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ENTREVISTA / RENATO BARBIERI

“Fazenda escravagista é fazenda criminosa", diz diretor de Dona Pureza

Filme conta a história de mulher que infiltrou-se sozinha em fazenda do Norte para resgatar filho escravizado

Por João Gabriel Veiga*

23/06/2022 - 19:16 h
Dira Paes interpreta Dona Pureza
Dira Paes interpreta Dona Pureza -

A coragem está onde menos se espera. No início dos anos 1990, Dona Pureza viu seu filho Abel ser ludibriado por promessas de um salário melhor antes de ser sequestrado para trabalhar em condições análogas à escravidão em uma fazenda no Pará.

Dona Pureza, então, infiltrou-se sozinha em uma das fazendas da região para buscar sua cria, o início de uma articulação política que tomou proporções cada vez maiores.

Hoje, ela é um dos maiores nomes do ativismo contra o trabalho escravo no Brasil, sendo reconhecida internacionalmente por seu trabalho.

Sua história chegou aos ouvidos do cineasta Renato Barbieri. Ao longo de sua carreira, Renato se especializou no documentário, com títulos como Cora Coralina: Todas as Vidas (2017), mas diz que a história de Pureza — título de seu mais novo filme —, sempre foi planejada como um filme de ficção.

O público nacional aprendeu com a história da protagonista algo que o diretor já havia experienciado no processo de produção do filme.

Em entrevista ao jornal A TARDE, Barbieri conta que dar um passo para ficção o deu uma dimensão de como o real, objeto do documentário, era inesgotável e rico em dramaticidade.

Após ter o lançamento adiado devido à pandemia, o real de Dona Pureza enfim chegou aos cinemas.

Como você conheceu a história de Dona Pureza, e como ela se transformou na ideia para um longa?

A história chegou em mim se encaixando muito bem com as coisas em que estou empenhado, focado. Ela trata exatamente das urgências do mundo, desses tempos de urgências aceleradas. Fiz meu primeiro filme de ficção [As Vidas de Maria, 2005], que inclusive tem dois baianos, Ingra Lyberato e Gustavo Melo, e foi uma experiência de graduação na ficção. Eu já era documentarista desde 1985 e fiz esse filme na perspectiva de um ensaio de como é dirigir um elenco. Foi o que quebrou essa mística de estar num vertiginoso set de ficção. E eu queria fazer outro filme de ficção depois disso, gostei muito da experiência e queria fazer algo que tivesse a ver com os conteúdos que trabalho nos meus documentários, como negritude, as urgências climáticas, brasilidade, a mentalidade escravagista brasileira… E ai surgiu a história da Pureza, que eu não conhecia. Não conhecia Dona Pureza, fui apresentado a sua história por um fotógrafo de brasília, o Hugo Santarém. Ele ficou sabendo que tava em busca de uma história universal, brasileira, e ele me falou desse caso. Assim que eu li, eu soube que era aquilo que eu tava procurando. A partir dai, começou uma longa jornada de 15 anos.

Pureza teve sua estreia no Festival do Rio em 2019, mas só chegou aos cinemas brasileiros agora em 2022. O que você pensa sobre essa demora da chegada dos nossos filmes ao nosso circuito comercial?

Lançar um filme brasileiro já é um grande desafio, mesmo sem pandemia. Com a pandemia, ficou mais grave. A gente estava pronto pra lançar o filme em 2020, mas ai começou tudo isso e adiou, adiou, adiou… Mas eu acho que a gente tá lançando num momento oportuno em que o país tá discutindo muito o que ele quer ser como nação, que país é esse… Pureza traz uma contribuição a esse debate, faz olhar para o Brasil profundo, para a mentalidade escravagista, para a potência da brasilidade nesta mulher incrível e inspiradora que é Pureza Lopes Loyola.

Como foi o processo de pesquisa para realizar esse filme?

O primeiro passo quando o Santarém me trouxe a ideia foi chegar na Dona Pureza. Entrei em contato com alguns amigos e, em dezembro de 2007, a conheci. De lá pra cá, foram muitos contatos por telefone, várias entrevistas… Mas depois eu vi que não era suficiente, eu tinha que expandir minha pesquisa. Fiz várias viagens, longas viagens por terra nas cidades onde ela esteve no Maranhão e no Pará. Ia conhecer as locações, falar com as lideranças, pessoas que haviam sido escravizadas, abolicionistas locais, pessoas que estiveram com a Dona Pureza naquela época entre 1993 e 1995. A pesquisa foi crescendo. Fazer um roteiro de ficção é muito mais complexo que fazer um roteiro de documentário porque o documentário permite que você pule pro passado. Você vai pro século 16, ai volta pro século 21, você anda com mais liberdade pelo tempo. Já na ficção, não. Você tem que ter um processo de coesão, não pode se desviar tanto da história se não vira outro filme. Encontrar essa síntese foi muito trabalhoso. Essa pesquisa cresceu tanto que eu vi que não cabia só no Pureza, e ai resolvi fazer outro documentário também em paralelo. Ele se chama Servidão, e devo lançar no segundo semestre desse ano.

Pureza trata de um tema bastante espinhoso, com temas que envolvem o agronegócio. Em algum momento você achou que essa abordagem dificultou a realização do filme?

De fato não foi fácil de se viabilizar, por isso demorou tantos anos para ser feito. Não só porque a pesquisa foi se aprofundando, mas a captação de dinheiro também se dificultou. A gente não conseguiu um Real da iniciativa privada. Eu senti que a indústria, o capital financeiro, que prega tanto a liberdade, ficou bastante indiferente, não deu relevância a essa história de uma mulher que defende a liberdade como um patrimônio maior. O filme existe graças as políticas públicas de fomento à cultura.

Nas últimas semanas, os conflitos com o agronegócio têm infelizmente sido notícia de novo por causa do desaparecimento e morte do Dom Philips e Bruno Pereira. Como você, que trabalhou tão fortemente com esse tema, reagiu a essas notícias? E como você vê o cenário da luta ambiental nos últimos anos aqui no Brasil?

Eu vejo como tudo fazendo parte do mesmo fenômeno, do mesmo pacote de maldades da mentalidade escravagista patriarcal. Vejo que a escravidão que a gente retrata no Pureza, totalmente fiel aos fatos e sem fantasias, é o mesmo fenômeno do crime organizado. Uma fazenda escravagista é uma fazenda criminosa. Ela é formada por um cartel criminoso de políticos, empresários, enfim… É uma máquina, e é a mesma que matou Bruno e Dom. É uma máquina que só quer explorar, não vê valor nenhum na vida e acha que a vida pode ser destruída por não ter valor. Só o que vale é o metal. O que acontece no Pureza, o que ela viu, não é muito diferente disso. É a mesma Amazônia. Os crimes ambientais andam de mãos dadas com os crimes sociais, de sequestro de armas, de tráfico de drogas…

Como foi conhecer Dona Pureza?

Dona Pureza é uma mulher muito sábia, e é uma inteligência que ela não adquiriu nos livros. Ela adquiriu na vida. Existe uma inteligência que não é do âmbito da razão do sistema nervoso, é do âmbito celular, do viver, e Dona Pureza seguia essa inteligência da vida. Isso é impressionante. Ela não escorrega, ela não se trai, ela é muito coerente com os sentimentos dela. Eu diria que esse sentimento faz parte do pacote da sabedoria da vida. O convívio com ela nesses últimos 15 anos tem sido de constante aprendizado e surpresa. No lançamento do filme, estive com ela em São Luiz, São Paulo e Rio de Janeiro, e sempre é uma postura muito íntegra, muito digna. Ela gosta do filme e se vê nele, o que é muito importante para todos nós que fizemos o filme. A Dona Pureza tem aspectos do âmbito do divino, ela é uma mulher iluminada.

E ela ganha corpo no filme através de Dira Paes. Como foi o processo de escalação até chegar até a Dira, e como foi trabalhar com ela?

Eu já tinha trabalhado com a Dira como narradora de um filme meu, Os Filhos de Nazaré, que ocorre em Belém, a terra dela. Foi um contato rápido, no estúdio de áudio no Rio. Mas quando eu tava já no terceiro tratamento do roteiro, comecei a pensar quem seria a Dona Pureza e como resposta, veio a imagem da Dira. Ficou muito claro na minha tela mental e em momento nenhum eu tive dúvidas de que seria ela. Agora trabalhar com ela foi maravilhoso. Ela é uma professora, uma mestra de cinema, ela saca muito. É disciplinadíssima, ela estuda o roteiro e vai pro ensaio com o texto na cabeça. E o texto dela é muito grande, ela tá no filme inteiro e interage com todos os personagens. O roteiro dela era todo cheio de post-its e marcações. ela faz o dever de casa com excelência. Você tá de frente com algo muito elevado, muito bem desenhado. Ela foi comigo conhecer Dona Pureza e foi um momento mágico porque ela absorveu coisas, palavras, jeitos, o tipo físico que ela desenha muito bem no corpo dela… Ela mudou, você não vê a Dira, você vê a Pureza. Ela foi a melhor pessoa do mundo para fazer esse papel.

E além disso tudo, você chegou a conhecer e conviver com pessoas que foram escravizadas. Como foi a experiência de conhecer pessoas submetidas a essa situação tão desumanizante?

Poderia ser qualquer um de nós. É só por uma questão da gente ter nascido com uma condição social melhor que não foi. E com essas pessoas, você vê pessoas loucas para se expandir, para crescer na vida, melhorar de vida, ter experiências. É o anseio de qualquer ser humano, mas eles são ignorados pela vida, são vistos como coisa. Existe uma “coisificação” da vida à qual essas pessoas são rebaixadas. É humilhante, é sofrido, a autoestima está lá embaixo. Essas pessoas passam frio, ficam doentes, mas têm que trabalhar, não têm folga, não têm salário, chega no fim do mês e estão devendo. Muitos morrem, ficam doentes, piram. É como se fosse uma guerra, eu faço um paralelo com os veteranos de guerra dos Estados Unidos que voltam do campo de batalha completamente desestruturados, destroçados por dentro. Eu vejo que esses garotos de 18, 20 anos, cheios de vida e de esperança de ter uma vida bela pelo trabalho, são jogados por mentiras, falsas promessas, armadilhas. São vidas que se perdem. Pensa na sua vida, o que seria você estando numa fazenda dessa, querendo sair e ver sua família, e sendo tratado pior que bicho?

Pureza / Dir.: Renato Barbieri / Com Dira Paes, Matheus Abreu, Flávio Bauraqui, Mariana Nunes / Salas e horários: cinema.atarde.com.br

*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.

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Tags:

Renato Barbieri, entrevista

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