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Betty Milan transforma a entrevista em expressão literária

Publicado sexta-feira, 07 de dezembro de 2012 às 23:34 h | Atualizado em 07/12/2012, 23:34 | Autor: Andreia Santana
Betty Milan - escritora
Betty Milan - escritora -

Mais do que um recurso de apuração jornalística, a entrevista transcende a técnica e alcança status de conversa envolta em sutil atmosfera literária no mais novo livro da jornalista, escritora e psicanalista Betty Milan, A força da palavra (Editora Record, 2012). Na obra, lançada inicialmente em 1996 e re-editada com o acréscimo de mais 11 conversas ocorridas até 2004, estão reunidos diálogos inspiradores com romancistas, filósofos e intelectuais de variadas nacionalidades.

Ao longo de pouco mais de 400 páginas, A força da palavra, que como a própria Betty Milan admite no prefácio, aparentemente reúne material "sem uma unidade temática", conduz o leitor a um exercício quase altruísta de "escuta" do outro. A unidade não está, de fato, nos temas tratados pela autora, que variam de educação à filosofia, passando por literatura, psicanálise e até uma releitura do marxismo feita pelo filósofo Jacques Derrida; mas no tom humanista dos diálogos e na capacidade da entrevistadora de desnudar a alma de seus entrevistados, mas sem com isso negar-lhes o direito de sonegar aquilo que não desejam revelar.

Entre os entrevistados - ao todo são 32 personalidades - estão o Nobel de Literatura Octavio Paz, poeta mexicano, que falou à jornalista brasileira de seu ensaio A dupla chama, em que filosofa sobre o amor; o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que teve com Betty um instigante diálogo sobre Carnaval e a 'cultura do brincar' no Brasil; o já citado Derrida, que além da entrevista teve suas dúvidas, hesitações e a própria atmosfera do encontro com a  entrevistadora reveladas na transposição da conversa; Alícia Dujovne Ortiz, argentina e biógrafa de Evita Péron e de Diego Maradona; Ken Monoghan, sobrinho do escritor irlandês James Joyce; e o tradutor Gregory Rabassa, que já traduziu Jorge Amado, confessou ser fã de Machado de Assis e sentenciou ser Guimarães Rosa intraduzível, devido aos neologismos e brincadeiras com a língua típicas do autor, que perderiam significado quando transpostos para outro idioma que não seja o português do Brasil.

Comovente é o diálogo imaginário de Betty Milan com Alain Emmanuel Dreuille, autor de Corpo a Corpo, morto no início dos anos 90 por complicações em decorrência da Aids. Sem ter encontrado o escritor pessoalmente, Betty se valeu do impacto que Corpo a Corpo lhe causou para tecer um artigo sobre a obra, pinçando trechos do livro e arrumando-os em formato de conversa com Dreuille. A resposta veio algum tempo depois, em uma carta de agradecimento do autor. É igualmente tocante o diálogo da brasileira com a escritora francesa Nathalie Sarraute, 95, que entrou para a Pleiade (Bibliothèque de la Pléiade, espécie de panteão onde estão reunidos os clássicos) ainda em vida. 

De entrevista em entrevista, A força da palavra cativa o leitor e torna-o coadjuvante (ou também voyer) de cada uma das conversas, seja em cafés de hotéis, nos gabinetes ou na sala de estar dos intelectuais entrevistados. Há algo de confessional nessa coletânea de diálogos, mas que não tem relação necessariamente com as revelações feitas durante as entrevistas, e sim com a cumplicidade estabelecida entre entrevistadora e entrevistados, ainda que isso não implique necessariamente em intimidade de grandes amigos. A erudição de Betty Milan, psicanalista de formação lacaniana, autora de romances, textos para teatro, ensaios e crônicas, não se impõe àquela de seus interlocutores, numa demonstração de grande respeito às lições do "outro".

Antes das entrevistas, uma pequena introdução sobre a vida e a obra de cada entrevistado, contextualiza o leitor e o introduz no clima da conversa propriamente dita, o que torna a leitura fácil e atraente mesmo para quem não é versado nos temas abordados. Um glossário no final do livro ajuda ainda quem quer saber mais sobre nomes, fatos e expressões citados ao longo do livro.

Dona de um texto claro e ao mesmo tempo envolvente como as camadas de um véu, Betty Milan revela o essencial e deixa o leitor apto a captar as entrelinhas dos diálogos e tecer um quadro não do intelectual diante do gravador da jornalista, mas de um ser humano entregue à compreensão de um semelhante.

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