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A iconografia combativa de Juarez Paraíso

Juarez é ativista visual da contracultura e manipulou símbolos tradicionais

Por Luiz Freire* | [email protected]

27/02/2023 - 8:00 h
Cristo-mulher está exposta até o final de março na Galeria Contemporânea do Palacete das Artes
Cristo-mulher está exposta até o final de março na Galeria Contemporânea do Palacete das Artes -

Diante da imagem decorrente de manipulação digital impressa em “plotter” de Cristo-mulher, exposta até o final de março na Galeria Contemporânea do Palacete das Artes, no bairro da Graça, muitas questões emergem dessa proposição surgida em 1973 na forma de performance materializada em uma fotografia em preto e branco analógica.

A performance, realizada na praia de Busca Vida, Camaçari (BA), constou de uma cruz latina feita de areia úmida e uma jovem e linda mulher nua, deitada sobre a cruz. Juarez diz que a cruz foi feita pelo “esforço frenético de alguns espectadores-participantes, diante do avanço do mar, pois não por acaso, as ondas da maré alta deveriam desfazer a cruz, como ação libertária”.

Anos depois, em 2000, o artista reinterpretou digitalmente a imagem, conferindo um colorido forte, colocando a crucificada em uma perspectiva vertiginosa, pairando sobre o globo terrestre. Por trás da cabeça da mulher, o artista acrescentou a cabeça de Cristo, coroado de espinhos, tornando a relação mais óbvia, reforçando a ideia da mulher martirizada e morta, que todos os dias povoam os noticiários do Brasil em casos de violência e feminicídio.

Cristo-mulher, de 1973, coloca também a possibilidade de a maior divindade do cristianismo ser do gênero feminino, uma iconografia que seria considerada herética nos tempos da Santa Inquisição, sobretudo porque a mulher, durante boa parte da Idade Média europeia, encarnava o mal e a principal fonte do pecado. Conotação que só foi redimida através do reconhecimento da concepção virginal de Nossa Senhora e do seu papel como mãe de Jesus. A Virgem Maria passou a ser a outra Eva, cheia das virtudes maternais e protótipo da mulher cristã. Porém, a subjugação da mulher, sua inferioridade, coisificação, permanece nas sociedades cristãs como lastro, muito porque o protótipo mariano implica em muitas limitações e opressões.

Não por acaso, a performance materializada pela fotografia causou reação aos que viram, assim descrita por Juarez: “Foi um trabalho muito discutido, provocou muito ruído e desconforto em alguns, certamente atingindo mais aos fundamentalistas cristãos, aos misóginos e ao patriarcado”.

Ativista visual

Juarez é ativista visual da contracultura, manipulou símbolos tradicionais conferindo-lhes significados diversos, escancarando conteúdos dissimulados, naturalizando as relações sexuais, tão estigmatizadas pela cultura cristã, deliciando-se com as formas e a genitália feminina e pensando a mulher e o sexo como centro da vida, com abordagens libertárias e formas voluptuosas.

Muitos dos seus trabalhos figurativos alinham-se aos gritos e revoluções havidas no século 20, a partir da década de 1960: o Movimento Hippie; o Festival de Woodstock (Nova Iorque, 1969), o surgimento de uma nova política de esquerda, em que se criticou o consumismo da sociedade americana, combateu seu imperialismo, o racismo, defendendo os direitos civis dos afrodescendentes. Surgiram e se fortaleceram os movimentos dos trabalhadores, feministas e defensores dos homossexuais. A liberdade sexual tornou-se um libelo do movimento hippie.

Ecos das insurgências culturais norte-americanas atingiram o Brasil, pois a aldeia de Arembepe, na Bahia, passou a significar a “sociedade alternativa” cantada por Raul Seixas; o Cinema Novo denunciou as desigualdades sociais do Brasil, e o Tropicalismo conduziu a inovação estética a partir da união entre as tradições populares e as vanguardas artísticas, promovendo um diálogo com os fluxos culturais estrangeiros. Tudo isso em um cenário autoritário e repressor, imposto pela Ditadura Militar, vigente de 1964 a 1984.

Homem Tubo (1981) é uma crítica ao consumismo; o artista apropriou-se de uma grande cabaça oval e modelou em fibra de vidro uma boca em um dos extremos, e no outro, um ânus, colocados na mesma direção, indicando a rapidez do processo. Tudo é comido e imediatamente defecado. Contudo, a obra é polissêmica e pode ser interpretada também como uma ode aos prazeres gustativos e eróticos proporcionados por essas mucosas.

Com as cabaças, Juarez realizou composições totêmicas, nas quais a dialética entre vida e morte se manifesta, constituindo-se em estandartes do flagelo da seca nordestina, em que o crânio de boi e a caveira humana nela inserida representam o fenecimento de ambos, a morte do animal implicando na morte do ser humano.

Os totens foram concebidos entre 1987 e 1992. Totens da seca, totens do sertão, totens da vida, da morte e da criação. Constituídos de matéria ordinária do cotidiano singelo da gente agreste, cabaças tiradas das ramas, das feiras onde servem de medidas à farinha, feijão e milho; cuias que contêm a parca água que mata a sede e umedecem o alimento; cabaças que servem de batuque e se prestam a conter os víveres e que abundam no lendário africano e ameríndio.

Ossos dizem das agruras da realidade tórrida, em que a chuva é sonhada, rogada e festejada, onde a natureza pouco ri com seus cortantes galhos desnudos, castanhos e cinzentos, mas quando ri, gargalha com gamelas de umbus, gordas melancias, abóboras, vida nos currais e riachos de leite. Ossos que apontam no couro do gado magro; nas vacas caídas, consumidas pelos urubus. Ossos das caras esquálidas das gentes em trapos.

Búzios vêm do mar, trazem-nos as marés, carregam os mistérios do princípio criador, o mesmo que gerou Vênus e Iemanjá, símbolo da fecundidade feminina. Quando mescla enormes búzios às cabaças, Juarez integra o litoral ao sertão e evoca a vulva e o ventre, entranhas dos mistérios da vida em formas voluptuosas recorrentes, inclusive, nas composições pintadas e esculpidas de sua abstração orgânica.

Vale-se o artista de uma matéria plástica, cujo significado mais profundo bem conhece, matéria com a qual constrói seu discurso acerca da vida, do princípio, do fim, da concepção à morte, da conjunção criadora do falo com a vulva. São, portanto, Totens da ancestralidade, do flagelo e da gênese humana.

Atentado à moral

Tratou o mito do pecado original na Maçã de fibra de vidro concebida realisticamente, na qual substituiu o talo da fruta por uma composição pequena e reentrante, que reproduz parte das nádegas abertas, vagina e ânus. Desvela a metáfora bíblica do “fruto proibido” desfazendo simbolicamente a proibição. O objeto provocou o “fechamento” de uma exposição na Galeria Cañizares, da Escola de Belas Artes, após ser considerado, por uma comissão de professores da casa, como um atentado à moral pública”. (Juraci Dórea in A obra de Juarez Paraíso, 2006, p. 121)

Na Figa Negra em fibra de vidro (1983), o artista explicita esse amuleto, presenteado aos recém-nascidos, de uso amplo e tradicional pelos adeptos do candomblé e por todas as classes sociais. Portá-la garante, pelo senso comum, boa sorte, corpo fechado ao mau-olhado e demais perigos. O significado de origem remete à fecundidade, pois funda-se na síntese do coito reprodutivo em que o polegar-pênis penetra na vulva formada pelo dedo indicador e médio. O segredo, ocultado pela hipocrisia cristã, é revelado, e ele refere-se ao sexo procriador, para surpresa de todos. Juarez fez três figas, doou uma a Emanuel Araújo, a segunda a Pasqualino Magnavita e ficou com outra. Pensa que uma versão de 3 metros podia ser implantada na entrada do aeroporto, ou em frente ao Mercado Modelo, ou mesmo reproduzida em miniatura para distribuição gratuita.

Com uma iconografia combativa o artista provocou e provoca a crítica moral dos ortodoxos e das “belas, recatadas e do lar”. Não foi por acaso que se retratou como Medusa, capaz de petrificar as pessoas, de assombrá-las, destruindo suas certezas e condicionamentos culturais. Ao se colocar como Medusa, assume a “terribilitá” do mito clássico, como o poder de afastar os maus espíritos e atrair sorte. Signos e significados em Paraíso continuam atuais e dialogando com as questões da contemporaneidade.

*Doutor em História da Arte e professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo

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