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CULTURA

"A Casa do Chame-Chame foi um manifesto"

Por Regina de Sá | Especial A TARDE

04/12/2014 - 8:00 h
Olivia de Oliveira
Olivia de Oliveira -

Lina Bo Bardi passou a viver entre São Paulo e Salvador quando recebeu o convite para projetar e construir a Casa do Chame-Chame. Esta "ponte" criativa entre as duas cidades começou em 1958. Porém, logo que conheceu o terreno onde seria erguida a residência, teve que convencer o proprietário a manter a ideia de construir a casa ali mesmo. Afinal, argumentou a arquiteta, um "terreno com uma árvore daquelas 'valia ouro'". Assim que se deparou com uma bela e frondosa jaqueira, não teve dúvidas: seria o estudo da casa que se adequaria à vegetação do terreno e não o contrário.

Há exatamente 30 anos, a casa foi demolida, sem que Lina tivesse visto nem mesmo o término da obra. Quem conta essas e outras particularidades é Olivia de Oliveira, no premiado livro Sutis Substâncias da Arquitetura de Lina Bo Bardi. Olivia, arquiteta paulista formada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, doutora em História Urbana pela Escuela Tecnica Superior de Arquitetura de Barcelona, desde 1998 vive e trabalha em Lausane, na Suíça.

Ela está em Salvador participando de uma série de palestras, que acontecem, até amanhã, no Museu de Arte Moderna da Bahia e na Casa do Benin, em homenagem a Lina. Nesta entrevista, Olivia fala sobre o legado de Lina Bo Bardi e faz algumas reflexões a respeito da obra da arquiteta, especialmente as realizadas na Bahia.

Lina Bo Bardi é apenas um mito ou seu legado tem contribuído para sedimentar uma vertente da arquitetura brasileira?

Olivia de Oliveira - Lina não é um mito, mas, nos últimos anos, há uma enorme mediatização em torno da sua obra, correndo o risco de fetichização e encobrindo o que tem de mais essencial: sua dimensão civilizatória, humanista, ética, simbólica e crítica. E vale dizer que Lina não é a única: esta dimensão ela compartilha com uma geração de intelectuais latino-americanos do século 20, que estarão propondo um projeto emancipatório e original de modernidade, ligado às memórias culturais e religiosas sobreviventes à colonização ibérica. Desde sua chegada ao Brasil, em 1946, Lina vai identificar-se intelectualmente ao projeto formulado pelo movimento antropofágico, o que Oswald de Andrade chamou de "uma revolução contra o postiço, contra o inautêntico", uma reação contra o brilho superficial da civilização que desvitaliza e destrói o próprio sentido da existência.

A que se atribui o fato da obra de Lina despertar grande interesse após seu falecimento? Esse reconhecimento tem reverberado com maior ressonância no Brasil ou no exterior?

Olivia de Oliveira - Após seu falecimento, uma exposição itinerante organizada pelo Instituto Lina Bo e P.M. Bardi apresentou a obra de Lina Bo Bardi em diversos países. Em 2002, publiquei o livro Lina Bo Bardi, Built Work, com uma tiragem inicial de 13 mil exemplares em edição bilíngue (espanhol e inglês) apresentando o conjunto da obra construída. Este livro, que traz uma entrevista com a arquiteta, acaba de ser relançado no Brasil, agora em sua terceira edição, mas desta vez em português e inglês. Além disso, em 2010, a arquiteta japonesa Kazuyo Sejima dedicou uma seção inteira da Bienal de Arquitetura de Veneza à obra de Lina Bo Bardi. Hoje em dia, ninguém mais ignora seu trabalho, que se tornou uma referência para arquitetos de todo o mundo, sobretudo para aqueles que estão combatendo a noção do arquiteto demiurgo. Uma vertente de profissionais preocupada com questões fundamentalmente atuais, alertando contra um modelo de sociedade de consumo massificada que cada vez mais despreza sua produção local, bem como seu valor criativo e transformador.

O que a senhora diria sobre a obra de Lina?

Olivia de Oliveira - Em Lina vemos o engajamento do profissional para encontrar respostas aos problemas atuais que o cercam, deixando de lado a vaidade tão comum nos nossos dias do arquiteto visto como um star. Ela lembra que a concepção da obra começa sempre por uma observação profunda do lugar, entendendo lugar não apenas como o espaço urbano e físico mas um conjunto de fatores pré-existentes: históricos, culturais, sociais, políticos, antropológicos. Daí nasce o projeto, como uma resposta crítica, tomada de posição frente ao estado de coisas encontrado. Obras como o Sesc Pompéia e o Masp trazem uma reflexão extremamente atual sobre as novas formas de ativação de zonas urbanas e peri-urbanas deprimidas. Estas obras nos ajudam a compreender os reais desafios urbanos, ecológicos e políticos que arquitetos e urbanistas devem hoje enfrentar. E estas questões não são locais, elas abordam problemas atuais e globais.

Qual o valor e o significado do projeto e da obra da Casa do Chame-Chame no contexto do trabalho da arquiteta, particularmente no que se refere ao período em que esteve radicada na Bahia?

Olivia de Oliveira - Lina Bo Bardi tinha um carinho muito especial por esta casa. Ela lamentava não haver podido finalizá-la. Vale dizer que Lina construiu apenas três casas particulares em toda sua vida, as outras duas em São Paulo, sendo uma delas sua própria residência. Além disso, podemos considerar esta casa como um manifesto, onde Lina posiciona-se claramente contra os postulados racionalistas e universalistas da arquitetura moderna, projetando uma casa absolutamente singular e literalmente ancorada ao lugar, incluindo ali a memória, os ritos e mitos da tradição afro-brasileira ligados ao terreno e ao contexto em que se constrói a casa.

Na sua opinião, por que motivo a residência do Chame-Chame foi observada com indiferença pela intelligentzia baiana?

Olivia de Oliveira - Nos anos 80, quando a casa foi demolida, eu era ainda estudante e na faculdade de arquitetura quase não se falava de Lina Bo Bardi. Por que? Não sei. O certo é que a lei do mercado e da especulação imobiliária foi e continua dominando e decidindo ainda hoje onde e como a cidade deve se expandir. Não podemos mais continuar calados e de braços cruzados.

O fato da massa edificada dessa obra (Chame-Chame) rodear uma velha jaqueira te parece um indício da incorporação de valores da cultura afro à concepção de Lina? Em que medida eles permaneceram latentes no conjunto de sua obra?

Olivia de Oliveira - Explico isso em um capítulo inteiro de meu livro Sutis Substâncias da Arquitetura de Lina Bo Bardi. Esta dimensão cultural e simbólica, que incorpora tradições arcaicas associadas aos ritos e mitos, é central na obra de Lina Bo Bardi, ainda que pouco relevada. Em Lina, o estético e o poético não se desvinculam de um engajamento social, ético e político.

Quais as ligações entre a obra do Chame-Chame e o edifício do Masp? Onde se verificam repercussões do restauro do Solar do Unhão e a sua intervenção na antiga Fábrica da Pompéia?

Olivia de Oliveira - Lina tem uma capacidade incrível de ir à essência das coisas, talvez pelo fato de ter vivido à guerra, há uma noção de essencial que encontramos tanto nos croquis de Lina como em seus projetos. Veja, por exemplo, a "Cadeira à Beira da Estrada", feita, literalmente, com quatro pedaços de troncos encontrados no caminho. Mas esta capacidade de improvisação, simplificação e inventividade é também característica da cultura popular que impregna toda arquitetura de Lina Bo Bardi. Lina realiza, através de sua obra, uma leitura fina do contexto, do existente, podendo transformar a escassez em riqueza, a dificuldade em singularidade. Lembremos que muitas obras e também projetos não construídos de Lina partem de ruínas, da regeneração de edifícios em ruínas ou semi-ruínas. E esta arquitetura contrasta drasticamente com a cultura arquitetônica megalômana e espetacular que faz tábula rasa do passado, impondo-se e colonizando nossas cidades sem tomar em conta do pré-existente.

O retorno de Lina a Salvador, certamente impulsionado pelo resultado do Sesc-Pompéia, em 1986, em Salvador, novamente resulta incompleto e abandonado como em 1964. Os conceitos arrolados por Lina, baseados na sua observação da arte popular brasileira, que resultou no que poderia classificar de "arquitetura da pobreza", ou o savoir-faire popular - ou seja , a inclusão do povo nos processos de modernização, celebrando ao reinventar e adaptar os objetos cotidianos, transformados em arte - motivou a rejeição de seu trabalho pela elite tradicional na Bahia, detentora do poder?

Olivia de Oliveira - O projeto para o Centro Histórico não foi adiante por uma questão política. A proposta de Lina ia além de uma proposta puramente formal de recuperação física dos casarões. Ela propunha uma revitalização do Centro Histórico desde uma melhoria da condição social e de moradia da população que ali já vivia. Ora, isto ia contra o processo de higienização programado justamente para expulsar aquela população estigmatizada e de baixa renda que então ocupava os casarões do Centro Histórico.

No seu livro, a senhora fala da enorme indignação ao ver demolida a Casa do Chame-Chame, assim como a própria Lina Bo, desgostosa por ter visto a casa ser derrubada. Fazendo um paralelo com as casas ainda existentes e que são parte da memória de uma cidade, como é o caso da casa de Jorge Amado, por exemplo, recentemente reaberta à visitação pública, que lição a sociedade deveria tirar ao permitir que edificações históricas sejam destruídas? que exemplos a senhora daria hoje que a preocupam, mas que correm risco?

Olivia de Oliveira - A Casa do Chame-Chame não tinha um "valor histórico", mas porque trazia uma profunda reflexão em relação ao contexto, a memória e ao passado do lugar. Como disse, a obra de Lina vai contra certos interesses mercadológicos que hoje dominam nossas cidades e por isso mesmo ela está sempre em perigo. Em Salvador, podemos citar vários edifícios projetados por Lina hoje fechados ou que funcionam em condições precárias, como a Casa do Benin, o Teatro Gregório de Mattos, o Restaurante Coati ou as casas da ladeira da Misericórda. Além da obra de Lina, citaria toda a zona costeira fronstíspicia a Baia de Todos-os-Santos, área historicamente ligada a atividades comerciais, industriais, ferroviárias e portuárias, que merece uma atenção especial das políticas de preservação. Um patrimônio ligado a um passado mais recente, em grande parte do século 20, infelizmente negligenciado, que corre o risco de ser rapidamente delapidado pela especulação. O que, aliás, já vem ocorrendo de uns dez anos para cá e de maneira preocupante no Centro Antigo, com a aparição de empreendimentos de alto luxo, caracterizados por uma arquitetura fashion, influenciada por modelos importados e inadequados à realidade local. Ou seja, "ilhas de Primeiro Mundo" que não levam em conta uma reflexão ligada ao contexto urbano ou social, aprofundando ainda mais a pobreza e as desigualdades urbanas. Sim, exemplos não faltam de "limpeza social" - processo de remocão de populacões pobres e desfavorecidas de centros de cidades e de áreas valorizadas pelo mercado. A política de Recuperção do Centro Histórico de Salvador colocada em prática nos anos 90 baseou-se neste tipo de processo excludente, com a expulsão dos moradores pobres da área de intervencão, transformando o Centro Histórico em um mero cenário esvaziado de sentido, centro comercial e de consumo para o turismo. Precisamos buscar alternativas urbanas a partir de lógicas menos coercitivas economicamente e mais solidárias socialmente.

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