MUITO
"A cabala nos traz uma amplitude de consciência"
Por Carla Bittencourt

A história de Sandra com a cabala começou por causa de uma mudança. A dela mesma, para uma casa nova, depois do casamento. Tinha essa alegria de ir morar perto do mar, de juntar a vida com a de outra pessoa. Mas tudo, para resumir em uma palavra, foi um desastre. O marceneiro faliu, o marmoreiro pediu as contas, o pedreiro sumiu, a empresa dos móveis da cozinha quebrou, o casal perdeu dinheiro e toda hora ficava doente. Ela então foi pesquisar a memória da casa e descobriu ali uma energia de falência. Foi o sinal de que a engenheira biotecnóloga precisou para estudar a medicina da casa. Há 15 anos, partiu da cabala e chegou à "cli le shalom", uma harmonização de ambientes. A técnica, que em hebraico significa "receber a paz", propõe o realinhamento do fluxos energéticos dos lugares. Pode ser da casa, do escritório, do consultório ou de um terreno, por exemplo. A carioca Sandra Strauss, 46, que hoje trabalha como consultora de ambientes, desenvolve este trabalho depois de entrevistar os moradores ou proprietários e estudar a planta baixa de cada lugar. Em dezembro, ela esteve em Salvador para ministrar um curso sobre o tema e para lançar seu livro A Cabala da Casa. Na ocasião, conversou com a Muito sobre mudanças, energia, renovações e todas estas coisas tão propícias para se pensar em um Ano Novo.
Até que ponto a cabala tem a ver com crença e até que ponto é conhecimento?
Só vai fazer sentido para o ser humano aquilo em que ele realmente acredita. Se acreditar que um gato preto dá azar, então vai dar. A gente desvenda códigos do Primeiro Testamento, e isso tem um nível de interpretação. Mas esse conhecimento faz parte de uma tradição que acompanha o calendário judaico. São 5.776 anos. Desde que existe essa contagem, existe a cabala. É milenar, de geração para geração.
Por milênios, a cabala esteve restrita a poucos mestres e a discípulos brilhantes. Nos anos 90, ela ficou pop, com a adesão de celebridades, como Madonna. Para alguns críticos, isso deveria permanecer só com os judeus. O que a senhora acha?
Não há necessidade dessa restrição. A Torá fala de códigos, da dinâmica do universo, e isso é para a humanidade, não para um grupo específico. A maioria das religiões pode até ser muito dogmática, mas a cabala não, ela vai desvendar e comprovar, até matematicamente, tudo o que desvenda em termos de código. Porque as letras do alfabeto hebraico também são números, iguais aos algarismos romanos. Em tudo há um sentido que se desdobra para outros. A cabala é para todos.
Então por que a senhora escolheu dar este curso em uma sinagoga?
Foi o lugar que nos abriu as portas. Aqui eu fiquei sabendo que Salvador nunca teve outro curso de cabala. Estou programando para, na próxima vez, a gente fazer num local neutro. Mas a sinagoga está aberta, assim como o Centro Cultural Judaico, onde eu dou aulas no Rio de Janeiro. É para toda a comunidade.
A cabala de hoje é uma versão simplificada daquela de milênios atrás?
É. Vamos estabelecer que estamos falando da cabala de dois mil anos para cá. A gente tem um grande mestre que é contemporâneo de Jesus, Urabe Kivel. Ali, eles ainda estavam desmembrando o que eram esses personagens na Torá, que a gente conhece como Abraão, Isaac, Jacó. São arquétipos, centelhas que habitam potencialmente dentro de nós. Isso eles desbravaram. Muita coisa a gente recebeu pronta.
Os praticantes da cabala aprendem a receber energia de forma permanente. Como funciona? É um treinamento?
Olha, nada é permanente. Até se a gente for visitar alguém no hospital, vemos isso num aparelho: o ciclo da vida é um gráfico que sobe e desce. Se for uma linha reta, é porque já foi. Tudo é exercício. Temos que treinar nossa amabilidade, nossa generosidade, determinação, persistência, equilíbrio. Não se aprende de uma vez, com varinha de condão. O que a cabala traz é uma amplitude de consciência para que a gente se conecte melhor com essas virtudes, com esses valores. Para que possamos prestar mais atenção e exercitar isso o tempo inteiro.
A senhora desenvolveu uma técnica de harmonização de ambientes partindo do feng shui. Qual a diferença?
O feng shui também é uma técnica milenar, e o gráfico interpretativo que ele utiliza é um octógono, o ba-guá, formado por trigramas e hexagramas, elementos do i-ching. É uma filosofia. Mas que não me fazia muito sentido, não era uma linguagem da minha alma. Tem todo valor, pautou o meu estudo, mas eu decidi ir além. Busquei na geobiologia, na radioestesia, na gaiamancia até que cheguei à cabala. No Brasil ainda não se tinha essa cultura, isso foi em 1999. Fui para os Estados Unidos e quando me deparei com o diagrama da árvore da vida, falei: "É isso".
Do que se trata?
A árvore da vida também é conhecida pelos 32 caminhos da sabedoria. São 10 medidas e 22 letras do alfabeto hebraico. As 10 medidas são 10 números. São valores, nosso campo energético, que a casa também tem. O alfabeto hebraico tem símbolos que funcionam de forma semelhante à medicina chinesa. Você faz um pontinho num meridiano do corpo que vai corresponder a um órgão. As letras são assim, cada uma tem um valor, uma parte do corpo, um planeta, um tempo. É uma engenharia mesmo. As dez medidas são: certeza, sabedoria, entendimento, amabilidade, restrição, beleza, permanência, refinamento, propósitos e concretizações.
Qual a importância dessas letras e referências para quem não é judeu?
As letras são símbolos. E o símbolo conecta o nosso inconsciente ao consciente. Isso faz parte da humanidade desde sempre. Os homens das cavernas deixaram símbolos. Estão ali, e, se a gente olhar, vai saber interpretar. No momento em que se contempla, algo é despertado e a pessoa que vê tem uma conexão estabelecida via aquele símbolo. Não importa se é uma letra do alfabeto judaico. Fala para todos.
Cada casa já tem uma energia própria ou é o morador que coloca sua energia ali?
A casa, os objetos, tudo o que é físico tem uma memória. Veja uma casa onde um casal se separou. Vai uma família morar lá e começam a brigar também, absorvem essa energia. Mas isso se reconstrói, a gente limpa a memória e refaz o espaço energeticamente. A cura é para os moradores, mas se estende à casa.
No seu trabalho, quanto é de observação da casa, da planta baixa e quanto é de conversa com o morador sobre o lugar?
Antes de começar, tenho um encontro com o morador. Preciso saber o que está funcionando e o que a gente precisa transformar. Esse relato é 80% do trabalho. Depois, vou ao ambiente, observar a bagunça, o cantinho onde a pessoa acumula tudo, a porta emperrada, as rachaduras. Há ambientes que ficam fechados muito tempo. E se ali for um centro de força? Tem que abrir para ventilar, limpar, cuidar. A cura passa pelo cuidado. E é um trabalho conjunto. Eu não adivinho nada.
Quando nos mudamos para a casa que já foi de um conhecido ou familiar, como renová-la e, ao mesmo tempo, manter sua memória afetiva preservada?
Você pode deixar ali alguma coisa que aconteceu com vocês nessa casa e que te trouxe alegria. Pode ser a mesa onde vocês sentavam e ali sua avó servia o bolo, por exemplo. Essa memória afetiva nutre a gente.
E quando a mudança é dos moradores? Um parente que se vai, um bebê que nasce, um casal que se separa...
Isso tudo é a vida acontecendo. Não há como eliminar memórias de quem já viveu ali. Mas, quando eu estiver triste porque aquela pessoa se foi, vou ter uma letrinha em casa que desperte em mim alegria. Roupas e objetos devem ser doados imediatamente. A não ser algo muito simbólico a que se dê uso. Já quando o bebê nascer, vamos buscar letras de proteção. Para o casal também há letras para harmonizar a nova vida.
Como as visitas ou hóspedes podem se integrar a um ambiente sem alterá-lo?
Não tem como. A energia será alterada, mas depois ela funciona num padrão já conhecido. E as sequências de letras ajustam esse padrão.
A gente vê vários lugares, especialmente pontos comerciais, que abrem e logo fecham, nunca prosperam. Por que isso?
A minha vitrine é um restaurante no Rio de Janeiro e todo mundo dizia que tinha uma caveira de burro enterrada. Comecei a trabalhar e tive uma dificuldade. O arquiteto, que era muito renomado, tinha pintado uma parede de preto no canto leste. O canto leste é o pulmão do ambiente. Consegui convencê-lo a pintar de branco. E as coisas fluíram.
Pode nos deixar um ensinamento aplicável ao dia a dia?
Renovar a casa é olhar para ela como um organismo. Para que manter aqueles vasos se até as plantas já morreram? Para que cristais, se a gente não limpa direito, não coloca no sol? Devemos prestar atenção a cada cantinho da casa e repensá-lo. A goteira que incomoda? Conserte. É parar, ver tudo o que está acumulado, quebrado e botar para fora.
No curso, a senhora indica caminhos para "realizar sonhos à luz do seu potencial mais sagrado". Que dica daria a quem deseja segui-lo neste começo de ano?
Não há transformação sem meditação. E isso não é "esvaziar a mente". O que a gente precisa aprender é acalmar a mente. Onde meu pensamento está eu estou. E viver o presente é fazer esse exercício. Pode ser de forma bem prática, parar quatro minutos, programar no celular. Sentar e prestar atenção à respiração. Os pensamentos vão parar? De jeito nenhum. Mas o exercício é reconhecer e soltar.
Na cabala, os praticantes desenvolvem uma consciência que sempre considera o outro. Em conflitos entre Israel e Palestina, por exemplo, vemos quão longe estamos dessa realidade. O que falta?
Os israelenses não são cabalistas. Mas, sim, ainda falta muita coisa. Estamos longe de amar o próximo como a nós mesmos. Aqui ou em Israel. Há uma palavra africana que define essa situação, que é ubuntu. E ubunto significa o seguinte: "Eu existo porque você existe. Você existe porque nós existimos". No dia em que a gente tiver essa consciência, com certeza saberemos amar ao próximo como a nós mesmos.
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