LITERATURA
Exu, um princípio dinâmico
Por Marcos Dias

"Esù ó ó ni yágo loa / Mo fori balé oo. Exu, abre- me os caminhos / Eu me prosto em reverência", diz uma cantiga para Exu recolhida pelo sumo sacerdote do Culto aos Egunguns (ancestrais) e escultor Mestre Didi (1917-2013) e pela antropóloga Juana Elbein dos Santos. E essa é apenas uma pequena, mas valiosa, parte do tesouro que está sendo compartilhado com o lançamento do livro "Èsù", nesta sexta-feira, às 18 horas, na livraria Saraiva do Shopping Barra.
A iniciativa partiu da editora Corrupio, seguramente a que mais honra a produção cultural afro-baiana desde sua criação, em 1979, e teve apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia.
A sequência compreende mais dois livros assinados pelo casal: "Arte Sacra e Rituais da África Ocidental no Brasil e Xangô", Herói e Líder Mítico, ainda sem data de lançamento.
"Èsù" faz um estudo comparativo entre o sistema religioso nagô (como foram denominadas as culturas da África Ocidental, transatlânticas) nas comunidades de terreiros do Brasil e suas origens africanas.
Na primeira parte do livro, "Exu Bará Laroiê", a entidade é tratada como princípio de toda visão de mundo nagô. Na segunda, "Exu Bara: Princípio da Vida Individual no Sistema Nagô", os autores mostram Exu como um principio dinâmico que atua na vida de cada um. "Exu ocupa todas as nossas cavidades. Vive em nós", enfatiza a antropóloga.
Total riqueza
O livro tem edição bilíngue (português-inglês) e também reproduz um conjunto de textos com mitos, cantigas e fabulações em iorubá, ditas por sábios africanos e interpretados pelos autores. "A compreensão dos textos tem um efeito renovador, como se uma pessoa parcialmente cega recobrasse totalmente a visão e começasse gradualmente a focar em um mundo revitalizado, no qual cores e formas são-lhe reveladas em sua total riqueza e perspectiva", diz o texto.
A compreensão é suficiente para tirar o véu de preconceitos cultivados historicamente. Quer por conta da tradução da Bíblia para o iorubá em que o diabo é traduzido por Exu, ou o pudor de alguns diante de imagens fálicas do orixá - terceiro na hierarquia do universo, depois de Olorum e Orixalá.
"Todas as representações de arte sobre Exu são fálicas, ele sempre aparece com um falo ou uma representação fálica, uma flauta, etc. Mas ele não representa os genitores e, sim, o gerado. O falo dele não é um falo para procriar, mas do procriado. Exu é sempre descendente", esclarece Juana.
"Sem Exu estaria tudo parado. É ele quem abre as portas para levar o ebó (oferenda) para Olorum, ele que abre este mundo com outro mundo. E como princípio dinâmico, é uma entidade neutra".
O Morte
Autora do clássico "Os Nagô e a Morte", livro originado de sua tese de doutorado na Sorbonne em 1972, Juana admite: "Assim como sou apaixonada por Exu, sou apaixonada pela morte, o que, de certa maneira, é paixão pela vida. Gosto muito de viver. Gosto de sentir o vento, gosto de ver o mar". E ela destaca que, na interpretação nagô, morte é "o" morte, um jovem, e não "aquela" senhora.
Argentina de origem judaica, Juana só conheceu os pais - os demais parentes foram vítimas do nazismo e até hoje reconhece sua "solidão familiar".
Há pouco mais de um ano, no dia 6 de outubro, ficou viúva do Mestre Didi - que também era supremo sacerdote do Culto de Obaluaiyê -, com quem foi casada por 50 anos, cultuando a morte e fazendo os rituais da tradição iorubá.

Juana prepara dois livros e quer proteger acervo do Mestre Didi (Lúcio Távora | Ag. A TARDE)
"Não sei se porque desde pequena vivi várias culturas, tenho capacidade de identificar-me com coisas que não são só o meu passado e a minha memória", reconhece Juana, que declara-se agnóstica.
"Eu sei que a morte é o fim de muitas coisas, mas me pergunto: nós somos uma pequena usina elétrica, estamos vivos, e quando a gente morre o que acontece com essa eletricidade? Ela não se apaga, é transformada em outra coisa. Mas o que é essa outra coisa, eu não sei". E evoca um poema do espanhol Bécquer, lido quando era jovem: "Os suspiros são ar e vão para o ar, as lágrimas são água e vão para o mar, e quando um amor acaba, aonde o amor vai?". Ela mesma, autora de poemas inéditos, responde: "Não vai, fica".
Na parede da sala de sua casa, próximo a um erukure (emblema de proteção) que Didi deu a ela, Juana escreveu: "Na procura da minha ancestralidade judaica, Didi me ancorou na universalidade do existir".
Além da preparação dos próximos livros, atualmente a antropóloga se ocupa (e, às vezes, se preocupa) com o acervo artístico de Mestre Didi. Recentemente, a obra dele foi declarada uma universalidade. "Ninguém pode ficar com um búzio", enfatiza. Para Juana, Mestre Didi é um artista autêntico, que se inspira na própria cultura, utilizando seus materiais, mas não tem um lugar para as suas obras.
A Prefeitura de Salvador, a propósito, garantiu este ano a construção de museus para Pierre Verger e Carybé. A singularidade da obra do artista e sacerdote baiano terá que destino? "A obra de Didi é a mais autêntica representação da civilização africana no Brasil", afirma Juana.
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