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Publicado sexta-feira, 07 de julho de 2023 às 05:40 h | Autor: Pablo Stolze*
Pablo Stolze
Pablo Stolze -

Para além de conduzir processos, despachar, decidir, cumprir metas e constantemente se aperfeiçoar (sob pena de ser engolfado pela dinâmica do Direito contemporâneo), o magistrado, sobretudo nas pequenas comarcas do interior, exerce um papel que ultrapassa os portais da ciência jurídica.

Situações cotidianas são frequentemente apresentadas, as quais, posto não constem em relatórios, são de extrema importância e especial significado na vida de pessoas simples. Pessoas que, em sua inocência, veem, por vezes, no juiz, poderes extraordinários – ou até mesmo divinos – que, por óbvio, ele não tem, pois é um ser humano falível como qualquer outro.

Em 1926, Paramahansa Yogagananda, sábio indiano dotado de indescritível iluminação filosófica e espiritual, fora convidado por um juiz da corte de Pittsburgh para acompanhar, durante um dia, os seus julgamentos. 

O grande yogue passou quase todo o tempo em silêncio, e, ao final, dirigiu-se ao juiz e disse: “Você tem uma tarefa dificílima e por vezes deve sentir o peso de tamanha responsabilidade. Alguns carregam esse peso nos ombros para que a humanidade possa ser elevada”.

De fato, é muito difícil carregar o fardo de decidir e, juntamente com ele, o risco de errar. Mas a missão deve ser cumprida.

Do escaninho das memórias, resgato duas situações que marcaram a minha vida. Uma senhora muito humilde pediu para falar comigo, pois um problema a angustiava.

Um magistrado ouve de tudo: problemas espirituais, discussões com vizinho, contendas na família. 

Escutei com atenção e tirei a sua dúvida. Ela pareceu imensamente aliviada.

Ao sair do meu gabinete, ela cruzou com a minha escrivã, virou-se para mim, e, com um sorriso bondoso, agradeceu: "Obrigado, Seu Coisinha!". 

Minha escrivã ficou atônita, dirigiu-se a ela e, com ar firme, atalhou: "Não chame ele de 'Seu Coisinha', ele é o juiz!". 

Ao ouvir isso, tranquilizei a minha escrivã, dizendo que não havia problema algum. Feliz e aliviada, aquela pobre senhora sorriu mais uma vez e disparou, com alegre firmeza: "Tchau, Seu Coisinha!".

Naquele dia, tive a certeza de que muito mais importante do que ser chamado de "Doutor" ou de "Excelência" é angariar o respeito que se oculta por trás de singelas palavras como essas.

Outra situação foi, para mim, emblemática.

Uma senhora idosa de personalidade fortíssima, decidida e de passos firmes, conhecida pelo seu temperamento, pediu para me ver.

Guardando certo rancor de um familiar, disse-me: “Eu quero que o senhor deserde o meu neto!”.

Tive trabalho para explicar a minha impossibilidade.

“O senhor não é o Juiz? Então pode!”, ela vociferava.

Não, não, juiz não pode tudo. Com calma, expliquei, sem juridiquês, o instituto da deserdação: trata-se de um ato nascido da vontade do próprio testador, nos termos da lei, para afastar um herdeiro necessário. Ao final, mais calma, ela aparentou compreender e eu lhe disse que procurasse um advogado.

No dia seguinte, para minha surpresa, a mesma senhora adentrou o meu gabinete, quando eu atendia a dois advogados.

“Dr. Pablo, o senhor tem de deserdar o meu neto!”.

Eu, então, educadamente, respondi: “Dona Fulana, eu atendi a senhora ontem, e lhe disse que somente o testador pode fazê-lo”.

Naquele instante, pasmem, ela rebateu: “Não, o senhor ontem não quis me atender”.

Por um instante, diante daquela escancarada agressão à verdade, a minha pressão deve ter subido e alcançado 20 por 14.

Respirei. Pedi licença aos advogados. Tomei a senhora pela mão e fomos ao meu gabinete. Olhei em seus olhos e, compreendendo que a sua dor não era proveniente de um problema processual, que ainda sequer existia, mas ultrapassava os portões da alma, peguei em suas mãos e comecei: “Pai nosso que estais nos céus...”. 

Oramos juntos.  Ela chorou copiosamente e me deu um longo abraço. Saiu em silêncio, agradecendo, e não voltou mais. Saiu em paz, deixando também feliz o coração de Seu Coisinha.

*Pablo Stolze é Juiz de Direito, Membro da Academia Brasileira de Direito Civil e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia

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