LITERATURA
Obra de Maria Rita Kehl aborda o ressentimento nas relações públicas e privadas
Por Eduarda Uzêda

O Brasil das injustiças sociais abriga cada vez mais pessoas e categorias ressentidas que preferem a passividade da queixa, da lamúria e da lamentação do que a ação. Nas relações privadas não é diferente. Os "nobres de espírito" não esperneiam, não se iram, não se vingam efetivamente diante de um agravo – mas guardam e alimentam continuamente a mágoa do ressentimento.
É o que parece sinalizar e refletir a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl no livro Ressentimento. A publicação, selo da Editora Boitempo, teve sua primeira edição em 2004. No ano passado ganhou uma nova edição revista e ampliada, contendo um novo projeto gráfico e posfácio para os tempos contemporâneos, intitulada: “O ressentimento chegou ao poder?”. Uma verdadeira cereja do bolo.
“Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar. Nesse aspecto, o ressentido pode ser tomado como o paradigma do neurótico, com sua servidão inconsciente e sua impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo", explica a psicanalista.
A partir daí, a pesquisadora aborda a conceitualização deste afeto a partir de quatro pontos de vista: a clínica psicanalítica, a filosofia de Nietzsche , Max Scheler e Espinosa, sem esquecer a literatura, o cinema e a análise política do país.
Maria Rita fala da ruminação do ressentido. De acordo com o livro, “o ressentimento nomeia a impossibilidade de esquecer ou superar um agravo. Impossibilidade ou recusa? Na língua portuguesa, o prefixo ‘re’ indica o retorno da mágoa, a reiteração de um sentimento”, observa.
Vingança imaginária
“O ressentimento é um afeto de forte apelo dramático. A aposta principal do personagem ressentido, em uma ‘vingança imaginária e adiada’ contra o responsável pelo prejuízo de que se considera vítima, funciona bem como fio condutor que mantém a tensão dramática ao longo de uma narrativa”, acrescenta a autora.
Para Maria Rita, o ressentido não se percebe como responsável pelo que lhe acontece. E por outro, não se conforma por não receber a parte que lhe é devida por direito. Sente-se como se dela tivesse sido privado por alguém que se aproveita dele ou não reconhece seu merecimento.
“Da dependência desse Outro, visto como autor da garantia antecipada (e, mais tarde, da ‘injustiça’ de não a ter cumprido), decorre a passividade de tal personagem: por mais que se ‘movimente’, o ressentido é reativo, nunca ativo”, frisa a autora.
O livro tem várias camadas. Os cabeçudos da área vão gostar muitos dos capítulos relacionados à análise psicanalítica e filosófica dos ressentidos. Já os leitores não especializados e amantes da literatura vão se deliciar com o capítulo 3: “O Ressentimento na Literatura e a Estética do Ressentimento”.
Por meio da leitura analítica da tragédia Ricardo III (William Shakespeare) e dos romances Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski), São Bernardo (Graciliano Ramos) e As brasas (Sándor Márai), Maria Rita explica a diferença entre ressentimento e sede de poder, desvalorização, ira, ódio, rancor e vingança.
Política do ressentimento
Em determinado capítulo, a psicanalista fala sobre a política brasileira. Para Kehl, os brasileiros não se consideram ressentidos, mas o ressentimento não deixa de estar presente, sempre disfarçado de formação de linguagem irônica, cínica e queixosa.

Ela destaca que o brasileiro tem dificuldade em se ver como agente de mudanças, sujeito de uma responsável coletividade (a pandemia de Covid tambem provou isto), e sinaliza a relação servil do nosso povo aos líderes e patrões.
Ao abordar a ditadura militar, Maria Rita Khel afirma que Bolsonaro foi, de fato, um dos mais escandalosos ressentidos contra a grande repercussão favorável ao trabalho da Comissão da Verdade, lembrando que, em 2014, ele interferiu em uma audiência pública em Brasília sobre torturados e desaparecidos políticos para homenagear um dos agentes mais cruéis da repressão de Estado durante a ditadura: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Kehl finaliza dizendo que " o ressentimento (contra as vítimas dos torturadores) venceu com Bolsonaro no poder sobre "aquilo que, algum dia, foram nossas melhores esperanças". Baseado no que ela diz, se o ressentimento é afeto passivo e a revolta, afeto reativo que leva à ação, ainda podemos, modificar as peças do jogo. Leitura imprescindível.

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