A brasilidade de Tarsila impressa nas roupas da Osklen
A recente coleção-cápsula da marca Osklen nos inspirou a pensar sobre a roupa, a arte, a potência do estilo e a identidade nacional. Seduzido pelo corpo disforme de Abaporu (1928), pelas disposições cromáticas de Palmeiras (1925) e pela exorbitância das formas de Antropofagia (1929, que traz a junção do "Abaporu" com "A Negra), Oskar Metsavaht conseguiu imprimir, mais uma vez, o seu DNA nas peças criadas em homenagem a esta grande artista brasileira da fase modernista que inspirou o movimento antropofágico, Tarsila do Amaral.
Os espectadores e fashionistas tiveram a oportunidade de conferir as roupas no dia 28 de agosto durante a São Paulo Fashion Week (SPFW), distribuídas entre vestidos, saiais, blusas, chemises, macacões e tops ajustados como corset; além de uma camisaria e calças clochard. Na cartela de cores, o branco, areia, caqui e o vermelho, e é claro, muita estampa. Entre os tecidos, destaque para o linho, a seda, algodão reciclado e couro de pirarucu e salmão. A silhueta apresentou formas geométricas em técnicas de moulage e alfaiataria. Entre os acessórios, chamou atenção a bolsa de madeira, lembrando uma maleta de pintura.
Fotos: Divulgação
Para a criação das peças, o designer buscou se aproximar do grafismo dos traços puros dos desenhos e esboços, feitos com lápis ou nanquim pelas mãos da artista. E segundo Oskar, o maior desafio foi não interferir na obra de Tarsila. Eu quis manter o trabalho dela puro e então "imprimi-lo" em novas formas. O resultado tinha que ser algo novo com a expressão e a alma da arte dela e o design e estilo da Osklen”.
Nessa conjunção entre arte e moda, um tema em peculiar emerge com força e vitalidade: a identidade nacional. Não só Tarsila soube retratar muito bem um período do Brasil que se modernizava e toda sua urbanidade, com máquinas e trilhos, símbolos do novo tempo; bem como trouxe à tela temas tropicais brasileiros, exaltando a nossa fauna e flora. Assim, numa segunda fase do seu trabalho, que desencadeia o movimento antropofágico, a ideia era digerir as influências europeias numa arte eminentemente brasileira. Modernismo e antropofagia numa alusão à universalidade e localidade. Também na marca de Oskar Metsavaht vislumbramos essa característica aparentemente paradoxal que mescla técnicas e influências globais com as peculiaridades de um fazer local, que se revelam numa expressão com estilo marcadamente brasileiro. Apropriando-se do lifestyle brasileiro, a grife une urbanidade e natureza, sofisticação e despojamento, orgânico e tecnológico, global e local. O próprio designer revela: “sempre acreditei em fazer da Osklen uma representação do estilo de vida do Brasil”.
E assim, de fato, tem sido ao longo desses quase 30 anos da marca. A Osklen é uma dessas grifes que revelam a potência da moda em expressar modos de ser e de estar, costumes e estilos de vida, tanto no âmbito pessoal, quanto numa dimensão coletiva. Nesse sentido, reiteramos que a moda tem a capacidade de constituir processos identitários, uma vez que reconhecemos que a identidade se constrói e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais. Como observa Denys Cuche, a identidade é sempre resultante de um processo de identificação. E sabemos que, sobretudo na contemporaneidade, os laços identificatórios perpassam potencialmente pela dimensão da visualidade de si e do outro, em que a composição da aparência (escolha das roupas, dos acessórios, da maquiagem e do corte de cabelo) tem sido um elemento fundamental, numa cultura estetizada ao extremo.
Nas vestes vaporosas, elegantes e cheias de vida de Oskar Metsavaht, a moda transpira o universo modernista e repleto de brasis de Tarsila do Amaral. O estilo de dois criadores se entrelaçam na composição de formas exitosas, como diria Luigi Pareyson, revelando os traços personalíssimos de cada um dos artistas e, ao mesmo tempo, as influências culturais e plásticas de cada uma das épocas em que produziram suas obras. Respeitosamente Metsavaht conserva o estilo Tarsila, ainda que seja capaz de traduzi-lo em novas configurações formais que, agora, para além da contemplação, podem ser vestíveis. Também aqui, o modo de formar singular do diretor criativo da Osklen se revela.
Ao recorrer a vida e obra de Tarsila do Amaral, a Osklen reforça os laços entre a moda e a arte, além de homenagear a cultura brasileira. Exibe de forma expressiva e contundente que tanto o universo fashion, quanto o ambiente artístico tem a capacidade de envolver e emocionar com suas belas e instigantes formas, bem como de nos reinscrever na nossa cultura, a cada vez remodelada, e de nos devolver a nossa identidade, a cada vez transformada e enriquecida pelas dinâmicas das experiências vividas.
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.