ENTREVISTA - LALA DEHEINZELIN
‘A economia criativa gera recursos que são infinitos’
Futurista e especialista em novas economias diz que o mundo caminha para um tempo de foco maior no coletivo
Por Divo Araújo
O estudo do futuro e das novas economias é que move Lala Deheinzelin. Uma das primeiras futuristas do país, Lala se define mais como uma sintetista. “É como se você enxergasse a sociedade de longe, como um todo”, explica ela, que estará em Salvador nesta semana para proferir uma palestra no Fórum Nordeste de Economia Circular, evento que tem o apoio do grupo A TARDE.
Por telefone, Lala concedeu esta entrevista na qual falou sobre futurismo ,revolução digital, economia colaborativa e ciclos da história. Para ela, o mundo passa por uma grande mudança que resultará num foco maior no coletivo do que no individual. “Há muitas coisas que precisam ser orquestradas porque afetam o planeta inteiro. O desafio climático é uma delas”. Conheça a visão de Lala sobre o futuro.
Qual é o papel de um futurista?
A profissão de futurista existe já há algum tempo. Eu sou futurista desde 1995, fui uma das primeiras do Brasil. E sou uma futurista diferente porque meu foco não é em tecnologia como a maioria das pessoas que trabalha com o futuro. Tampouco com o que se chama pensamento prospectivo, que é você imaginar cenários. Também não trabalho com tendências, porque é muito difícil prever alguma num sistema complexo como o nosso. O futurista, na verdade, é um sintetista, que enxerga o todo. É como se você enxergasse a sociedade de longe. Quando a gente olha para o mar de longe da terra e vê o continente, o movimento das correntezas. Os sintetistas conseguem ter esse olhar. Porque ele é importantíssimo neste momento? Porque existem momentos da história que são de grande transição. Antes, esses momentos demoravam. E só lá para frente os historiadores davam um nome para ele. Chamavam de Renascimento, de Revolução Francesa, disso ou aquilo. Agora, por conta da vida em rede, que acelerou tudo com alcance muito maior, as mudanças são mais intensas. Se a gente pegar a história da humanidade, a gente imagina um monte de curva. A primeira seria a gente vivendo como coletores, que durou milhares de anos; depois como agricultores, mais milhares de anos; Tivemos ciclo das navegações, que demorou vários séculos; da indústria, alguns séculos. E agora? Nós estamos há pouquíssimo tempo nesta que é a maior mudança de todas, que é a digital. Estamos entrando num mundo que nunca aconteceu. Nesse momento, a coisa mais fundamental para gente que é futurista se chama de alfabetização no futuro. Da mesma maneira, que tempos atrás, o grande problema era o analfabetismo da população, agora o grande problema é que a gente é analfabeto no futuro. A gente só opera a partir do passado. E as decisões são cada vez mais urgentes. Temos como resolver tudo, porque há dinheiro, pessoas, tecnologia. O que a gente não tem é escolha. E, para fazer boas escolhas, a gente precisa que todo mundo seja um pouco futurista.
O trabalho do futurista, pelo que você já disse, é enxergar futuros desejáveis e como realizá-los. Como construir esse futuro desejável no agora?
A primeira coisa é ter consciência do que a gente está vendo. Porque o grande problema da humanidade, ao longo da história, é que muitas vezes a gente não sabe o que está acontecendo. A gente só vive aquela confusão toda. Mas a gente tem elementos, como acontece agora, histórias recentes, registros, tecnologia, estudiosidade para poder compreender melhor as mudanças que vem pela frente. Por isso é importantíssimo essa visão do futuro. Primeiro, para poder fazer melhores escolhas no presente. Essa ideia que só importa o presente na verdade é parcial, como tudo mais neste nosso mundo dual. A felicidade da gente é no presente. Mas não se pode fazer gestão da vida, de uma cidade, uma empresa, um país, pensando só no agora. A gente precisa do presente para ser feliz. E de planejamento e compreensão do futuro para continuar sendo feliz.
Diante dessa complexidade do mundo, fica muito difícil fazer qualquer tipo de previsão do que vai acontecer?
Sistemas complexos são difíceis de adivinhar. Porém, é possível. Quando a gente estuda os sistemas e tem elementos, compreende algumas coisas. Por exemplo, nos anos 70, um estudo feito por um grupo do MIT (Massachusetts Institute of Technology) previu que, em 2020 e 2021, teríamos um colapso e que o sistema não iria mais dar conta. Como não está dando. É possível, sim, prever algumas coisas. Não dá para saber detalhes. Além dos futuristas, existem muitos estudos de ciclos históricos e econômicos. E o interessante é que todos eles mostram que esse ciclo que estamos é de grande mudança, semelhante ao que foi a passagem de monarquias para as repúblicas, por exemplo. Então, dá para saber algumas características dessa transição, para onde nós estamos indo.
Para onde estamos indo?
A primeira coisa que esses ciclos mostram é que existe na história uma alternância entre momentos em que se pensa mais no coletivo, nas estruturas que organizam o coletivo e normas. Como aconteceu depois das duas grandes guerras mundiais. Criou-se a ONU, os Direitos Humanos Universais, o Plano Marshall de reconstrução da Europa.O objetivo de todas essas estruturas não é atender um indivíduo - seja pessoa, empresa, o mercado -, mas cuidar do coletivo. Por conta disso, os movimentos chegaram e as coisas ampliaram. E agora nós estamos saindo de uma fase, que ao contrário disso, está totalmente focada nos indivíduos. Nos Estados Unidos, por exemplo, eles ainda acham que a vontade do indivíduo é maior do que qualquer coisa e que o mercado regula tudo. Claro que o indivíduo importa, mas também importa o coletivo. Essa é uma das nossas principais características. Vai surgir, num tempo muito curto, novos sistemas de organização do coletivo. Uma nova economia, por exemplo, já está acontecendo com a chegada do blockchain e tecnologias do tipo . E a gente vai passar a ter um foco principalmente no coletivo. Há muitas coisas que precisam ser orquestradas porque afetam o planeta inteiro. O desafio climático é uma delas.
Você já disse também que, pela primeira vez, a humanidade tem conhecimentos e recursos para fazer absolutamente tudo que deseja. Mas ainda estamos muito distantes de uma era de prosperidade. Por que tanta dificuldade?
A gente tem tudo, só não tem a escolha individual e política. Ainda falta desenvolvimento de consciência. Ninguém está prestando atenção. Todo mundo acha que o problema é do outro. As pessoas estão muito pouco dedicadas - claro que tem exceções - a desenvolver a consciência. Além disso, estamos com modelos organizacionais que não servem mais. Nas organizações em geral e na estrutura política também. Não é um problema de partido. A questão é que, há momentos na história, nos quais as estruturas existentes já não servem mais. É o que está acontecendo agora. Provavelmente vamos ter aí dois anos pela frente muito difíceis, 2024, 25, de mais turbulência. Vai ser fundamental que a gente se organize coletivamente. Quem sabe teremos outra versão da ONU. Temos a inteligência artificial para poder ajudar a compreender todos esses elementos. Vamos precisar de muitas novas normas. E provavelmente, a partir de 2026, 27, a gente vai ver novos modelos de governança. Isso acontece em ondas. Aconteceu assim, por exemplo, com a independência das colônias e a passagem de monarquia para as repúblicas, tudo num período de 20 e poucos anos. Nós vamos ver uma onda dessas daqui a pouco.
Neste momento, estamos no meio desta transição?
Estamos no momento mais intenso dessa transição e infelizmente muito pouco cientes dela. Era o momento em que a gente precisaria estar se juntando e estamos fazendo o contrário. Estamos separando, por conta de partido, cor, gênero, do que for.
A economia criativa e colaborativa onde que entram nesta equação?
Nas mudanças, sempre a econômica acontece antes que a política. A mudança econômica que já está começando a acontecer é de termos vários tipos de moeda. Não só as moedas centralizadas - euro, real, dólar. Teremos energia solar transformada em moeda, colaboração transformada em moeda. O Brasil é muito forte em moedas sociais. Acabei de chegar de Istambul, onde estive por duas semanas no encontro da comunidade de ethereum, outra blockchain, que tem moeda própria. E foi interessantíssimo. Dentro desse contexto das novas economias há uma mudança também do que tem valor. Porque antes o valor era só coisa material. Mas o valor está principalmente na inteligência, criatividade, tecnologia. Tudo isso é economia criativa.
Como a economia criativa ajudará a trabalhar o patrimônio tangível e o intangível que você começou a descrever?
O nosso patrimônio tangível é linear porque é material. E dentro do mundo material não tem como multiplicar indefinidamente. Uma mulher só pode ter um filho a cada nove meses. Não adiantaria nove maridos com um mês cada um, digamos. O quanto a gente é capaz de produzir, o quanto a natureza é capaz de produzir é limitado, finito. Por isso que a gente compete. Enquanto os intangíveis, como o conhecimento ou como tudo que é digital e virtual, é infinito. Quanto mais usa, mais tem. A economia criativa gera recursos que são infinitos. Não precisamos brigar por eles, podemos nos juntar. E, do outro lado, temos a economia colaborativa que quer dizer o quê? Já que as coisas materiais são finitas, a gente pode passar de uma lógica do ter para uma lógica do usar. Estou falando contigo aqui em um local do Airbnb. Daqui a pouco vou pegar um Uber. Tudo isso sem possuir um carro, sem possuir um apartamento. Eu uso. Isso para poder dar conta da finitude do mundo material. A gente pode dividir.
É difícil dimensionar o crescimento nesse modelo de economia criativa e colaborativa? Quais são os principais desafios?
O primeiro desafio é que as nossas métricas são muito pouco capazes de medir isso. O PIB, por exemplo, mede só consumo. Ele não mede a economia que a natureza gera, não mede colaboração, não mede o valor dos intangíveis. Se a gente fosse medir o quanto é a economia do cuidar -cuidar de criança, de idoso - ela varia de 15% a 50% do PIB dos países, dependendo do país. A cidade de Madri, por exemplo, fez um estudo mostrando que o trabalho feminino não remunerado, o trabalho de cuidar, seria o equivalente a 100% do PIB. A gente tem um grande desafio de métricas. Por isso, todo esse movimento de ESG (Environmental, Social and Governance). Mas nosso principal desafio é político. Eu, por exemplo, estive bastante na China nos anos em que trabalhei na ONU. A China pode ter mil problemas políticos e ideológicos, mas do ponto de vista técnico é de uma eficiência extraordinária. A primeira estratégia de desenvolvimento do país é gerar riqueza a partir de intangíveis. É mudar a educação, criar novas moedas. O desafio não é dinheiro, não é estrutura, não é tecnologia. O desafio são as pessoas.
O Brasil se encontra onde neste ciclo de mudança?
O Brasil perdeu o bonde da história. No começo dos anos 2000, a gente estava muito bem internacionalmente. E poderia ter feito uma grande mudança. Agora, a gente está com déficit de políticas adequadas de educação, da participação da sociedade. Todo mundo está muito cansado e dividido. Toda polarização só faz o mundo perder. Ao invés da gente sentar junto para pensar o que fazer, nós estamos brigando. Enquanto isso, o país está sofrendo. Se eu fosse presidenta do mundo ou do Brasil, a primeira coisa que faria seriam campanhas de integração das diferenças. Juntar os lados.
Por um lado, a tecnologia ajuda, porque conecta as pessoas. Por outro, até pela lógica do algoritmo, reforça uma visão de mundo que separa. Como lidar com esses dois lados?
A gente tem que regular isso, porque tecnologia é a única solução para poder entender o que acontece. Entender todos os dados, onde tem riqueza, onde falta. Ela é fundamental. Ao mesmo tempo, o mau uso gera abusos de poder. A questão é que a chave agora está nas pessoas, que estão muito capturadas, digamos assim, pela tecnologia. Em vez de usar o tempo para se auto-conhecer, se aprimorar, ou para se juntar e resolver coisas, as pessoas perdem tempo em redes sociais, muitas vezes difundido mentiras. Precisamos de normas. Estou morando em Lisboa e a União Europeia está muito mais avançada em regular as redes sociais, o uso da tecnologia. Ela poderia ser uma solução mas não está sendo. Está sendo mais um movimento de separação. Neste sentido, a gente precisa dedicar menos tempo a elas. E, se fosse sugerir mais alguma coisa, diria para a gente se desligar das más notícias. Não é para ser ignorante sobre o que acontece no mundo. É uma loucura, porque já há solução para tudo. Mas ninguém sabe. Todo mundo fica achando que o mundo não tem jeito, quando na verdade tem.
Vivemos num mundo hoje todo conectado em redes, onde não há limite de tempo e nem espaço. Porque é tão importante os processos colaborativos em rede?
Para dar conta da complexidade que a gente vai enfrentar, a única maneira é fazermos juntos. Antigamente, a gente vivia todo mundo se ajudando. Eu tenho 65 anos e a minha geração ainda tinha isso. Se criava filho com a ajuda dos amigos. Um dia ficava com um, depois ficava com outro. O jeito de viver era muito mais colaborativo. Acredito que esse jeito colaborativo vai voltar para nosso dia a dia. Você pega um jovem casal, ele não consegue criar os filhos sozinho e cuidar dos velhos também. As empresas são a mesma coisa; elas estão se organizando em ecossistemas. O problema maior é que as pequenas empresas, que são a maioria no Brasil, ainda não se juntam. Mas a gente vai ver o crescimento de formas de organização como versões dois pontos zero de cooperativas. Onde, em vez de cada um ter o seu espaço, o seu computador, o seu advogado, o seu chat, a sua comunicação, a gente terá coisas divididas. A colaboração vai ser a única maneira de a gente dar conta do riscado. É isso que a vida espera da gente. Porque a vida quer evoluir, vai empurrando. E a evolução sempre foi se organizar de formas mais colaborativas. A célula se organiza num tecido, o tecido em órgãos, os órgãos em organismos. A gente está sendo forçado a fazer a mesma coisa.
Raio-X
Lala Deheinzelin dedica-se aos estudos do futuro, tornando-se associada à World Future Society, que deu a ela o título de futurista. É uma das fundadoras do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC – SP, parte do United Nation Millennium Project. Foi assessora da presidência do Sebrae Nacional. Trabalhou na ONU como conselheira especial de projetos relacionados à economia criativa, cultura e desenvolvimento, passando a acompanhar esses temas nos quatro continentes. É pioneira em economia criativa no Brasil.
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