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Quando a teimosia se torna uma virtude

Titular da Vara da Infância e da Juventude de Feira de Santana aborda desafios da magistratura

Publicado quinta-feira, 20 de abril de 2023 às 05:30 h | Autor: Juíza Elke Schuster
Titular da Vara da Infância e da Juventude de Feira de Santana-BA
Titular da Vara da Infância e da Juventude de Feira de Santana-BA -

Assim como nas diversas áreas da Magistratura, a atuação como juíza titular na Vara de Infância e Juventude de Feira de Santana exigiu-me o desenvolvimento de algo que não se encontra nos manuais de conduta, ou seja, o senso de oportunidade, previsibilidade e antecipação; características estas que, sem dúvida, são imbatíveis para uma carreira bem sucedida na atividade privada, mas pouco fomentadas nas relações públicas.

Na magistratura, tais assertivas precisam ser modeladas com muito critério, quase como virtudes que se incorporam ao nosso caráter, especialmente quando estamos diante da minoria humana mais vulnerável que existe, qual seja, crianças e adolescentes advindos da miséria absoluta, diariamente expostos a toda forma de exploração sutil e ostensiva.

Quantas vezes, diante de situações de precocidade infantil, tendemos a reverter a responsabilidade de uma consequência de algo que começou ainda na infância, com uma “simples dancinha” que repete freneticamente movimentos de relações sexuais adultas, com estímulos e acesso à pornografia por meio de telas, ou mesmo na exploração por aqueles que seriam seus protetores?

Para fins de processamento nas Varas de Infância e Juventude (VIJ), são necessários critérios legais, focados no melhor interesse da criança e adolescente e não, não pensem que encontrarão um trabalho permeado por doces, bombons e pipocas, distribuídos pelo sorridente juiz como se fosse um papai noel.

Nessa área ruidosa e delicada, temos que desenvolver vivacidade, fortaleza e, mais uma vez, o senso de oportunidade e antecipação, pois os processos trazem estórias de abandono, principalmente de referencial paterno, já que atos infracionais decorrem, também, da ausência absoluta de papel regulador de caráter e falta de amor materno, assertivas que forjam caracteres corrompidos, incompatíveis com a doce infância garantida na Constituição Federal.

Assim, até pouquíssimo tempo, havia o entendimento que na Vara Especializada, tramitaria tudo que envolvesse pessoa de até 18 anos, sendo que os mais diversos feitos eram distribuídos, quase que aleatoriamente, junto a situações gravíssimas, estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como prioridade absoluta, bastando o critério etário, somado à mítica do “juiz bonzinho” que atua na Infância.

Utilizando do senso de oportunidade e da prioridade absoluta, passei a suscitar conflitos de competência, para encaminhamento correto dos processos, quando não se enquadravam nos requisitos da Lei 8.069/90. O indevido trâmite especial na VIJ acarretava uma sobrecarga incompatível com as demandas de urgência e de apreciação imediata do ECA. E nunca desisti de atualizar tal entendimento!

Resolvi deixar a racionalidade pura de lado e usar da teimosia, no seu lídimo sentido, quase instintivo, evidentemente sem prejudicar as partes, apesar de uma maioria de decisões contrárias aos estudos até então desenvolvidos.

Buscando aprimorar conhecimentos sobre o tema, compareci a evento jurídico em outro Tribunal e tive a grata surpresa de verificar que as sentenças utilizadas como novo paradigma pelo respeitado conferencista, Desembargador daquele Estado, eram de minha autoria!

Enquanto eram feitas as leituras, pude experimentar a familiaridade com a escrita, a jurisprudência até que a leitura chegou à assinatura que era a minha!! Fiquei atônita! Valendo-me da esperança, finalmente, a lógica que havia desenvolvido estava em análise!Apresentei-me ao palestrante, discretamente, e voltei para casa com a sensação de justiça, em que pese até um trabalhosíssimo Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (entendedores entenderão) ter sido arquivado!

Finalmente, após alguns meses, houve a alteração jurisprudencial, não diria que por meio da minha teimosia mas, como intérprete da norma, aprendi que o trabalho do(a) magistrado(a) deve ser realizado com entusiasmo e isso deve ser trazido de dentro de nós, independente do resultado ou de qualquer reconhecimento, com muito estudo e independência, rompendo dogmas e a estratificação da ciência.

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