A magia do traje: A aparência no Carnaval
Já é Carnaval! Momento em que as manifestações explícitas de alegria tendem a expressar, através de uma ideia quimérica de liberdade, as tensões constitutivas de nossa identidade. Mas será mesmo que o espírito da verdadeira fantasia e do jogo da imaginação ainda permanece como o alicerce dessa que é considerada a maior festa popular do mundo? Quando viajamos no tempo e nos reportamos a um dos mais antigos carnavais, o de Veneza, que data do século XII ou XIII, nos indagamos se o espírito que mobilizou essa festa ainda se faz presente nas manifestações contemporâneas?
O Carnaval de Veneza se caracteriza pelo uso intenso de máscaras e figurinos que tentam reproduzir o estilo dos nobres que viveram nos séculos XVII e XVIII, ou os modelos apresentados pelos personagens da Commedia Dell’Arte – representações teatrais muito comuns na Itália e por toda a Europa do século XVI até a metade do século XVIII, as quais celebrizaram personagens até hoje cultuados como o pierrô, a colombina e o arlequim.
O fato é que de lá pra cá muita coisa mudou. Alguns pesquisadores afirmam que, inicialmente, o carnaval de Veneza teria surgido em comemoração a uma vitória militar, outros, por sua vez, defendem que 1296, o Senado veneziano formalizou o carnaval, ao declarar que o último dia antes da quaresma fosse um período de jogos, brincadeiras e diversão pública. No século XIX, quase foi eliminado do cenário europeu e ao longo dos anos foi ganhando novos contornos, é verdade. A partir da década de 1980 a festa tem sido resgatada com maior vigor e passou a ser fruto do empreendimento pessoal de foliões e, certamente, um elemento parece ter permanecido: o apreço pela fantasia, ou seja, a prática de nos travestirmos através do uso de roupas e adereços que nos remetem a outros personagens.
Famoso pelas tradicionais máscaras, o Carnaval de Veneza conserva até hoje essa capacidade de nos imaginarmos outros, de incarnarmos e representarmos novos papéis nessa grande cena que o Teatro do Carnaval nos permite protagonizar, tendo como inspiração o Teatro propriamente dito que desenvolve uma trama, num placo, dirigido a uma plateia. E talvez o mais interessante é que podemos ser vários, adotando novos e outros personagens a cada troca de roupa, nos vários dias de festa, retomando a etimologia da palavra persona, que remetia exatamente à máscara de cada personagem.
Embora já com algumas manifestações desde o século XVII, influenciado pelo entrudo português, em terras soteropolitanas, o Carnaval como conhecemos hoje tem início na década de 1950, com foliões dançando atrás de carros de som, as velhas fobicas, posteriormente conhecidos como trios elétricos. Em 2005, o evento foi eleito pelo Guinness Book o maior carnaval de rua do mundo, com 2 milhões de foliões nas ruas que, pouco a pouco, foram se organizando em blocos, com suas camisetas de identificação (os abadás) e uma corda de proteção desse grupo dos demais foliões. Nesta grande festa, o destaque tem sido para os ritmos musicais e as danças e, durante algum tempo, observamos que as fantasias e as máscaras ficaram num segundo plano. Para além das mortalhas e dos abadás que passaram a fazer parte do Carnaval brasileiro, sobretudo, a partir da influência baiana, muitos de nós sentimos falta do uso de trajes mais imaginativos e fantasiosos que essa grande festa nos proporciona. Como ressalta Milton Moura, a indumentária é um elemento extremamente importante para a visibilização das referências de mundos fantásticos que constituem o Carnaval.
Se tentamos recuperar a etimologia da palavra Carnaval, encontraremos mais de uma vertente interpretativa. Ela se origina do latim carne vale, que significa adeus à carne, numa alusão aos dias em que se podia comer carne antes da quaresma; ou ainda, numa outra leitura, significaria despedida do próprio corpo como emblema da identidade, na medida em que nesse período as pessoas são estimuladas a se soltarem e expressarem seus sentimentos. E sabemos, sem dúvida, que assumir a pele do outro nos ajuda a fazer e a sentir algo que habitualmente não faríamos ou não sentiríamos. Como destaca Georg Simmel, o adorno e as roupas ampliam nosso eu, antecipando a disposição performativa do ser humano. Aqui identificamos o papel da roupa e dos acessórios, sobretudo da máscara e da fantasia, como elementos mediadores, dispositivos de passagem entre personagens possíveis.
A máscara e a fantasia, retomam o espírito do Carnaval em deixar correr livre os sentidos e experimentar novas situações. Assim, nos tornamos suscetíveis e receptivos à atuação de novos e outros personagens, na medida em que talvez precisemos buscar a nós mesmos em outros “seres” virtuais, latentes. É a verdadeira magia do outro, através do traje, que invade o Carnaval e a cada um de nós nessa festa!
Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.