A doce arte: conheça a trajetória de Lisiane Arouca, eleita a melhor chef confeiteira do país | A TARDE
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A doce arte: conheça a trajetória de Lisiane Arouca, eleita a melhor chef confeiteira do país

Publicado segunda-feira, 08 de julho de 2019 às 10:57 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Tatiana Mendonça | Foto: Felipe Iruatã | Ag. A TARDE
As sobremesas criadas por Lisiane são cheias de memórias de infância
As sobremesas criadas por Lisiane são cheias de memórias de infância -

Algumas avós têm o costume de esconder umas comidinhas para seus netos favoritos. Quando dona Marieta fazia ambrosia, pudim, sonho, guardava uma parte para que Lisiane, seu amor maior, comesse sossegadamente mais tarde. Nem é preciso dizer como ela adorava essa hora, habitando sua nuvem particular de açúcar e afeto. Já crescida, juntou essa coleção de memórias na sobremesa Lá na Minha Avó, que, além dessas delícias todas, ainda leva algodão-doce, sorvete de leite ninho, musse de queijo, farofa e mais doce de leite.

Foi com criações como essa, cheias de lembranças e delicadezas, que a baiana Lisiane Arouca conquistou o título de melhor chef confeiteira do Brasil. O reconhecimento veio no dia 10 de junho, numa das maiores premiações gastronômicas do país, o Melhores do Ano da revista Prazeres da Mesa.

Naquela noite, ela misturou a surpresa com um choro de criança pequena. Lisiane venceu outros quatro chefs confeiteiros, do Rio de Janeiro e São Paulo, indicados por  176 jurados, entre jornalistas e profissionais de gastronomia. No ano passado, também havia sido selecionada, mas desta vez voltou para casa com o prêmio.

“Era algo muito longe para mim. Todos os meus concorrentes estudaram fora, têm todas aquelas técnicas, e eu aprendi muito por mim mesma”, diz, enquanto observa os clientes do restaurante Ori, no Horto Florestal, que comanda ao lado do marido, o chef Fabrício Lemos. O lugar ainda estava cheio num dia comum de semana, passando já das três da tarde.

Lisiane aprendeu a sofisticar os sabores da infância, mas segue muito dona da sua verdade. Entremet, por exemplo, aquela tortinha francesa chique e cheia de camadas, ela diz que até sabe, mas não consegue fazer. “Não é algo que eu olhe e me dê alegria. Ah, eu vou comer um entremet, meu Deus... Não. Agora: ah, eu vou comer uma ambrosia, e eu vou morrer, sabe?”. A ambrosia, que ainda faz do jeito que aprendeu com a avó, no liquidificador, segue sendo o seu doce preferido da vida.

Mais que um reconhecimento pessoal, ela está feliz por ter trazido o título para a Bahia. Diz isso com os olhos marejados. Nascida em Salvador, Lisiane passou a maior parte da infância em Amargosa, e faz questão de sempre utilizar produtos locais nas sobremesas que cria. “Quando você fala de comida baiana, as pessoas acham que é só moqueca, ou que eu faço só cocada e quindim. A confeitaria na Bahia é algo que não é muito destacado. Então, isso para mim foi uma alegria imensa”.

Caderninho de receitas

Desde muito pequena, Lisi, como todos a chamam, é apaixonada por doces. Nem o pai nem a mãe cozinhavam, e quando ela ia brincar nas casas das amigas, aproveitava para comer um bolo, um bom-bocado, um rocambole, e tratava de anotar as receitas num caderninho. Passou a pedir à mãe para que a deixasse fazer os doces em casa, mas ela negava, dizendo que ia desperdiçar os ingredientes.

Pois aos 7 anos, depois de juntar todo o dinheiro que o pai lhe dava, foi ao mercado e comprou tudo que precisava para fazer um rocambole, receita escolhida para a estreia. Deu certo. Sua mãe gostou tanto que passou a pedir que fizesse doces nos fins de semana. Com 8 anos, Lisiane começou a fazer bolos, de laranja, fubá, banana, e aí não parou mais. Foi enchendo os cadernos com as receitas que via na televisão, que pegava de um e de outro, e até hoje guarda oito deles, escritos com aquela letra enfeitada para fazer jus ao que lhe era – e é – da máxima importância.

Ela já amava estar na cozinha quando dona Marieta veio morar com a família, com seus ensinamentos preciosos e doces guardados. Lisiane tinha 12 anos quando a avó morreu, e aos 13 veio morar em Salvador. Conheceu o marido aos 15, casou aos 19. Ele era jogador de futebol, e logo depois de terminar a graduação na Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia – ainda não havia cursos de gastronomia na época – Lisiane se mudou para Belo Horizonte.

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"Meu pai fazia", uma das sobremesas queridinhas de Lisiane, leva umbuzada, brigadeiro de rapadura e sorvete de coco

Repetiu, como adulta, a vida nômade que já levava quando criança, indo de um lugar a outro por causa do trabalho dos pais, que eram funcionários do Banco do Brasil. Com o ex-marido, pai de suas duas filhas, Luana e Giulia, ela passou por nove cidades, como Belém do Pará, Rio de Janeiro, Recife. Engavetou o diploma, virou dona de casa.

Ela fazia um docinho e outro para agradar às meninas e aos amigos, mas os bolos acabaram virando trabalho quando o marido se lesionou, aos 29 anos, e ficou desempregado. A família voltou para Salvador. “Foi um período bem difícil porque a gente teve que recomeçar a vida do zero”.

Para pagar as contas de casa, Lisiane resgatou as receitas de infância. Nos fins de semana, era tanta encomenda que os bolos espalhavam-se por toda a casa. Ela recompensava o cansaço com a sensação de que a coisa estava dando certo.

Foi aí que Lisiane resolveu realizar o sonho antigo de cursar gastronomia, com o pecúlio deixado pelo pai, que faleceu nesta época. Na sua turma de 30 alunos da Estácio, que na época se chamava FIB, só três estavam, como ela, interessados em confeitaria. Quando terminaram a faculdade, criaram juntos a Quatro Chefes.

O quarto nome do grupo foi o professor Luan Moura, que também é confeiteiro e na época dava aulas no curso. “Cada um tinha uma especialidade, e a de Lisi era bolos e doces. Daí a empresa foi naturalmente tomando esse rumo. A gente acabou tendo que ajudá-la na produção”, lembra Luan.

Lisiane fazia bolos esculpidos e docinhos modelados, relembrando a época da EBA, e agora faz sobremesas que são como esculturas, tão bonitas que dão até pena de comer.  “Ela pegou esses elementos que são característicos dela – o preparo bem afetivo, bem do interior mesmo, de valorizar o que é nosso – e conseguiu lapidar isso para criar pratos que são obras de arte”, diz Luan. 

Ele acredita que a premiação de Lisiane coincide com um momento de valorização da cozinha regional. E isso, na sua opinião, torna seu feito ainda mais expressivo. “É difícil você criar em cima de uma coisa que já existe. [O chef] Alex Atala fala uma coisa que é bem interessante. Você fazer um foie gras bom é muito fácil, porque ninguém tem referência. Mas você fazer um feijão com arroz bom é muito difícil, porque todo mundo já comeu o melhor feijão e arroz da vida em algum momento. Então, é meio que isso. Você fazer um pudim bom é muito difícil, porque todo mundo tem uma referência para avaliar”. 

A empresa com os amigos durou quatro anos. “Deu tão certo que comecei a ter problemas em casa”, conta Lisiane. Ela diz que o ex-marido, que estava acostumado a tê-la o tempo todo por perto, começou a dizer que teria que escolher entre ele e o trabalho. Quando veio o ultimato, Lisiane escolheu os doces. Separou-se depois de 17 anos de casamento e passou seis meses numa “depressão profunda”. 

Coragem e recomeço

Ela não tem problemas em falar dessa época.  “Foi um período de muito sofrimento, mas também de crescimento, porque era uma escolha de coragem”. Ficou tão mal que saiu da Quatro Chefes e pediu à mãe que levasse as meninas para morarem com ela. “Eu estava deitada numa cama, querendo morrer, achando que não tinha mais futuro de nada”.

Foram as filhas que a fizeram levantar. “Um dia, elas vieram me visitar, imagine, e aí ficaram me olhando da porta, de longe, eu chorando... Naquela hora pensei: sou exemplo para essas meninas. Quando elas passarem por qualquer dificuldade na vida, vão achar que é dessa forma que têm que agir. Foi minha força maior, de verdade. Eu levantei da cama e acabou. Dei um abraço nelas, disse para voltarem para casa, e aí pronto. Fui para terapia, tomei remédio e comecei a fazer os bolos de novo”.

Nessa época, o chef-pâtissier norte-americano Antonio Bachour veio a Salvador para dar um curso de confeitaria. Foi lá que Lisiane conheceu Fabrício. Ele era chef do Al Mare, onde também fazia as sobremesas, e ficou interessado em aprimorar suas técnicas. Depois do curso, que durou uma semana, a turma passou a se encontrar para falar de gastronomia e cozinhar, claro. 

O grupo, formado originalmente por Fabrício, Caco Marinho, Leonardo Roncon e Ricardo Ferraz, foi batizado de Quarteto ao Quadrado. “A gente se reunia toda segunda-feira já projetando o momento que a gente vive hoje, que era a nova gastronomia baiana. Até então era o Beto [Pimentel], a Tereza [Paim] e o Edinho [Engel] que estavam no cenário. A gente buscava uma renovação”, conta Fabrício.

Dos encontros, partiram para as expedições pelo interior baiano para conhecer melhor a produção e os produtos locais. Entre uma reunião e outra, uma viagem e outra, Lisiane e Fabrício começaram a namorar. “Ela é uma pessoa simples, doce, meiga, que também viveu muito tempo no interior. Esse foi um dos motivos que me fizeram aproximar dela. Temos ideias e conceitos em comum”. 

Eles já estão juntos há cinco anos e se casaram em janeiro numa cerimônia simples no Ori. “É maravilhoso porque você sai de uma relação em que a pessoa fala que você não precisa trabalhar para outra que te incentiva. Ele foi um dos primeiros a reconhecer o que faço”, diz Lisiane.   

Na Quatro Chefes, Lisiane já tentava fazer com que os restaurantes saíssem do petit gateau e da torta búlgara, mas nem sempre eles aceitavam muito bem, o que a deixava frustrada. Quando passou a trabalhar com Fabrício em consultorias, ela conseguiu trazer algumas sobremesas mais diferentes, até que decidiram ter total liberdade de criação num lugar que fosse só deles. “Para colocar na mesa aquilo que a gente acredita, da forma que a gente sonha, só seria possível se fosse só a gente. Mas abrir um restaurante quando você tem um sócio investidor, ou uma facilidade para empréstimos, já é difícil. Imagine quando você não tem nada...”. 

Para dar vida ao Origem, Lisiane vendeu o carro e eles passaram a fazer ainda mais consultorias. Foram oito só em 2016, aquele período de crise  braba, com muitos restaurantes fechando. “A gente foi construindo devagarzinho. Montamos logo a minha cozinha, que é a do fundo, para que eu pudesse fazer os bolos e pagar o aluguel, que não era barato. E aí a gente ia  recebendo das consultorias e fazendo as obras. O arquiteto falava: ‘Põe esse piso’, e aí a gente pegava um outro, R$ 10 mil mais barato”, ri.   

Com o Instituto Ori, desdobramento do Quarteto ao Quadrado, eles também ajudaram a fomentar cadeias produtivas para fortalecer os produtores locais. “Até hoje a gente vai buscar produto na rodoviária. Vai pegar o fumeiro de Maragojipe, o licuri, o umbu... Tem os frutos do mar da Repescar, a cooperativa da Ilha, o aratu, a ostra do Kaonge... Acho que uma das coisas mais importantes para os produtores foi conhecer melhor esse processo de armazenamento dos produtos, para chegar até a gente de uma forma segura. O sonho de abrir o restaurante se misturou a esses sentimentos pelos ingredientes e por essas pessoas que sobrevivem desses produtos”. 

Nesses três anos de funcionamento do Origem, que fica no Caminho das Árvores, Lisiane já criou mais de 80 sobremesas. “Todo ingrediente novo que vou vendo, me dá vontade de criar. Fico pensando como posso associar aquilo às minhas receitas”. Na hora de explicar o que fez com que Lisiane ganhasse o prêmio, Fabrício diz que ela faz sempre o que acredita, e não o que é “midiático”. “Ela representa, de fato, o pequeno produtor através das sobremesas. E, infelizmente, no mundo da gastronomia, as pessoas começam a seguir um mesmo caminho, e aí você vê, por exemplo, sorvete de alga. O que tem a ver alga com sobremesa? Temos tantas coisas a fazer dentro do nosso estado, do nosso interior... Para que buscar diabo de alga? Lisi vai muito contra isso. O objetivo maior dela é fazer as pessoas felizes”. 

E parece que a felicidade dos clientes é crescente. Este ano, eles abriram um novo restaurante, o Ori, que funciona para o almoço e o jantar e tem seis opções de sobremesa (o mesmo número de pratos principais). 

Raiz do equilíbrio

Os doces brasileiros, especialmente os baianos,  são conhecidos por ter muito açúcar. Tendo nossa confeitaria como base, Lisiane precisou aprender a dosar a mão. “Com o tempo, fui percebendo a importância de equilibrar o doce com o azedo, com o salgado, com o amargo, para que as pessoas consigam comer até o final. E como são sabores muito familiares, de infância, fica muito mais fácil”.

O chef Laurent Rezette, do Atelier Laurent, a conheceu quando ela era estudante de gastronomia e acredita que Lisiane está cumprindo bem a missão. “Ela está encontrando um excelente equilíbrio nas cores, texturas, sabores. São anos de dedicação. Está sempre inovando e há uma consciência com o alimento, com a forma como é produzido. É todo um conceito que abrange o respeito ao produto. Tudo isso faz com que o resultado final tenha coerência“.

Aos 40 anos, Lisiane Arouca sente que finalmente ganhou um nome próprio. “Por muito tempo, fui esposa do jogador tal. Depois, a namorada do chef...  Nunca tive a pretensão de ser nada, de ganhar nada. Mas hoje tenho uma profissão, dois restaurantes, duas filhas crescidas, dois cachorros, um marido novo. Me sinto uma vitoriosa mesmo”. 

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