LITERATURA
Tina Correia: "A base do Nordeste é o folclore"
Por Debora Rezende

Quando era criança, Tina Correia comia uma carne borrachuda, o cabelouro, para ficar bonita. Pulava o Carnaval nas ruas de Sergipe, onde nasceu e morou por muito tempo. Com dúvidas em relação à existência de Deus, acompanhou a trajetória do pai no Partido Comunista Brasileiro. Desde que aprendeu a escrever e ler, pegou gosto pela coisa. Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde mora até hoje, para fazer mestrado em Literatura Brasileira. Encantou-se pela quantidade de livros à disposição. A matemática quem lhe ensina são os netos. Com vontade de ser "tudo" e sem revelar quantos anos tem ("Segredo. Tenho a idade da esperança"), ela lança seu primeiro romance - uma compilação de escritos, memórias da família e amigos e uma porção de coisas que inventou. Sob os olhos de uma criança, Essa Menina - De Paris a Paripiranga reflete os medos de uma protagonista cuja vida foi permeada pelo folclore e a cultura popular. Ao longo da obra, Tina explora o contexto dos anos 1930 a 1960. Enquanto resgata expressões e brincadeiras típicas de um País em formação, a autora mostra a perseguição aos comunistas e as inseguranças geradas pela Segunda Guerra Mundial. Em entrevista ao A TARDE, a escritora falou ainda sobre a imposição da beleza às crianças e o empoderamento feminino na literatura.
Noções de religiosidade, cultura e tradição são fortes no livro, sempre na visão de uma criança. O que motivou a escolha da personagem?
Minha intenção era escrever, depois de muitas coisas já escritas, a saudade - morando no Rio, a saudade da terrinha, onde enterraram meu umbigo, lá em Aracaju. Ficava registrando algumas coisas, lembranças dos amigos, das famílias, dos livros que li. Principalmente quase tudo pautado no folclore, que é encantador. No Nordeste mais, até. Queria colocar a visão de uma criança. As pessoas se identificam. Algumas leem e dizem: 'você contou o que se passa exatamente na minha família'. O livro trata do ser humano. Trata do sofrimento da Segunda Guerra, dos medos, das alegrias, tudo na visão da criança.
O medo de perder a memória marca a protagonista. Por que a escolha desse aspecto do envelhecimento?
Todo mundo perde a memória quando chega num certo tempo. É natural. Depois de uma certa idade, você volta ao passado. Resolvi colocar uma personagem que tem medo de perder sua memória, sua história, o que ela preza tanto. Acho que tem um pouco a ver com todos nós. Existem duas opções: ficar velho ou morrer. Essa eu não quero - quero ficar velha, mesmo esquecida. Eu quis colocar isso, uma pessoa que, prestes a perder a memória, certamente pelo Mal de Alzheimer - não quis colocar esse nome porque nem todo mundo no Nordeste conhece, a informação não chega, não só no Nordeste, mas no interior. Chegando aos 80 anos, depois de viver tanta coisa, ela tem medo de se perder completamente.
Muitas etnias são abordadas ao longo de Essa Menina - tanto seus aspectos físicos quanto culturais e a própria linguagem. O que motivou esse destaque?
Uma coisa que queria muito retratar era a miscigenação do Brasil: o índio, o negro e o português, basicamente. O trio que criou a nossa raça, criou o brasileiro. Sou apaixonada por termos indígenas, e lembrei de um que ficava na minha mente. Havia um alto-falante quando eu era criança. Mandavam recado de Paripiranga para Dona Fulana. Eu nunca pisei em Paripiranga, não tenho a menor ideia de como é, mas sei que todo o Nordeste tem uma ligação muito profunda. Não queria perder essas expressões. São muito exóticas, muito típicas de uma cultura.
Outro ponto marcante é a presença da cultura popular na obra - brincadeiras, cerimônias e ritos. Como foi para você fazer essa ressalva?
Nasci dentro da cultura popular. A base do Nordeste é o folclore, até hoje. Cresci em um período muito ingênuo. No Carnaval, toda criança saía com saquinho de confete amarrado no pulso. E as brincadeiras... Não se brinca mais. Não se brinca na rua, é perigoso. Meus netos, infelizmente, ficam trancados dentro de casa. Criança precisa correr para fortalecer o músculo, tomar sol. Hoje é tão raro uma criança subir em árvore... Eu queria resgatar essas brincadeiras, um pouco disso que acabou.
Ainda que não seja autobiográfico, tem um pouco da sua história pessoal no livro?
Não é autobiográfico, absolutamente. Não vivi aquilo tudo, eu apenas, como uma técnica de escrita, recolhi algumas falas. Retratei situações histórias de Sergipe, da história do Brasil, como a morte de Getúlio Vargas. Com essa base, resolvi escrever a visão infantil. Não é autobiográfico porque não é a minha história. Mas tudo que você escreve diz um pouquinho da sua personalidade. É evidente que tem muitas coisas que eu vivi. Uma lembrança do meu pai preso na época do Estado Novo, por exemplo. Existe um pouco do que eu vi - um pouco do que vi e muito do que eu inventei. Queria homenagear a minha família. Não é biografia. É verdade que eu me inspirei na família, nos avós, nos vizinhos e criei.
A trama fala muito sobre a imposição da beleza às meninas. De que modo você lidou com esse aspecto?
Ainda hoje você tem que ser bonita, de olhos verdes, claros. A beleza não existe na cor do cabelo nem na cor dos olhos - existe naturalmente. Quando era criança, queria ser aeromoça. Meus irmãos e tios disseram: "procura outra profissão. Para ser aeromoça, não pode ser negra (eu sou miscigenada), não pode ter cabelo enrolado (meu cabelo é bem cacheado) e nem pode ser baixinha. Você tem que ser alta, de olhos verdes e cabelos loiros". A minha tia fazia uma brincadeira para obrigar a gente a comer - às vezes a comida não era tão gostosa. A carne, por exemplo, era o cabelouro. É terrível de comer. Ela dizia: "senta atrás da porta e come, e pede ao cabelouro para ficar bonita". Essa história era comum.
O cenário político que tece o livro é bastante delicado. Por que a escolha do período de 1930 a 1960?
Meu pai foi preso várias vezes na época do Estado Novo. Essa menina, prestes a completar 80 anos, tem a idade da Anita Leocádia. Eu quis começar a contar a política a partir daí, como foi a perseguição. Quis fazer uma homenagem às pessoas que foram torturadas ao longo desse tempo, da década de 1930 até quase a ditadura última. Quis mostrar que lá atrás já existiu a perseguição. E continuou. Tem que ter liberdade para você escolher - até hoje. Você tem que ter liberdade para escolher se gosta ou não de Dilma, Lula, ou Temer. Uma coisa de que eu não abro mão é do respeito, da ética e você respeitar o que é público. A religião, a política, tem que ser para o bem da comunidade, não para o benefício pessoal.
Vivemos o empoderamento das escritoras. De que modo você percebe isso?
Não é o homem que dá valor à mulher. Ela que descobre o seu valor e mostra. Tanto que, o meu livro, o meu marido não leu. Ele não é editor, não é crítico. Vai ler depois de pronto, se quiser. A história mundial está cheia de mulheres em todas as áreas. O espaço dela está sempre reservado. Muitas mulheres grandes brilharam apesar de terem sido valorizados mais os homens.
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