CULTURA
Um artista peregrino
O cineasta e escritor argentino Carlos Pronzato é testemunha de histórias vivas
Depois de conceder entrevista no Porto da Barra, pouco antes do meio-dia, na semana passada, o cineasta e escritor argentino Carlos Pronzato encaminhou-se na direção da Cruz de Malta, no Marco Comemorativo da Fundação da Cidade do Salvador, para ser fotografado.
Ele conhece a capital baiana em suas minúcias e já fez diferentes documentários e textos sobre a boa terra desde que desembarcou por aqui, na década de 80. Tratou da Revolta do Buzu, que completa 20 anos agora em agosto, do assassinato de Moa do Katendê, da extinção dos trens do subúrbio.
Pronzato viajou muito. A camisa que veste no dia da entrevista foi feita no Chile, onde documentou a revolta popular de 2019, embrião das mudanças políticas que levaram ao governo o jovem Gabriel Boric, depois de quatro décadas em que dois partidos tradicionais, um de centro-direita e outro de centro-esquerda se revezaram no poder.
Quando a população se move nas ruas em algum lugar da América Latina, o documentarista dá um jeito de subir em um ônibus e levar sua câmera. É, ao seu modo, um explorador. Por isso, ao passar perto do painel de azulejos feito há 20 anos, que retrata a chegada de Thomé de Souza em 1549, Pronzato aponta para a obra do ceramista português Eduardo Gomes e sorri. "Tenho essa contradição, de repelir o colonialismo e as invasões dos povos, mas meu trabalho surgiu das viagens que fiz a outras culturas, de ônibus, de barco", diz ele, que produziu mais de 90 documentários.
De uma família de artistas pobres da cidade de Tandil, província de Buenos Aires, o documentarista começou a escrever ainda na infância, mas seu amor aos animais o levou a entrar para a faculdade de medicina veterinária. Curso que abandonaria ao participar de uma atividade acadêmica em que viu seus colegas matando animais com um corte no pescoço para levar os corpos para estudo em laboratório.
Anos depois, Pronzato resolve desbravar a América Latina, em viagens de carona. Em sua definição, no mesmo espírito de seu compatriota Ernesto Che Guevara, exibido no filme Diário de Motocicleta.
"Mas sem uma motocicleta. Aliás, a viagem de Che Guevara sobre rodas é um mito. A moto quebrou ainda no Chile e ele seguiu o percurso como deu para ir", afirma o cineasta. No México, Pronzato fez documentários sobre argentinos que imigraram para a América do Norte durante a ditadura militar.
De volta à Argentina, entrou em contato com Sandra Diaz, professora do Centro Cultural Brasil Argentina, que o colocou em contato com a obra de Mestre Didi, que conheceria pessoalmente, depois de vir ao Brasil em um programa de intercâmbio feito através da Embaixada Argentina. O governo brasileiro lhe deu como alternativas estudar letras em João Pessoa ou Uberlândia, ou teatro em Salvador. Optou pelas artes cênicas, mas acabou se dedicando ao audiovisual, especialmente aos documentários políticos.
Anarco-comunista, Pronzato não se interessa por políticas oficiais ou estruturas partidárias. Seu foco de trabalho são as manifestações populares que desafiam o poder estabelecido, a negligência do estado e crimes políticos contra a cidadania, como no caso de O Alerta do Gesto - A cassação de Maria Tereza Capra, sobre uma vereadora de São Miguel do Oeste, Santa Catarina, que perdeu o mandato depois de denunciar saudações nazistas feitas por eleitores de Jair Bolsonaro em protesto contra o resultado das eleições presidenciais de 2022. O documentário foi lançado em Salvador na quinta-feira passada.
Em momentos históricos específicos, como o processo de golpe contra Dilma Rousseff, a prisão de Lula em Curitiba e a ascensão da extrema-direita em 2018, Pronzato atua politicamente, mas se recusa a votar. "O único voto que dei foi na Argentina em 1987, para Luiz Zamora, do Movimento ao Socialismo. Eu percebi o que é a votação e preferi lutar em outros espaços", afirma o documentarista, adepto da ideia de que processos eleitorais não trazem transformação social.
A política que Pronzato respeita e admira é a feita nas bases, nas organizações sociais, como o Movimento dos Sem Terra, mas, mesmo sem votar, declara apoio a governos progressistas. "O progressismo é importante para termos um mundo com menos calamidades", declara o cineasta, fazendo a ressalva de que muitos governos progressistas mantêm em seus quadros políticos conservadores.
"Esses governos são uma forma de manter o poder como está. A gente mantém o cotidiano mais ou menos em paz, mas deixa uma tampa numa panela de pressão", argumenta Pronzato, que apoiou a frente formada para derrotar Bolsonaro em 2022, mas não se conforma com a presença de Geraldo Alckmin no governo.
Comoção popular
No âmbito latino-americano, Pronzato enxerga progressos desde que o primeiro Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, em 2001, coincidiu com a chegada ao poder de líderes de esquerda na região, um movimento iniciado com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela, em 1999, e que trouxe a reboque o ex-metalúrgico Lula em 2002, o argentino Nestor Kirchner (2003) e o equatoriano Rafael Correa (2007).
Mas a conquista eleitoral que causou maior comoção popular, possivelmente, foi a chegada ao poder pela primeira vez de um líder indígena na Bolívia, com a eleição de Evo Morales. E Pronzato estava lá, registrando o momento histórico. Assim como acompanhou no Uruguai, em 2005, a eleição pela primeira vez de um presidente de esquerda, Tabaré Vasquez.
Os registros estão feitos, mas Pronzato afirma que não se animaria mais a subir em ônibus para acompanhar a ascensão de um novo líder esquerdista na América Latina. "Eu não faria mais. Não me interesso pelo movimento presidencial", diz ele, que retomou o cinema político no final da década de 90, após um período voltado para a ficção.
O ponto de inflexão ocorreu quando a população indígena de Cochabamba, terceira maior cidade boliviana, fez um levante contra a privatização da água, entregue pelo governo a multinacionais que elevaram a tarifa e ameaçaram com a expropriação de terrenos a quem não pagasse. Na época, a imprensa denunciou que a privatização da água foi feita mediante pressão do Banco Mundial, que teria ameaçado não renovar um empréstimo ao país. Mesmo com a repressão do exército, a mobilização popular derrubou a privatização.
"Essa movimentação me lembrou o período de minhas viagens na década de 80, quando eu observei as questões sociais na América Latina, mas ainda não tinha feito nada de imagens", afirma o cineasta, que em 2019 esteve no Chile acompanhando a luta dos cidadãos na rua, enfrentando a polícia, contra as políticas neoliberais do governo, que causaram um grave empobrecimento social, e reivindicando mais direitos.
"Mais de 300 pessoas perderam a visão de pelo menos um olho ao serem atingidas por balas de borracha disparadas pelos policiais", lembra Pronzato.
O documentarista afirma contar com a colaboração de organizações sociais e, eventualmente, de governos de esquerda para viajar e produzir seus filmes.
Revolta do buzu
Em Salvador, a atuação do cineasta foi igualmente importante. Ele registrou no ano passado o movimento dos moradores do subúrbio por mobilidade, depois que o centenário trem foi desativado para dar lugar a um VLT e também documentou o assassinato de Moa do Katendê com uma facada, proferida por um bolsonarista após o primeiro turno da eleição presidencial de 2018.
Mas o seu trabalho mais impactante produzido na Bahia possivelmente é A Revolta do Buzu, sobre a manifestação popular que parou Salvador em agosto e setembro de 2003 por redução no preço das passagens e que reverberou anos depois.
"No documentário sobre as Jornadas de Junho, eu entrevistei o pessoal do Movimento do Passe Livre, em São Paulo, e eles falam que a Revolta do Buzu foi fundamental para eles se articularem".
Em agosto de 2003, o renomado documentarista Silvio Tendler estava finalizando o filme Encontro com Milton Santos, feito a partir de uma entrevista com o geógrafo baiano, gravada quatro meses antes de sua morte, em 2001.
Durante o processo de produção, aconteceu na capital baiana a Revolta do Buzu, que foi documentada por Pronzato e seria tema de uma conversa posterior entre os dois, quando se conheceram na Jornada Internacional de Cinema da Bahia.
A convite de Tendler, Pronzato deu um depoimento sobre Milton Santos para o filme que seria lançado em 2006. A aproximação rendeu ao argentino ainda uma temporada no Rio, a convite do carioca. "Eu achei uma mina de ouro. Pronzato tinha não só a Revolta do Buzu, mas a cobertura de eventos importantes na América Latina. As revoltas na Argentina em 2001, a posse de Evo Morales. Eu o chamei de trotamundo da revolução, de Bakunin eletrônico", diz Tendler, referindo-se ao expoente russo do anarquismo Mikhail Bakunin.
O maior nome do cinema documental no Brasil declara-se grato a Milton Santos por ter indiretamente permitido a aproximação com o colega argentino, de quem se tornou amigo, e o enche de elogios. "Pronzato está cada dia melhor. Poeta, militante, humanista. Vida longa a Pronzato e à sua arte", diz Tendler.
Um dos livros de contos de Pronzato, O espírito da rebelião, com histórias focadas em São Paulo, vai ganhar uma nova tiragem ainda este ano por iniciativa da Letra Selvagem, editora sediada em Taubaté, interior de São Paulo. "Em tempos de desesperanças e refluxo da mística revolucionária, que embalaram os sonhos de gerações de revolucionários, é perceptível e singular a presença de Carlos Pronzato, esse artista peregrino, cuja arte cinematográfica e literária expressa conflitos políticos e sociais em vários países sul-americanos", afirma o editor Nicodemos Sena, que também é romancista e autor de À espera do nunca mais: uma saga amazônica.
Os filmes de Carlos Pronzato podem ser vistos nos canais do YouTube La Mestiza Audiovisual e Carlos Pronzato.
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