CÊNICAS
O cotidiano de uma família interiorana e suas questões
Peça ‘Partiste’ estreia nova versão no Teatro Martins Gonçalves
Por Elis Freire*
No interior da Bahia, uma mãe e seus três filhos vivem cotidianamente a dor da saudade de Jairo, quarto filho da matriarca que foi morar em São Paulo. Essa é a atmosfera da peça teatral Partiste que volta aos palcos em uma nova versão, com direção de Icaro Bittencourt. Desta quinta-feira, 21, até domingo, 24, o espetáculo regido pelo afeto, luto e a força das relações familiares fica em cartaz no Teatro Martins Gonçalves (Canela), às 19h.
“Partiste é uma peça sobre afetos. Afetos que não morrem, ainda que os filhos dessa mãe vão se despedindo dela. Na peça, uma das maneiras que ela tem de demonstrar afeto é alimentando todo mundo o tempo todo, porque no interior tem muito isso. Você cuida do outro dando comida”, conta Paulo Alcântara, autor do texto, escrito e encenado pela primeira vez em 2010.
Vencedora do Prêmio Braskem de melhor texto, o espetáculo ganhou outra vida com a versão de Icaro Bittencourt que realiza a direção, produção musical e cenário. A protagonista da nova montagem é a renomada atriz baiana Márcia Limma, conhecida pela sensível atuação em Medeia Negra.
A montagem da peça faz parte da conclusão do mestrado em Artes Cênicas de Icaro, que buscou estudar e aplicar os fundamentos teatrais ensinados pelo seu mestre, Harildo Déda. Professor da UFBA, diretor e ator, Harildo faleceu na madrugada desta última terça-feira, 19.
“A razão de eu estar montando essa peça é porque ela faz parte da minha pesquisa de mestrado. Harildo foi meu mestre e é o tema da minha pesquisa. Os procedimentos dele de preparação de ator, encenação estão presentes no espetáculo, para perceber a influência dele no meu trabalho e homenageá-lo”, afirma o diretor Ícaro Bittencourt.
Novo olhar
Além do novo elenco e direção, a protagonista de Partiste desta vez ganha um nome: Ester. Com uma humanização da personagem principal, a peça discute a complexidade de ser mãe e organizar uma família, com muito amor e trabalho. No espetáculo, a mãe está sempre bordando, enquanto organiza a sua vida diante do luto dos filhos que vão para longe.
“Ester é uma personagem maravilhosa, muito complexa. Eu fui me inspirando em muitas mulheres negras, muitas atrizes negras que conseguiram fazer mães complexas. Mesmo sendo mãe, Ester não deixa de ser ela. Ela é uma referência de mulher que consegue manter uma ordem familiar e formar pessoas. É uma figura que transborda muito amor, mas ao mesmo tempo ela é muito severa, porque é difícil dar conta da formação de outra pessoa. Eu acho que é isso que é essa construção diária que ela vai bordando durante o espetáculo”, ressalta Márcia Limma.
Na cidadezinha de Livramento de Nossa Senhora, o público acompanha o dia a dia na casa de uma família atravessada por muitas perdas, mas também por muito afeto e arte. Marcia Limma encabeça a equipe de atuação formada por Carol Alves, Daniele Souza, Luzia Barbosa e Ruan Passos, elenco majoritariamente negro que interpreta a família interiorana.
“A peça é um diário de uma casa de uma família trocando afeto, amor e compartilhando sentimentos de saudade. Essa mulher que é mãe tem que lidar com uma partida de um filho que não dá notícias. As cartas não chegam e o desespero da família vai se instaurando. Ao mesmo tempo vai virando algo da rotina da casa assim como cortar o maxixe, como comer junto, fazer fogueira de São João. Pensar em Jairo vira um rito também”, conta Bittencourt.
“No final das contas a peça está falando desse lugar sensível de trocar afetos mesmo e ver isso representado no palco com uma família negra é fundamental”, completa.
Histórias de mães
Autor de obras como Lábios que Beijei (1998), Bolero (2001) e Maldita Seja (2023), o consagrado dramaturgo baiano Paulo Alcântara se inspirou na sua mãe, nas suas tias e nos vizinhos da sua cidade natal representados na peça. Escritores importantes para Paulo, como José de Alencar e Jorge Amado, também são referenciados no texto dramático, através da filha Ceci, que está sempre lendo.
“Eu sou uma pessoa muito ligada à minha família e muito atenta às histórias e aos causos familiares. Minha mãe, a minha tia, as minhas avós são contadoras de histórias e, por extensão, os vizinhos. Então eu guardei essas histórias. Partiste se passa na minha cidade, a cidade está na peça. A igreja, a feira, a venda, a farmácia, o circo”, afirma Alcântara.
“A mãe é apaixonada por telenovela então a mãe não perde um capítulo da telenovela, a filha Ceci não para de ler, Dolores vive no cinema. Então essas essas formas de manifestações e meios de se contar história estão muito presentes na peça, ajudando essas pessoas a viver o cotidiano, porque o cotidiano em si é pobre”, completa.
Realizado em ver seu texto ganhando vida, o autor está ansioso pela estreia de Partiste. Com um elenco completamente novo, a obra que completou 13 anos ganha novos contornos. Partiste, que também virou livro publicado em 2015, pelo Selo Literário João Ubaldo Ribeiro, volta aos palcos no Teatro Martins Gonçalves da Escola de Teatro da UFBA (Canela) a preços sociais de R$ 10 a inteira e R$ 5 a meia.
“Um autor escreve seus textos para ser encenado. Então, quando um jovem diretor tão talentoso como Ícaro, um discípulo de Harildo que aprendeu muito com ele, revive esse espetáculo, me deixa encantado. Eu escrevi o texto, mas estou muito aberto para que ele traga suas marcas e me faça olhar o texto com novos olhos. Além de que o elenco que ele trouxe pulsa pelo teatro”, diz o dramaturgo.
O público verá em cena um ambiente simples familiar, mas com tramas geradoras de muita reflexão. Personagens que tem que lidar com a morte, com o ir embora e com o luto, mas aqueles que ficam seguem se cuidando.
“As pessoas vão ter oportunidade de refletir sobre essas camadas familiares que são importantes em momentos difíceis, mas também em momentos de compartilhamentos. O espetáculo é um convite a compartilhar sensações que só quem convive com uma família tão afetuosa como essa pode ter ali naquele momento”, ressalta a atriz Márcia Limma.
Na sexta, 22, e no sábado, 23, a exibição de Partiste irá contar com recursos de acessibilidade em libras e roteiro audiodescritivo. A produção da peça sinaliza a importância de que os espectadores interessados levem o seu aparelho celular, além de um fone de ouvido.
‘Partiste’ / De hoje a domingo, 19h / Teatro Martim Gonçalves (Escola de Teatro da UFBA, Canela) / R$ 10 e R$ 5/ Vendas: Sympla ou bilheteria do Teatro / Apresentações com RECURSOS DE AUDIODESCRIÇÃO: amanhã e no sábado
* Sob a supervisão do editor Chico Castro Jr.
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