MUITO
"A arte é libertadora, não tem fronteiras"
Por Alezinha Roldan e Kátia Borges

Ele não acredita em acaso e, sim, no destino, e nas consequências de tudo que se faz nesta vida. E foi vivendo assim, sempre com foco no trabalho, que a série televisiva em que atuou, Crime Time – Hora do Perigo, produzida para o canal Studio+, na França e no Brasil, foi indicada ao Emmy Internacional 2017. Este trabalho o colocou mais próximo da polêmica – e eterna – discussão sobre a polícia e a realidade das comunidades. Também este ano, acaba de concluir a participação em um programa dominical recorde em audiência, o musical Popstar, na Globo, no qual mostrou a que veio, cantando com uma energia pessoal tão intensa que parecia todo o tempo querer atravessar a tela da TV. Baiano de Salvador, nascido no bairro do Curuzu, mas criado no subúrbio ferroviário, em Fazenda Coutos 3, Érico Brás, 38, é a prova de que o mundo é difícil, que o racismo existe, mas que tudo pode ser enfrentado sem medo, desde que as pessoas não se distanciem das suas verdadeiras bases. Nesta entrevista exclusiva para Muito, ele se mostra inteiro, mas feito de vários pedaços aglutinados por um talento ímpar, que vai da interpretação à música, passando pelo humor. Foi revelado pelo Bando de Teatro Olodum, no qual atuou em diversas peças e que lhe deu régua e compasso na arte e no reconhecimento de seu lugar de fala no mundo, o do homem negro que sabe que tem direitos e que, melhor ainda, sabe como lutar por cada um deles.
Você foi criado no Curuzu, um bairro essencialmente negro e artístico. Em que medida esse ambiente te levou para o universo da arte e te deu uma dimensão de seu lugar de fala no mundo?
Eu nasci no Curuzu, mas fui criado no subúrbio ferroviário de Fazenda Coutos 3. Minha relação com o Curuzu se dá por conta do Bloco Ilê Aiyê, que sempre foi um lugar de reforço na minha formação como cidadão negro brasileiro. A arte que pulsa nas comunidades periféricas de Salvador, na maioria das vezes, é salvadora. Isso porque tenho noção de que o movimento artístico brasileiro, por mais que faça sucesso quando chega à TV, tem uma gênese nas comunidades. E comigo não foi diferente. Comecei a fazer teatro num grupo de igreja na Fazenda Coutos e, depois, me tornei profissional no centro da cidade, no Teatro Vila Velha, com o Bando de Teatro Olodum. Essa ascensão é necessária para a juventude brasileira. Digo isso porque sei, porque aprendi qual era o meu lugar no mundo quando finalmente acessei as informações trocadas no centro da cidade. Não posso negar a participação dos mais velhos, que vi derramar experiências filosóficas, artísticas, políticas e que me deram um caminho, um raciocínio lógico sobre o que era ser negro, nordestino, brasileiro e latino-americano. Esses somaram à educação que recebi de minha mãe, dona Valquíria, com o que eu precisava para ser um cidadão do mundo livre. Lembro com muito gosto, por exemplo, quando fui numa exposição na Fundação Casa de Jorge Amado, no Pelourinho, e o saudoso escritor tinha uma ilustração de Exu, completamente diferente do que me disseram. Logo me pus a pensar, no auge dos meus 16 anos, qual a relação dele com o diabo e descobrir, por meio das pesquisas teatrais, que essa relação simplesmente não existia. Aprendi – com o acesso à informação – qual era o meu lugar de fala também. No movimento meteórico dos blocos afros, durante o Carnaval, dissipa-se uma energia que abrilhanta e reforça a autoestima. É isso que me mantém vivo, cada vez que revisito alguns lugares, que revejo pessoas ou que contemplo novas faces... Como sempre digo, a arte é libertadora: não tem paredes, muros e fronteiras. Não é à toa que precisamos de um espaço com pessoas fiéis a ele, o palco, onde essa energia se faz presente e efêmera. Eis o senhor do meu domínio, o teatro.
O Bando de Teatro Olodum é um divisor de águas na arte teatral brasileira. Você esteve desde o início, como se deu essa aproximação?
Costumo dizer que se Shakespeare fosse brasileiro a companhia de teatro dele imitaria o Bando. O Bando é um divisor de águas na vida do povo brasileiro. E digo isso porque, na época em que Ó paí, ó! virou sucesso internacional, as pessoas que, até então, não se viam no audiovisual brasileiro passaram a ver possibilidades de interpretação das suas realidades com honestidade. Conheço uma quantidade enorme de jovens que me disseram isso, e até hoje, quando me encontram, dizem que se tornaram artistas por causa daquela obra que foi criada pelo Bando no início da década de 90. Com seus espetáculos, o Bando contribuiu diretamente para o aumento de negros nas plateias de teatro de Salvador, numa época em que ainda imperava a ideia de que teatro era apenas para quem podia. Ora, se é para quem pode, aqui estamos nós, nós podemos. Lembro que o Teatro Vila Velha passou, a partir daí, a vivenciar tempos áureos, com espetáculos como Cabaré da RRRRAça, Sonho de Uma Noite de Verão e Áfricas. Mas é necessário entender que a arte baiana está em grande transformação. Existem barreiras impostas pela política cultural nacional, que impede todo e qualquer avanço quando se trata de arte, porque o comando do país entende e sabe muito bem o poder de transformação da arte, que passa pelo acesso a informação e a ampliação do raciocínio. Numa sociedade que se respeita, a arte é pilar na construção do futuro e da educação porque entende-se que ela faz parte da formação intelectual da sociedade. Na verdade, não estive presente na formação do Bando, mas sei que muitos garotos que integravam projetos culturais foram chamados, assim como jovens de teatro das comunidades, que foram convocados também. Hoje, 25 anos depois, o Bando tem orgulho de ter atores e atrizes como verdadeiras cabeças pensantes e agentes de transformação da sociedade, assim como eu aprendi a ser.
E como você concilia hoje suas atividades múltiplas no Rio de Janeiro com os projetos do Bando?
Pela carga de trabalho que tenho no Rio não é possível participar presencialmente do Bando, mas, sempre que posso, estou por perto. Ontem (dia 21), participei do Festival A Cena Tá Preta, produzido pelo Bando no Vila Velha, apresentando o espetáculo Double Black. No palco, eu e Kênia Maria, minha esposa e atriz, escritora e primeira defensora das mulheres negras no mundo pela ONU Brasil. O espetáculo é uma comédia no estilo stand-up, mas traz cenas prontas na estrutura da peça.
Há uma força criativa e uma força afirmativa no Bando. Em que medida trabalhar com o Bando te situou em relação à militância?
A força de criação do Bando está na fidelidade ao povo. Quando se cria um espetáculo que fala de nós, e na consciência da responsabilidade de ser um grupo de atores negros que não corre da sua missão. É preciso ter responsabilidade com a construção e desconstrução do imaginário brasileiro, e a arte tem esse papel bifurcado. Sabemos que o Brasil é um país que segue à risca os padrões estabelecidos e que furar o cerco depende do acúmulo de uma série de fatores que talvez a gente nem conheça direito. Ainda quando falo de desconstrução do imaginário brasileiro, passo por aí, por esses fatores que a gente talvez não conheça porque fazem parte de armações e falcatruas, como vimos há pouco na política brasileira com a descoberta de milhões num quarto da casa de um político que passou pela cadeira de ministro do nosso país, o que lhe dava uma garantia de imagem positiva. Esse mesmo político tentou construir um prédio em área proibida na zona nobre de Salvador. Nas minhas reflexões, sentei-me nas perguntas: será que não estou procurando resposta para o que está respondido e definido? Será que não é perda de tempo achar que as bandas da política brasileira, direita e esquerda, estão interessadas realmente em resolver as questões das populações, já que vemos há anos e anos que isso não é verdade? Será que não é perda de tempo acreditar numa política em que negros e mulheres têm lugares marcados, o de sofrer como simples eleitores? A construção do imaginário hoje passa pelo modismo também. Precisamos entender que a relação cidadão versus política tem que ser diária, porque aí entenderemos a arquitetura político-econômica da nossa vida enquanto brasileiros. Não se tem um planejamento para as comunidades carentes do país, estamos matando a juventude ao invés de investir no verdadeiro futuro do intelecto brasileiro. A minha militância está em mim, em qualquer ato em que meu nome está, onde passo, onde escrevo se faz presente o Érico Brás militante, porque aprendi que não posso deixar de ser esse agente transformador, recusando o que me dão sem que eu tenha escolhido. Existem algumas escolhas estratégicas na minha vida, mas tenho certeza de que chegarei aonde quero chegar porque acredito na força da liberdade de escolha.
Você é um ator que canta, que faz drama, comédia e que tem um estilo bastante naturalista em cena. Quando sentiu que havia finalmente encontrado seu tom, não como um determinado personagem, mas como um artista?
Eu vivo uma eterna descoberta. Gosto de estar sempre experimentando novas linguagens, misturando fórmulas, escrevendo diferente. Não sei se encontrei o tom final da minha máscara artística. E digo isso porque tem muita coisa que ainda não experimentei no teatro, na TV e no cinema. A música, para mim, ainda é algo em que passeio no aprendizado, e queria ter mais tempo para estudar profundamente, mas não tenho. Depois do Popstar, recebi convite de Prateado, um diretor musical do Rio de Janeiro e que produz discos de Thiaguinho, Sorriso Maroto e Belo, entre outros, para gravar um trabalho. Mas ainda não respondi, porque não sei se terei tempo de estruturar uma nova aba na minha carreira, que já é tão corrida. Sou um artista de estilo indefinido. Posso surfar em qualquer onda.
Como te chega o reconhecimento internacional do trabalho? E aqui no Brasil? Como você desenha o negro que faz sucesso?
Eu estou indicado ao Emmy 2017 pelo trabalho em Crime Time, série produzida para o Studio+ na França e no Brasil. Essa série é motivo de orgulho para mim, porque fiz com um empenho diferenciado, até porque o personagem que interpreto é extremamente diferente de tudo que já fiz. É um policial militar que tenta combater o crime e é surpreendido pelo colega de corporação, amigo de infância, que se rende à corrupção por conta do sucesso. O Adriano é um exemplo de policial, do tipo que todos queríamos ter. Isso é muito bom. Mas também é bom lembrar que muito do que aprendi no tempo que fiquei no Bando Olodum me ajudou a querer viver esse momento, e eis que ele finalmente chega. E chega num momento ótimo da minha carreira, porque estou na grade da Globo, com o Zorra, que é um novo programa, acabei de fazer um reality de música e estou voltando aos palcos com a minha peça. Ainda sobre Crime Time, fiquei sabendo pelo diretor da série, o Julian Trossolier, que ela é o maior sucesso na França. Esse retorno do público de lá de fora é muito bom e me dá a impressão de que chegamos a um momentâneo sucesso que pode render frutos. O reconhecimento de que se fez um bom trabalho na arte é sempre um trampolim para cair de cabeça no mar de criatividade e acreditar que é possível ser indicado ao Oscar da TV mundial, ao Emmy. Aqui no Brasil, o reconhecimento pela série está sendo um pouco diferente porque ela está disponível apenas na plataforma de On Demand da Vivo, e, com isso, só os assinantes podem acessar. Mas as pessoas que assistiram adoraram e elogiaram a produção, que de fato é muito boa.

Cena da série Crime Time - Hora do Perigo, uma coprodução entre Brasil e França. Foto: Divulgação
É uma temática extremamente contemporânea.
Sim. Um fator que chama a atenção na série, e que as pessoas sempre frisam, é o fato de termos na série dois policiais lutando pela sobrevivência. A gente não imagina o universo da polícia quando se trata do trabalhador que ganha o papel de herói sem querer sê-lo. O herói precisa passar provações e, ao final, ser honrado e condecorado pelas superações. A nossa polícia trabalha em situações precárias, com salário defasado, e coloca a vida em risco para fazer cumprir a lei. O título de herói apenas tira dele o título de trabalhador, que tem direito a reclamar do desconforto e da insatisfação. Não calo aqui a minha revolta com as injustiças causadas pelos policiais corruptos, mas não posso ser injusto com os que são honestos.
Como é ser um artista negro de sucesso no Brasil?
Ser um negro que faz sucesso no Brasil ainda é algo relativo. O sucesso de um artista negro está ligado à representatividade e ao poder de mudança. Para um artista negro que se distancia da sua base, por qualquer motivo, são destinados o isolamento e a detonação que visa desqualificar, desacreditar e destruir o que você é, pouco importa o que você realmente faz.
Em sua opinião, ainda existe racismo na televisão brasileira? Onde ele costuma se apresentar com mais força, na frente das câmeras ou nos bastidores das grandes produções?
Penso que o racismo é algo característico do povo brasileiro. A nossa nação se comporta como uma fazenda, com um grupo de amigos poderosos que briga para saber quem vai ficar com a maior parte, ou com a parte mais saborosa, do churrasco. Ainda temos muito que avançar na questão racial na TV, mas vejo um interesse nas produções em, pelo menos, contar as nossas histórias com mais cuidado. Mas também não vejo um incômodo de verdade que não aquele de sofá, e digo isso porque os nossos reclames e manifestos são de redes sociais e, ainda assim, com cunho depreciativo em relação a quem expressa opinião contrária. Nós somos um povo que está mais ligado à próxima Copa do Mundo do que na próxima eleição presidencial, que acontecem no mesmo ano. Isso porque aprendemos que religião, futebol e política não se discutem. Com isso, o conservadorismo, acompanhado do fundamentalismo, está tomando de assalto os espaços de discussão e decisão que deveriam ser laicos. A TV brasileira tem mudado no sentido de acompanhar o desenvolvimento das outras plataformas e, por causa isso, vai precisar se adaptar às histórias e, respectivamente, aos elencos. Eu torço para que ganhemos mais espaço nessa nova fase.
Você, pessoalmente, já sofreu por conta do racismo e ganhou direito a ser ressarcido na Justiça. Por que você acha que muitos negros ainda se calam diante de fatos como o que aconteceu com você?
Essa é uma das maiores vitórias que já vivi. Não pelo dinheiro simplesmente, mas pela certeza, pela constatação de que o racismo brasileiro já não é um crime perfeito – parafraseando o que diz minha mulher, Kênia Maria. O racismo deve ser punido pela lei, tendo como penalidade mexer no bolso do agressor. Isso exige certa frieza na hora em que se é agredido. Penso que as pessoas se calam por medo da represália, por não entenderem o que é o racismo de fato, por aprenderem que não têm direitos e, sobretudo, por fazerem parte de uma massa de pessoas que não se define como negro no sentido pleno da palavra. O que nos ensinaram, o que martelaram na nossa cabeça é que ser negro no Brasil é fazer parte de uma população majoritariamente pobre, submissa e dependente das decisões alheias.
Essa submissão vem mudando?
Penso que sim. Quando se aprende que é necessário avaliar todo tipo de atitude contra você, abre-se um canal de libertação que ameaça uma determinada estrutura hierárquica brasileira. Ainda acredito que a educação é o melhor caminho para a conscientização das massas que são na maioria negra. Se exigirmos dos poderes constituídos uma decisão a respeito dos maus-tratos que sofremos, da violência psicológica e física a que somos expostos todo dia, a depreciação cotidiana acompanhada de assédio, o abuso de pequenos poderes nas instituições públicas e privadas, dentre outros, conseguiremos equalizar a nossa democracia.
Os debates sobre raça, religião ou credo, na sua visão, estão sendo feitos de forma coerente? Como você acredita que seria a melhor forma de falar sobre temas ainda considerados tabus?
Ah, mas o Brasil é um país de tabus. Os debates aqui não são feitos de forma que possamos exigir um próximo passo. Não é possível que tenhamos uma bancada evangélica num espaço em que a democracia deveria ser a premissa e a laicidade um comportamento. Como ter um debate coerente se as comunidades estão com bandidos autorizados pelas igrejas a destruir templos com religiões de matriz africana? A discussão sobre a questão racial no Brasil precisa mudar o rumo. Falamos de representatividade, mas não sabemos ainda como manipular o nosso poder financeiro, que interfere diretamente no PIB da nação, porque consumimos trilhões por ano.
Falta “vontade política?”
Eu estive na Conferência Internacional contra o Racismo em Durban, na África do Sul, em 2001, e vi sair deste encontro um documento sugerido e chancelado pelas nações representadas ali. Era um documento que rogava por várias mudanças para o povo negro mundial. No Brasil não se leva a sério esse tipo de atitude. A gente faz as nossas regras, e, portanto, podemos mudá-las quando quisermos.
E há o preocupante, e contínuo, genocídio da juventude negra...
Sou extremamente preocupado com a juventude, que é a maior vítima desse descaso. Não existe um plano eficaz para a juventude brasileira, que vise à inserção destes no futuro da nação. Ao contrário, matamos em larga escala, exterminando a possibilidade de termos cientistas, médicos, desembargadores, artistas, professores.... Vivemos uma política autoritária no Brasil, que nos faz ter vergonha de um filho gay, que tenta nos dizer que essa condição é uma doença, passível de possíveis tratamentos psicológicos, com promessas de reversão, abrindo mais uma porta para o charlatanismo. Somos uma sociedade em que é melhor levar o título de 5º pior país, para não sermos geridos por uma mulher, ao invés de deixar que uma mulher divida lucros e decisões. Preferimos ter um governo que descaradamente se envolve em corrupção a procurar entender e equilibrar a política com negros, mulheres e jovens. Nos calamos ante os salários pagos aos professores, policiais e médicos, por exemplo, e ainda acreditamos que ser artista é ser vagabundo. Esquece a pergunta “que país é este?”. Aciona a questão “que país queremos?"
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