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LITERATURA

Biografia resgata a história de Assis Valente

Por Chico Castro Jr.

18/12/2014 - 9:21 h
Assis Valente
Assis Valente -

Enquanto parte da classe artística e o Congresso lutam para manter a história e a memória brasileiras no obscurantismo, guerreiros como Gonçalo Junior (e outros) afiam suas penas para trazer à luz a realidade dos fatos sobre grandes vultos históricos.

Desta vez, o jornalista baiano, autor de A Guerra dos Gibis, O Homem-Abril e Maria Erótica & O Clamor do Sexo, volta seu escrutínio para um conterrâneo genial: Assis Valente (1911-1958).

Fruto de décadas de pesquisa, sua biografia para o compositor tem mais de 600 páginas e é superlativa até no título: Quem samba tem alegria: A vida e o tempo de Assis Valente, compositor das célebres Brasil Pandeiro, Cai, cai, balão, Camisa listada e Boas festas. Recheado de revelações, o livro estabelece o vício em cocaína do artista e sua depressão.

Compositor preferido de Carmen Miranda, teve dezenas de sucessos, mas nunca foi feliz de fato e vivia afundado em dívidas. O desespero o levou a se atirar do alto do Corcovado. Por incrível que pareça, sobreviveu. Nesta entrevista, Gonçalo Junior conta de suas motivações, da personalidade do biografado e da não-tramitação da lei das biografias no Congresso.

O que motivou o livro? A lacuna editorial, demonstrar sua real dimensão, o desafio jornalístico, tudo isso junto?
Tudo isso e um pouco mais. Claro que acreditar que Assis Valente não recebeu ainda a devida atenção no sentido de dimensionar o quanto sua vida foi trágica é um estímulo e um desafio. Sou baiano e sempre quis escrever algo ligado à cidade que mais amo, que é Salvador, embora tenha nascido em Guanambi. Temos tantos artistas geniais. Adoraria biografar Luiz Caldas, que considero gênio e me permitiria contar um pouco da indústria musical de Salvador nesses 30 anos. Mas Assis me interessou mais por ser algo mais pessoal.

Como foi seu primeiro contato com a música de Assis?
Cresci ouvindo Assis no Carnaval, no São João e no Natal, com marchinhas inesquecíveis como Cai Cai Balão e Boas Festas. Em nossa casa era o que mais se tocava. Meu pai é uma enciclopédia ambulante da MPB. Ele cresceu ouvindo Carmen Miranda, Mario Reis, Francisco Alves, Bide e Marçal, Aracy de Almeida, Noel Rosa, etc. Acompanhou os 30 primeiros anos do rádio e guardou muita coisa. Por ter perdido um irmão que se matou, citava a tragédia de Assis como exemplo de que tirar a própria vida não resolve nada. Cresci fascinado por sua história, queria saber como alguém que faz um samba chamado Alegria se atirou do Corcovado para a morte. E escapou por milagre.

O livro é também estudo bem detalhado de sua época. Quanto tempo levou na produção?
Eu passei uns 20 anos, desde a adolescência, na década de 1980, juntando discos, livros, recortes de jornais e revistas. Foi o primeiro livro que pensei escrever. Tanto que, em 1999, quando passei uma tarde inteira entrevistando Dorival Caymmi em seu apartamento no Rio e sabia que Assis tinha sido importante na sua vida, conversamos um tempão sobre ele. Ali já estava definido que escreveria sua biografia e aproveitei a oportunidade. O livro foi escrito entre 2009 e 2011. Percebi que a depressão que mataria Assis tinha a ver com as coisas à sua volta, como o lado nada glamouroso do rádio, roubos de composições, intrigas, fofocas, as chantagens de radialistas para conseguirem coautoria como condição para tocar as músicas. Está tudo lá, inclusive os nomes dos vilões dessa história, que ajudaram a arrastar Assis à cocaína, o que destruiu sua vida e acho a maior revelação da pesquisa.

Há dois anos, você me contou que o jurídico da editora tinha medo de processos, por conta das suas revelações em torno da relação do biografado com drogas. Como ficou isso?
Não tiraram uma vírgula. Não houve conversa com a família. Simplesmente a editora resolveu correr o risco em nome da liberdade de expressão, estimulada pela discussão que provocou aquele episódio deplorável do Roberto Carlos. Somos o país mais hipócrita do mundo. A discussão das biografias é meramente financeira, embora pudessem alegar direito de uso de imagem. Faça um bom acordo com as famílias e elas não vão se importar com honra. Não foi assim que a biografia de Garrincha (Ruy Castro) foi liberada? Quando o livro voltou às livrarias, estava exatamente como antes e a família com a conta bancária gorda. E os argumentos sobre honra e reputação foram abandonados.

Na quarta-feira (10), o senador Agripino Maia (DEM-RN) manobrou para engavetar a lei das biografias. Como vê isso?
Natural que quem tem sujeira para esconder fique apavorado. Só há um caminho para impedir isso: a sociedade civil voltar a pressionar o Congresso. E vai voltar, basta um novo processo surgir e causar indignação. No momento, as maiores editoras do Brasil estão contratando e produzindo grandes biografias que devem sair a partir de 2015. Elas têm a opinião pública, a imprensa e boa parte do judiciário, inclusive ministros do STF, a seu favor e vão bater de frente com essa palhaçada. Falam em biografias que denigrem figuras públicas. Pois bem: quem pode me citar um exemplo? A de Roberto Carlos, que nem os advogados dele leram porque usaram argumentos financeiros?

Todo mundo conhece Brasil Pandeiro, Boas Festas e Cai Cai Balão. Mas poucos conhecem seu autor. Por que?
Depois de morto, ele ficou 15 anos praticamente esquecido. A sociedade desse que é, repito, o país mais hipócrita do mundo, não perdoa suicidas. Isso é praxe cultural, moral e religiosa. Os suicidas vão para o inferno e aqui, entre os vivos, são jogados no limbo. Assis foi um caso assim. Quando morreu, o presidente da Câmara Municipal do Rio não deixou velarem o corpo dele lá, alegou que não era famoso o suficiente para tamanha honraria. Na verdade, ele não o fez por se tratar de um suicida. Nessa época, Assis andava sujo, barba por fazer, sem tomar banho, delirante, consumido por seu vício pela cocaína. Essa revelação me foi feita pela afilhada, que conviveu com ele por 13 anos. Não é invenção ou especulação irresponsável, como dizer que ele era homossexual a partir de interpretações das letras de seus sambas. Contesto isso com segurança no livro, apenas ao não fazer referência a isso. A não ser que me provem com documento que Assis não foi vítima de especulação sobre sua sexualidade bem depois de sua morte. Usam Camisa Listada, E o Mundo Não se Acabou e Fez Bobagem para afirmar que as letras são cifradas com simbologias gays. O que dizer, então, de Folhetim, de Chico Buarque? Me poupe.

Há a possibilidade de adaptação em filme ou série de TV?
Não, ninguém me procurou nesse sentido. Assis teve a vida mais trágica da história da MPB. Só o dia da morte dele, que relato em 15 páginas, daria um grande filme. Tomara que isso aconteça no sentido do Brasil rever seu valor e fazer justiça a um gênio esquecido.

Em que medida você acha que a obra de Assis foi importante no desenvolvimento da chamada "linha evolutiva" da MPB?
Não sei se chegou tão longe, mas me parece que ao introduzir a melancolia no samba - que teria adeptos e seguidores como Caymmi (Saudade da Bahia, por exemplo), Nelson Cavaquinho, Cartola, Paulinho da Viola e Batatinha - ele mostrou novas possibilidades para o gênero, que renderia variações mais celebradas pela classe média e intelectuais, como a bossa nova. Para mim, Assis e Noel foram os dois modernizadores do samba e os dois maiores compositores da era do rádio, sem diminuir a importância de Ary Barroso, Lamartine Babo e outros. Claro que coloco Caymmi - o pai da bossa nova, creio - como posterior a isso, embora tenha sido revelado em 1939.

É comum descobrirmos que artistas que transmitem muita alegria em sua obra eram na verdade depressivos e viciados em drogas. Você diria que Assis se encaixa no perfil?
Perfeitamente. Assim como Assis, esses artistas têm em comum uma doença grave que só nas últimas décadas tem sido estudada: depressão. Não é coragem ou covardia que leva o sujeito a se matar. A depressão tira o interesse pela vida. E, muitas vezes, provoca alterações radicais de humor. Por isso, Assis recorreu terapeuticamente à cocaína. Em Alegria, ele escreveu: "Vou cantando fingindo alegria para a humanidade não me ver chorar".

Assis pegou a transição do tempos do teatro de revista para o rádio. Como ele se relacionou com a nascente comunicação de massa? Ele compreendeu sua importância logo de cara?
Assis foi um gênio instintivo ao perceber a força do rádio e as possibilidades de promoção, de se tornar famoso. Ele queria a fama para se fazer notar na Bahia, em Salvador, que o recusou como cartunista brilhante que ele era. Queria mostrar para o pai branco que era uma pessoa especial e merecia carinho e atenção. Descobriu-se um marqueteiro nato e ganhou muitos inimigos por isso. Era odiado por se promover tanto na condição de compositor e não cantor - só esses podiam brilhar. Os amigos faziam intrigas, fofocas, porque ele saía na rua com os bolsos cheios de fotos suas que distribuía e dava autógrafos no verso. Ele era tão astuto que, antes de ter seu primeiro samba gravado, convenceu o jornal O Globo a fazer uma concurso para escolher um cantor que interpretaria a marcha que ele fez em homenagem ao próprio jornal. Isso tudo aconteceu entre 1932 e 1939, quando ele emplacou uma centena de sucessos, ao menos. Um caso impressionante. Só Carmen Miranda gravou 23 músicas suas. A maioria caiu na boca do povo.

Em que medida você acha que a relação de Assis com entorpecentes foi decisiva para a sua ruína? Ou ele teria se arruinado mesmo que fosse "careta"?
Se ele fosse careta, continuaria a fazer músicas tristes e melancólicas como Boas Festas (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel). Foi a doença que o inspirou a fazer músicas assim, não as drogas. A cocaína veio depois, quando Carmen Miranda foi embora do Brasil e ele perdeu sua maior intérprete. Por outro lado, a droga o destruiu, impediu de criar, mais arrastou-o para a sarjeta e ao endivadamento desesperado, motivo para seus gestos de loucura, combinados com o grave quadro depressivo: matar-se por causa de dívidas. No livro, falo dos dramas de Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Zezé Fonseca e outros que tiveram suas vidas arruinadas e até se mataram (como Zezé Fonseca, a musa de Orlando) ou tentaram.

A indústria fonográfica e a cena musical é um meio assediado por marreteiros em busca de lucro fácil e imediato não é de hoje, como vemos no seu livro. Como você avalia a postura geral de Assis nesse "antro"?
Assis e grandes compositores como Ary Barroso e Lamartine Babo reagiram com firmeza e se afastaram dos concursos de sambas e marchas ainda na década de 1930. Ary presidiu uma entidade de compositores e de arrecadação de direitos autorais e botou a boca no mundo, denunciou esquemas de jabás e apropriações de sambas e direitos autorais em jornais convencionais e nas páginas de revistas importantes como Carioca, O Malho, Revista do Rádio e Radiolandia, cujas coleções completas eu consultei para o livro. Só a Carioca teve 600 números. Na época havia um esquemão selvagem de propina que no meio se chama jabá ou jabaculê. Depois, piorou, quando passou-se a pagar até mesmo para não tocar os concorrentes. Alguém precisa escrever um livro sobre isso ao longo do século XX.

Alguma possibilidade de lançamento de Quem Samba Tem Alegria em Salvador, com sessão de autógrafos?
Adoraria. Mas fico meio inseguro. Sai de Salvador há 17 anos, perdi o contato com muita gente - amigos, colegas de colégio e faculdade - e temo que ninguém apareça.

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