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"A ligação entre música e literatura é forte", diz Wisnik

Publicado terça-feira, 15 de março de 2016 às 07:19 h | Autor: Daniel Oliveira
José Miguel Wisnik
José Miguel Wisnik -

"A segunda metade dos anos 1980 foi um tempo de eu acordar desse sono", diz José Miguel Wisnik sobre o momento de reaproximação com a música. Das aulas iniciais de piano clássico, aos sete anos, até a gravação do seu primeiro álbum, no início dos anos 1990, passaram-se quase quatro décadas. Isso porque Wisnik precisou tomar uma decisão  no final dos anos 1960, quando já cursava Letras na Universidade de São Paulo (USP): seguir o percurso acadêmico ou começar a bater nas portas das gravadoras para ingressar de uma vez  no mercado fonográfico, já que em 1968 teve uma canção defendida por Alaíde Costa no Festival Universitário da Canção Popular, da TV Tupi.

Escolheu a primeira opção e, sem muita demora, se tornou professor e pesquisador de literatura brasileira na USP. Foi somente a partir da proximidade  com Arrigo Barnabé e o Grupo Rumo, integrantes da vanguarda paulistana, que Wisnik se reinseriu no contexto da produção musical, fechando um período de dedicação quase exclusiva à Universidade. Anos depois, em 1992, gravou o  primeiro disco, que leva o seu nome. Esse e os outros dois trabalhos posteriores, São Paulo Rio (2000) e Pérolas Aos Poucos (2003), foram relançados em fevereiro  pelo selo Circus.

No ano passado, já havia chegado às lojas Ná e Zé, em parceria com a cantora Ná Ozzetti. Em 2016, ele também planeja publicar um novo livro sobre literatura brasileira, encerrando a trilogia que começou na música, em O Som e o Sentido: uma outra história das músicas, e continuou no futebol, em Veneno Remédio, áreas de seu profundo interesse pessoal e intelectual. Em entrevista para A TARDE, o compositor, ensaísta, professor e pesquisador fala da sua trajetória como cancionista, da atividade acadêmica e da relação entre música popular, futebol e literatura na cultura brasileira e na sua vida.

A música popular faz parte da sua história desde a década de 1960, quando você teve uma canção defendida em festival. E nos anos 1980 fez parcerias com artistas da cena paulistana, como Arrigo Barnabé e os integrantes do Grupo Rumo, Ná Ozzetti e Luiz Tatit. Por que lançou o primeiro disco apenas em 1993?

Quando estava na faculdade, em 1968, participei de um Festival Universitário da Canção, da TV Tupi, e Alaíde Costa defendeu uma música minha. Foi a minha ligação com a música popular neste momento. A minha geração teve o AI-5 quando tinha 20 anos, ou seja, um momento decisivo na vida. E isso mudou muito o panorama musical. Em vez dos festivais e dessa relação direta  com o público universitário, houve uma especialização. Quem vai  para as universidades e quem vai batalhar nos corredores das gravadoras. Eu atribuo essa grande mudança a uma alteração de rumos. Terminei o curso de letras, fiz  mestrado, doutorado e me tornei autor de livros. E aí a música ficou como  uma coisa só para meu uso. Nos anos 1980, graças a pessoas como Arrigo, Luiz Tatit, a Ná, eu me aproximei de novo. Resolvi que era tempo de mostrar as músicas. E imediatamente o Arrigo pôs música minha para ser gravada pela Cida Moreira, Eliete Negreiros, Vânia Bastos. A segunda metade dos anos 1980 foi um tempo de eu acordar desse sono, vi a possibilidade de conciliar as coisas. E aí foi o tempo natural até gravar o primeiro disco.

A sua formação musical é de piano erudito, inclusive você chegou a tocar em concertos. Quando você decidiu  fazer música popular?

Você vê que o meu caminho  passou por  encruzilhadas. Eu estudei piano clássico desde os sete anos e, na adolescência, estava voltado para uma formação de pianista de concerto.   Agora, quando entrei na universidade, com 18 anos, na altura de 1967, tive um grande impacto  do movimento cultural da música popular, tudo muito próximo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, que ficava  perto do Teatro de Arena, do Teatro Oficina.  E isso me abalou e eu senti que não poderia levar uma vida de concertista,  um ambiente voltado para um repertório do século XIX, na época com ritos muito tradicionais. É claro que isso representou para mim uma grande crise, porque tinha me mobilizado muito para ser pianista de concerto. Mas foi nessa época, então, de 1967 para 1968, que fui experimentando fazer canção. Então tive esse momento  e logo depois veio a outra encruzilhada. Levou um tempo na minha vida para eu conseguir conciliar essas várias atividades.

Em diferentes contextos, você  afirmou que é possível compreender elementos marcantes da cultura brasileira em três áreas: o futebol, a música e a literatura. E você escreveu Veneno Remédio, sobre o futebol, tem vários discos gravados e é professor de literatura brasileira na USP. Como tudo isso se articula na sua atividade intelectual e em outras experiências de vida?

Na cidade em que eu nasci e morei até os 18 anos,  São Vicente, junto de Santos,  estava em contato direto com o futebol das praias e dos campos de várzea. E com o Santos de Pelé. Uma vida futebolística do mais alto nível. Convivia com aquilo. Ao mesmo tempo, tinha o Festival de Música Nova de Santos. A cidade era um polo de vanguarda da música na América Latina. E, para completar, estudei em uma escola pública em um tempo que a escola pública tinha um nível muito alto, tive uma formação de literatura  muito boa. Então essas coisas estavam na minha vida nessa época. Portanto, fui seguindo com elas, mas levei tempo para encontrar um modo de articular. E aí fui percebendo que essas coisas, embora ligadas a uma história pessoal, são marcas da cultura brasileira. A ligação entre música e literatura é  forte no Brasil. Por um tempo, ficava pensando, 'sou professor de letras, mas estou ligado a canção'. Isso parecia   estranho. Mas aí você vai olhar: Chico Buarque é autor de cinco romances, Caetano Veloso é autor de livro de ensaio, Vinicius de Moraes abriu essas portas para todo mundo, Arnaldo Antunes circula por tudo isso. São muitos os exemplos.

Também é possível ampliar os exemplos dessa circulação para outras linguagens…

Pois é. Tem quem seja artista plástico, escritor premiado, compositor e cineasta, como o Nuno Ramos. Seja filósofo, como o Antonio Cícero, e autor de hits de canção popular com Marina e Lulu Santos. Isso só existe no Brasil. Então, não estou nada sozinho nesse fato. E esses assuntos foram sendo desenvolvidos. Escrevi o livro O Som e o Sentido -  Uma outra história das músicas, uma espécie de balanço da experiência  com a linguagem musical, portanto, de quem se formou na música, mas também na teoria literária, filosofia, história, antropologia, psicanálise. Depois, escrevi Veneno Remédio, que liga futebol, a cultura brasileira, a música e esses campos das ciências humanas. E este ano estou escrevendo um livro sobre literatura brasileira, que acho que completa essa trilogia. Uma maneira pela qual essas vertentes estão se relacionando no meu trabalho e estão sendo pensadas como  uma das referências fundamentais para entender o Brasil. Se é que alguém entende o Brasil.

Aprofundando um pouco, você citou  exemplos em que conseguimos observar essa trânsito. Mas qual seria a raiz dessa  flexibilização dos limites das áreas de atuação?

A cultura escrita no Brasil, o letramento, nunca se consolidou completamente. O crítico Antônio Candido diz que o Brasil passou direto dos meios orais para o rádio e a televisão (meios de massa), sem passar pelo estágio do letramento sistemático da escola.  E o Brasil é um país que teve uma alta literatura. Ao mesmo tempo, tem uma tradição oral, dançante e musical forte. Acho que isso criou essa zona de permeabilidade. Eu tratei isso no ensaio Machado Maxixe. É  uma espécie de inconscistência das instituições ligadas à cultura letrada, como é também a música de concerto.   No século XIX, o mesmo músico que tocava em uma ópera tocava num baile. A profissão não estava estabelecida de  maneira especializada. Os próprios nichos institucionais que separariam os gêneros não são  tão claros.

E  hoje a literatura continua não sendo tão popular quanto a música e o futebol…

Com certeza. Um romancista de grande sucesso vende 20 mil livros em um país de 200 milhões de habitantes. E se ele vende 70 mil ou 100 mil é porque ele é Chico Buarque, portanto,  já conhecido pela música popular. Ou  Fernanda Torres, atriz global, mas que escreveu um excelente romance chamado Fim. Ou seja, quando junta os meios de massa com a literatura, dá um salto. Em Portugal, um país que tem uma população  pequena, um romancista bom pode vender 100 mil, 200 mil. São sinais dessa deficiência. Como no Brasil as deficiências às vezes se tornam qualidades de outro tipo, temos  uma música popular de altíssimo nível.

Você costuma fazer citações de outras músicas em várias de suas composições. Por exemplo, Assum Branco, Para Elisa e Se Meu Mundo Cair. Quais são as motivações para isso?

O movimento Tropicalista foi fundamental na minha formação. E Caetano Veloso tem uma poética muito ligada a um conhecimento dos repertórios e à citação na música popular, explícitas ou implícitas. Eu acho que isso é uma influência. E eu me sinto a vontade ou com vontade de fazer isso.

Os três discos que estão sendo relançados foram elaborados com grande espaço de tempo entre um e outro. Do primeiro para o segundo, por exemplo, passaram sete anos. Como você avalia o momento e o resultado de cada um desses trabalhos na sua trajetória de cancionista?

Como faço canção em meio a outras atividades, os meus discos são de época. Às vezes também faço música para dança, com o Grupo Corpo, e para teatro, com o Teatro Oficina. Agora, o primeiro disco, foi uma experiência bem pessoal, porque não tem a figura do produtor. Eu mesmo produzi. Tenho muito afeto por ele. E além disso tem momentos musicais que não voltei a fazer. Além de tocar piano, eu mesmo sequenciava e fazia arranjos de teclados. Também é um disco que tem participações queridas, Luiz Tatit, Arrigo, a Ná. No outro, São Paulo Rio, produzi com Alê Siqueira. Um produtor muito importante para mim. E é um disco que tem participações de Elza Soares, Jussara Silveira.  E depois Pérolas Aos Poucos, gravado na Bahia. Tenho uma relação direta com Rio e com a Bahia, tanto que um é São Paulo Rio e  quase que pode dizer que Pérolas Aos Poucos é São Paulo Bahia. 

Como foi a gravação desse álbum? Você passou um tempo na Bahia?

O Alê Siqueira conheceu Carlinhos Brown e foi produzir um disco de Arnaldo Antunes no estúdio Ilha dos Sapos, no Candeal. Ele se apaixonou pela Bahia e se mudou. E me convidou para gravar lá, porque tinha essa ligação com o estúdio. E também conseguiu gravar no  piano de cauda do Teatro Castro Alves. Foram condições  estimulantes. Aí fui de fato no verão, Salvador pegando fogo. O Carnaval a toda e nós dentro do estúdio. Diziam: "só vocês estão fechados em Salvador". Porque a Bahia inteira balançava.

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