego dos pais e vai direto para o coração do público.
“Não raro, ouvimos que entrar no Manjericão é como atravessar um portal interdimensional dentro da cidade, se conectar com a natureza e sentir paz. Outros dizem que o nosso tempero lembra a comida de vó”, diz Thais.
Já Helena sempre ouve comentários sobre os pratos produzidos pelo restaurante e como eles trazem lembranças e histórias das receitas que são feitas no aconchego dos lares. Não é raro ela ouvir comentários dos clientes sobre o quanto lembram da mãe, da avó.
“Uma cliente sempre comenta sobre o vatapá vegano, sem o camarão, que a mãe fazia, pois ela não podia comer o crustáceo. Quando vem ao restaurante, a cliente sempre comenta que o prato traz muitas lembranças da mãe,da infância dela, por comer o vatapá sem camarão. Outra comida que lembra muito a infância das pessoas é o omelete, uma iguaria simples que criança adora. A gente sempre tem omelete por aqui porque o tempero é simples e as pessoas dizem que lembram a comida de infância”, afirma.
E para homenagear o chef mais chato, mas ao mesmo tempo mais divertido do cinema, hoje a coluna Histórias & Sabores vai dar a receita do ratattouille, feita pelo restaurante Manjericão.

Olga Leiria/ Ag. A Tarde
Receita de Ratatouille
Ingredientes:
2 Abobrinhas
2 Berinjelas
1 Pimentão amarelo
1 Pimentão vermelho
Azeite extravirgem a gosto
Tomilho a gosto
Sal a gosto
Pimenta moída a gosto
Molho de tomate caseiro suficiente para cobrir o fundo da assadeira
Modo de preparo:
Forre o fundo de uma assadeira com papel alumínio e depois cubra com o molho de tomate caseiro.
Corte os vegetais em rodelas finas. Monte os vegetais intercalando as cores e mantendo a mesma ordem para obter uma aparência bonita até completar a assadeira.
Depois que a assadeira estiver completa, polvilhe sal, pimenta moída na hora e tomilho. Regue com um pouco de azeite e cubra com papel alumínio.
Leve ao forno por 40 minutos a uma temperatura de 180°C a 200°C.