MÚSICA
Gravação inédita ressalta brasilidade na música de João Gilberto
"Relicário: João Gilberto ao vivo no Sesc_1998" já está disponível nas plataformas digitais
Regra de ouro da indústria fonográfica: artista consagrado morre, começa a corrida aos arquivos das gravadoras, estúdios e instituições em que ele ou ela se apresentou.
Para ficar só nos exemplos mais óbvios, a discografia pós-morte de Jimi Hendrix e Janis Joplin já superou em muito o que eles gravaram em vida (também vale lembrar que ambos morreram jovens).
Girando no prato ou decodificados os zeros e uns do streaming, os resultados são variados, indo do sofrível ao virtual tesouro escondido.
Felizmente, este último é o caso de Relicário: João Gilberto ao vivo no Sesc_1998, já disponível em todas as plataformas digitais.
Para os colecionadores, o Sesc providenciou numa belíssima edição em CD duplo em formato livreto com capa dura, com direito à todas as letras, dados de cada composição e textos bilíngues do letrista Carlos Rennó, da jornalista Kamille Viola, do artista visual Spetto (autor da imagem de capa, originalmente um grafite gigantesco no centro de SP) e de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc SP.
O álbum duplo traz a íntegra do show realizado pelo gênio juazeirense na noite de 5 de abril de 1998, no Teatro do Sesc Vila Mariana.
Em quase duas horas registradas em fita DAT (Digital Audio Tape, formato já abandonado pela indústria e que estava para a fita cassete como o CD estava para o LP), João Gilberto, no auge de seu domínio das seis cordas e do alto de sua sensibilidade, desfia repertório impecável de clássicos da bossa e do samba pré-bossa.
O sentimento das pessoas
Entre as 36 faixas de áudio absolutamente cristalino, é até difícil apontar destaques desta verdadeira aula magna de musicalidade brasileira.
Há os clássicos da bossa nova: O Pato, Wave, Eu Sei que Vou Te Amar, Corcovado, Desafinado, Chega de Saudade. Há os clássicos pré-bossa, frequentes no repertorio de João: Carinhoso (Pixinguinha / Braguinha), Ave Maria no Morro (Herivelto Martins), Doralice (Dorival Caymmi / Antônio Almeida), Rosa Morena (Caymmi), Pra que Discutir com Madame (Janet de Almeida / Ary Vidal). Tem instrumental de autoria do próprio João (Um Abraço no Bonfá).
E há até mesmo uma inédita, nunca gravada pelo artista: Rei Sem Coroa (Herivelto Martins / Waldemar Ressurreição), inspirada na história do rei Carlos II, da Romênia, que passou a viver no Hotel Copacabana Palace após ser forçado a abdicar de seu trono durante a Segunda Guerra.
E dando voz a quem realmente sabe do que fala, vale destacar algumas linhas do excelente texto de Carlos Rennó no livreto que acompanha o CD duplo: “O repertório aqui coligido demonstra como João Gilberto é antenado com a vida e com o sentimento das pessoas simples (...). Reconheça-se a atenção que dava para a temática racial, por exemplo. Em Isto aqui o que é, Pra Que Discutir com Madame, Curare, as três trazendo em seus versos a palavra 'raça' (em Curare também ouvimos 'nega neguinha' e 'gente de cor') e no antológico samba intitulado simplsmente Preconceito ('você diz a toda gente que eu sou moreno demais')”.
Mais adiante, ele nota: “Reouvir João agora, aqui, nos dá a chance de renovarmos essa percepção fundamental para seguirmos vivendo com a necessária esperança. Isto tem relação, sim, com sermos – e voltarmos a nos orgulhar de ser – brasileiros; com reafirmarmos o que existe de luminoso em nós, na brasilidade, neste momento de nossa história, de restabelecimento de valor da arte e da cultura no país, o que equivale a dizer: de nossa alma”.
Palavras – e canções – de salvação.
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