LITERATURA
Obra enfoca o Brasil rural esquecido que guarda relações escravagistas
Por Eduarda Uzêda

Um Brasil rural com grandes resquícios de um forte sistema escravagista e patriarcal. Uma parte do país esquecida e anacrônica, onde os trabalhadores, descendentes de escravos que labutam nas grandes fazendas, têm os direitos constantemente aviltados.
Trata-se do livro Torto Arado, do baiano Itamar Vieira Junior, que já foi agraciado com o Prêmio LeYa 2018, um dos mais importantes da língua portuguesa. Publicado pela Editora Todavia, traz uma narrativa envolvente, que além de destacar contradições (de um sistema econômico perverso, de sentimentos ambíguos, de maneiras díspares de ver o mundo, de religiosidade multifacetada) apresenta muito bem costurados os recursos da dualidade e das metáforas.
A trama narra a vida dos trabalhadores rurais de Água Negra, uma fazenda na região da Chapada Diamantina, interior da Bahia, que ainda vivem em casebres de barro, sem direito a construir casa de alvenaria e que até o que eles plantam no modelo de agricultura de subsistência (não recebem salário para o trabalho de arar e cuidar da terra) são ursupados pelos patrões. O regime é o da maxima exploração.
Nesta fazenda, ocupada por negros quilombolas vivem duas irmãs, Bibiana e Belonísia, filhas de Zeca Chapéu Grande, um dos mais antigos empregados e líder do jarê, religião que traz aspectos do candomblé, da umbanda, do catolicismo, do espiritismo e de rituais indígenas. A publicação foca desde a infância até à maturidade das irmãs que seguem diferentes trajetórias. Como faces diferentes da mesma moeda, elas andarão no fio tênue que separa o amor e o ódio, a cumplicidade e a rivalidade, a mágoa e o perdão.

Metáfora do silenciamento
O silenciamento imposto a está comunidade é mostrado através da história das irmãs. Não por acaso, uma delas perde literalmente a língua da boca, uma clara metáfora da ausência de voz de uma população que vive invisibilizada no interior do Brasil, distante das grandes metrópoles.
No enredo, uma mala antiga e desgastada colocada debaixo da cama da avó, de nome Donana, chama a atencão das duas meninas que retiram de lá uma faca reluzente de belo cabo de marfim enrolada em trapos velhos. Elas disputam a faca e ambas fazem questão de provar o gosto metalizado do objeto do desejo que guarda segredos.
"Ouvi os passos lentos de minha avó chamando Bibiana, chamando Zezé, Domingas, Belonísia. “Bibiana, não está vendo as batatas queimando?” Havia um cheiro de batata queimada, mas tinha também o cheiro do metal, o cheiro do sangue que ensopava minha roupa e a de Belonísia. Quando Donana levantou a cortina que separava o cômodo em que dormia da cozinha, eu já havia retirado a faca do chão e embrulhado de qualquer jeito no tecido empapado, mas não havia conseguido empurrar de volta a mala de couro para debaixo da cama.
Vi o olhar assombrado de minha avó, que desabou sua mão grossa na minha cabeça e na de Belonísia. Ouvi Donana perguntar o que estávamos fazendo ali, porque sua mala estava fora do lugar e que sangue era aquele. “Falem”, disse, nos ameaçando arrancar a língua, que estava, mal ela sabia, em uma das nossas mãos".
Romance polifônico
A partir desta aula de como prender o leitor no primeiro capítulo, a história segue mostrando as sequelas desta travessura, que impactará na existência das duas, já que uma, a que perdeu a língua cortada de faça na boca, ficará muda para o resto da vida. Romance polifônico, é dividido em três partes — Fio de Corte, Torto Arado e Rio de Sangue .
A obra traz na primeira parte a voz de Bibiana, na segunda, o pensamento/voz de Belonísia e na terceira, a fala de uma entidade do jarê que atravessa o tempo e muitos corpos para contar sua trajetória. Todos narrado na primeira pessoa do singular.
São vozes femininas que narram, como testemunhas, as consequências nefastas da escravidão, do machismo e do patriarcado. Entre elas, a violência doméstica, o estupro e a coisificação da mulher. Belonísia, por exemplo, mal imaginaria que quando casasse trocaria a vida de trabalho árduo da fazenda, mas de afeto na casa dos pais pela escravização do casamento. O marido Tobias se comporta como o senhor e espera dela o papel de serva.
"Tobias retornava ao fim da tarde e a primeira coisa que fazia era dar uma talagada na garrafa de cachaça que ficava em cima da mesa. Depois tomava banho ou ia direto se sentar à mesa para a refeição. Eu parava o que estivesse fazendo para servi-lo. No começo, parecia apreciar minha comida, sempre repetia".
"Depois passou a reclamar que tinha muito ou pouco sal. Que o peixe estava cru, e me mostrava pedaços em que eu não conseguia enxergar a falta de cozimento, ou outros que se esbagaçavam com as espinhas, dizendo que tinham cozido demais", narra Belonísia, a irmã que tem a relação mais aprofundada com a terra e natureza, diferente de Bibiana, que desde cedo adquire, consciência política dos direitos dos quilombolas.
Duplicidade
O título do livro, Torto Arado, remete a um instrumento agrícola para lavrar a terra quase arcaico diante da realidade de mecanização e de modernização atual das fazendas. O "torto" aí ganha o sentido de enpinado pelo uso de várias mãos de antepassados e trabalhadores que cuidaram da terra. O autor, em entrevistas, conta que o título foi tirado de um verso de Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga.
O tema da dualidade está presente em vários momentos da obra. O próprio arado divide a terra em duas, bem como a faca que corta em bandas ou o rio, que divide as margens. O bem e o mal que habita os personagens, assim como a coragem e a covardia, a subordinação e a revolta, a voz e o silêncio, o corpo e o espírito são exemplos no livro que trazem as duas irmãs como símbolo maior da duplicidade. Belo livro que nasceu clássico, que arrebata e emociona o leitor e com grande potencial para ser transposto para as linguagens de TV, teatro e cinema.

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