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ENTREVISTA – MÁRIO THEODORO

‘Não é possível entender o Brasil, sem compreender a questão racial’

Economista reflete, em entrevista exclusiva, sobre os fatores que impedem a ascensão da população negra

Por Divo Araújo

06/11/2023 - 6:00 h
Mário Theodoro, economista e professor
Mário Theodoro, economista e professor -

A questão racial é central para entender a desigualdade brasileira, a maior do planeta. Isso é o que defende o economista e professor Mário Theodoro, que esteve em Salvador na semana passada para lançar o livro “A sociedade desigual - racismo e branquitude na formação do Brasil”. Em entrevista exclusiva ao A TARDE, Theodoro explica porque ainda é tão difícil compreender esse fator na formação da nossa sociedade.

“A questão racial no Brasil é tão central, tão fulcral, que a gente tem situações de negação o tempo todo”, diz. Mas, para ele, essa situação está começando a mudar a partir do ativismo negro. “A transformação do Brasil numa sociedade mais igual passa necessariamente pelo protagonismo do movimento negro”. Na entrevista que segue, o economista reflete como a saúde, educação, moradia e violência contribuem para impedir a ascensão da população negra no país.

O senhor está lançando em Salvador o livro “A sociedade desigual - racismo e branquitude na formação do Brasil”. Como a questão racial afeta a dinâmica da desigualdade brasileira?

A questão racial é central. Ela é a explicação para o Brasil ser tão desigual, diferentemente de outros países da mesma magnitude econômica, onde você tem uma desigualdade menor, como a Índia. Apesar das castas, a Índia é menos desigual do que o Brasil. Isso acontece porque há um fator racial fundamental para a ascensão ou não das pessoas, fazendo com que um grupo seja prejudicado e outro beneficiado. De 1900 a 1980, nenhum país no mundo cresceu mais do que o Brasil. Ao mesmo tempo, nosso crescimento gerou mais desigualdade. Outros países, que não cresceram tanto quanto o Brasil, conseguiram reduzir as suas desigualdades. A gente foi capaz de crescer, aumentando a desigualdade e a pobreza. Isso tem a ver com um projeto de país onde a questão racial, eu não diria que não é vista. Ela é vista, mas como algo a ser reforçado e não combatido.

Na obra, o senhor defende que é necessário avançar na reflexão e no esforço de melhor entender como a questão racial influi na desigualdade. Por que essa questão ainda é tão mal compreendida?

Porque, quanto mais central e decisiva ela é, mais difícil de mexer. É como se mexesse na viga estrutural de uma casa. Você arrisca derrubar tudo. A questão racial no Brasil é tão central, tão fulcral, que a gente tem situações de negação o tempo todo. O Itamaraty, ao responder uma pergunta das Nações Unidas em 1970, sobre o que estava fazendo com relação ao racismo no Brasil, deu uma resposta muito simples: ‘Como não existe racismo no Brasil, não precisamos fazer nada’. Essa ideia da democracia racial veio para se contrapor a ideia de políticas raciais, políticas públicas.

O Brasil negou acesso aos meios de produção à população negra?

O acesso foi negado de duas formas. Primeiro, em meados do século 19, em 1850, com a Lei de Terras, que deu acesso a terra direto aos senhores sesmeiros da época do império e antes mesmo quando o Brasil era colônia de Portugal. Quem ocupou aquela terra depois - e foram milhares de famílias negras - passou a ser ilegal. Houve primeiro a negação da terra. Por outro lado, o país que se desenvolvia, crescia e abria espaços de industrialização. E toda essa mão-de-obra que foi suprir a modernização do Brasil, veio da imigração. Então, a população negra perdeu espaço na área rural e perdeu espaço nos novos empreendimentos, principalmente no setor industrial. Em São Paulo, no começo do século 20, 90% da população da força de trabalho na indústria era formada por imigrantes. E também outras ocupações nas cidades, que eram dos negros, foram sendo tomadas pelos brancos. Pelos imigrantes, principalmente. Profissões de ourives, sapateiros, entre outras de prestação de serviço, foram perdendo o protagonismo negro. Por tudo isso, a população negra vai para o setor informal, de pequenos serviços, da ilegalidade, da falta de proteção social.

Se falava muito à época que a chegada dos imigrantes iria contribuir para o branqueamento da população brasileira...

Na verdade, o projeto de imigração do Brasil é um projeto para branquear o Brasil. Existia na época uma teoria de influência da raça que dizia mais ou menos o seguinte: os países que tinham muito sangue negro na sua população eram fadados a ficar para trás, a não se desenvolver por conta dessa herança maldita dada pela população negra. No segundo ou terceiro congresso de eugenia mundial, a tese que o Brasil levantou é que o país estava se branqueando e, em cinco ou seis gerações, nós seríamos uma população branca, europeia, pela diluição do sangue negro. De fato, existia essa visão eugênica muito preponderante de que o país, para se desenvolver, teria que ser um país branco.

Essa visão influenciou no preconceito regional contra os nordestinos?

Sim, claro, porque 0 Nordeste não foi priorizado na parte da imigração. E há uma visão de que Nordeste é uma população mais negra, mais cabocla em comparação ao Sul e ao Sudeste. Com isso, vem toda sorte de preconceito. Do baiano preguiçoso, do nordestino que não tem educação... Todo esse preconceito tem o componente racial por trás.

Como as políticas públicas de educação e saúde contribuíram para a construção da desigualdade?

A educação e saúde deveriam ser dois vetores de equalização. À medida que a educação fosse universalidade e de qualidade, você não teria nenhum “gap” que justificasse, por exemplo, que os alunos negros não conseguissem os empregos que hoje em dia não conseguem. A educação seria esse fator de equalização. Da mesma forma a saúde. Quando você oferece uma boa saúde para a população significa, de certo ponto de vista, que a qualidade de vida deles está garantida de forma igualitária. Sabedor disso, o projeto dos governos que vieram foi sempre de elitizar tanto a educação quanto a saúde. O filho do rico não estuda junto com o filho do pobre. O filho do rico estuda numa escola particular de ponta, o filho do pobre vai para escola pública. Mesma coisa no hospital. O filho do rico ou a pessoa rica vai para as redes particulares de ponta. Os pobres vão para o SUS. Desde 1988, com a nova Constituição, esses sistemas foram criados, mas há uma tendência a que esses serviços tenham cada vez menos recursos. Que fazem com que a qualidade do serviço público caia tanto na educação quanto na saúde. E, assim, viram potencializadores da desigualdade.

O senhor também afirma no livro que “o local de moradia é uma história de exclusão e de apartação territorial”. Como se dá este ‘apartheid espacial’?

Pela falta de políticas públicas. Qualquer pessoa que mora numa cidade precisa de políticas públicas para normalizar o acesso aos serviços. Tudo isso é função do Estado. E que o Estado fez? A partir da virada do século 19, século 20, com a expansão das cidades, eles expulsaram do centro a população negra e mais pobre. Essa população teve que se virar. Alguns subiram os morros do Rio de Janeiro, outros foram para baixadas como os Alagados aqui na Bahia. E aí você tem as populações se virando. Já tem mais de um século que as populações se viram sem a participação do governo. Sem ter as coisas básicas para sobrevivência: infraestrutura urbana, rede de esgoto, acesso à água potável, iluminação, eletrificação. É a completa ausência do Estado. Enquanto, do outro lado, o Estado fez tudo nos bairros de classe média e classe média alta. Assim como a educação e a saúde, o mercado de trabalho e a moradia são fatores que potencializam a desigualdade.

O senhor também discorre sobre a violência racial e fala em ‘necropolítica’. Os negros são as maiores vítimas da violência do Estado?

Os dados mostram isso. Os assassinatos de jovens negros vêm aumentando exponencialmente, enquanto que os de jovens brancos felizmente vêm reduzindo a taxas até significativas. A mira está no jovem negro, seja da ação policial, seja da ação do tráfico. Não vejo a violência como um quarto ou quinto fator de aumento da desigualdade. Mas, sim, como o fator que garante a desigualdade. Falo da violência, seja da polícia, da própria sociedade. Morar numa favela já é uma violência. Faz com que essas populações tenham que se acomodar e não tenham saída. A violência no Brasil funciona, junto com a Justiça, como garantidor dessa sociedade desigual. Porque tudo se resolve na violência. A reforma agrária, por exemplo, é uma bandeira que outros países resolveram na alçada da política. No Brasil é visto como caso de polícia e é resolvido na bala. Então, a violência vem para garantir a desigualdade. Se não tivesse esse Estado tão violento, talvez os movimentos tivessem se organizado melhor.

Quando a gente pega a população carcerária no Brasil, a gente vê que ela também é majoritariamente negra...

É a mesma lógica. Além de você ter mais mortes de negros, nos cárceres, a gente também vê essa desigualdade. E aí junto violência e Justiça. Porque a Justiça tem um papel importante. A pena do juiz é mais branda para a população branca. Há um estudo que mostra que, em situação identificas, a tendência do juiz é dar uma pena maior para o réu negro do que para o réu branco. E os crimes de racismo nunca são contabilizados como crimes de racismo. Eles são tipificados como crimes de injúria, que até o ano passado tinham uma menor dosagem de pena.

O senhor acredita que o racismo está tão entranhado, que muitas vezes o juiz ao tomar uma decisão desta não percebe esse componente racial?

O racismo é naturalizado. Essa é a dificuldade. Ele naturaliza coisas. “A Cabana do Pai Tomás” do Brasil é a Escrava Isaura, que é o nosso livro que aborda as penúrias pelas quais passam as escravas. Mas, para que a população entrasse no espírito do livro de ter pena de Isaura, o autor teve que colocar ela branca. E a grande pena da Isaura era ter que fazer o trabalho que os pretos já faziam. Ou seja, as pessoas tinham pena dela porque ela era branca e não porque era escrava. E, como escrava branca, era inadmissível que ela fosse colher cana, ou fazer um trabalho duro. Afinal de contas, era uma mocinha tão branquinha, tão bonitinha... Isso tem uma influência muito forte no ideário do Brasil e os juízes com certeza não estão imunes a isso.

A gente começou a entrevista falando sobre a necessidade de avançar na reflexão sobre o racismo e hoje a gente vê autores como Silvio Almeida, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro trabalhando a temática racial. É uma mudança importante?

Eu diria que é uma mudança não só importante, mas quase natural. O racismo era visto apenas como uma questão individual. Mas, a partir dos anos 70, os movimentos negros colocam o racismo como uma questão social. Mais do que isso, a principal questão que move essa sociedade desigual. Deixa de ser uma um estudo lateral para ser central. É aí que se dá a grande questão. Não é possível entender o Brasil, sem compreender a questão racial. E foi isso que os movimentos e intelectuais negros fizeram. Trouxeram à tona o debate racial. É preciso lembrar que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. O Brasil vai abolir a escravidão, 50, 60, 70 anos após a maioria dos países. O Brasil, os Estados Unidos e Cuba foram os países que levaram mais tempo para abolir a escravidão. O Brasil em primeiro lugar. Dos cerca de dez milhões de africanos que vieram para as Américas, metade ficou no Brasil. Era o grande centro de atração do comércio de escravos.

Como o ativismo negro faz hoje esse contraponto?

Com denúncias, com o estudo e com o processo de politização. Porque o racismo foi tratado na sociedade, primeiro como inexistente. Com a ideia de democracia racial, que não existe racismo no Brasil, ao contrário. Em segundo lugar, admitiu-se isso, mas como uma coisa menor, passageira. E o movimento negro veio mostrar primeiro, que existia; segundo, que não era menor; e terceiro, que não era passageiro, ao contrário era central na evolução da sociedade brasileira em sua desigualdade. A partir disso, começou a ter uma movimento de luta muito importante. E acho que a transformação do Brasil numa sociedade mais igual passa necessariamente pelo protagonismo do movimento negro. Enquanto o movimento negro não tiver o protagonismo político que merece, nós vamos continuar a ser um país desigual, um país das paquitas.

Além do papel dos ativistas, o que a sociedade brasileira pode fazer para reduzir essas desigualdades?

O ativismo negro surge justamente para fazer com que a sociedade entenda a importância da questão racial e se mova contra isso. Isso ainda está começando. Ainda somos minoria, mas à medida que a sociedade começa a entender que o racismo existe e pode ser mitigado a partir de uma ação política, isso vai começar a mudar. A gente já tem muitos deputados e deputadas negros. A gente já tem muitos movimentos negros espontâneos, nascidos nas periferias e que têm um papel político muito importante junto às comunidades. Enfim, você tem uma coisa que está sendo gestada. Eu sou muito otimista achando que essa gestão vai dar numa coisa muito interessante. E vai fazer com que o Brasil vire de ponta cabeça nesse sentido e passe a ser uma sociedade de iguais.

Como o senhor vê o papel das ações afirmativas, a exemplo das cotas nas universidades. Elas ainda são insuficientes?

Sim, porque são muito setoriais. A cota pega os estudantes negros que chegaram ao segundo grau, que não são muitos. A grande maioria dos jovens negros, das periferias principalmente, não acaba o segundo grau. Então, as cotas beneficiam aqueles que de alguma maneira conseguiram chegar a um ponto que diria ser raro de se chegar. A mesma coisa a cota de trabalhadores no serviço público. O que nós necessitamos é de um país que não precise mais de cotas. A ideia da ação política é você transformar o Brasil num país exatamente onde as oportunidades - na saúde, mercado de trabalho, educação, acesso à justiça - sejam iguais. Enquanto você não tem isso, as cotas são fundamentais. Porque são as cotas que vão criar a elite intelectual e política negra que vai influir no Estado, com demandas de políticas públicas. Elas são fundamentais e, contraditoriamente, quando se tiver uma sociedade mais igualitária, você não vai precisar mais dela.

Esperançoso em relação ao futuro?

Sou muito otimista, porque o Brasil é um país negro e essa negritude está começando a se levantar para ser ouvida. E, quando falo para ser ouvida, estou falando de partidos tanto da esquerda como da direita que não ouvem essa camada da população. Essa camada, quando começar a partilhar de fato o poder, vai transformar o Brasil e vai fazer com que o povo consiga uma situação muito melhor de vida.

Raio-X

Mário Theodoro é economista e doutor em Ciências Econômicas pela Université Paris I – Sorbonne. É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania da UnB e consultor legislativo aposentado do Senado Federal. Atuou como secretário executivo da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, foi diretor da área internacional do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e é autor do livro “A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil”.

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