MUITO
A obra intensa do artista visual baiano Anderson Santos
Por Gilson Jorge
Na próxima sexta-feira, 30, completam-se dois anos desde que o pintor Anderson Santos retornou a Salvador com a família, vindo de Milão. Veio visitar a irmã, que estava em tratamento de câncer, e soube da sua morte quando desembarcou no aeroporto. Vieram os trâmites burocráticos, o inventário familiar, a pandemia e a morte do pai, que, em isolamento social em Aracaju, sofreu um ataque cardíaco, 15 dias depois do início da quarentena.
Desde que se casou com a fotógrafa italiana Cecilia Tamplenizza e passou a dividir o tempo entre a Europa e a Bahia, nunca tinha ficado tanto tempo em Salvador. Mulher e filhos devem voltar ao velho continente em breve, ele fica um pouco mais para cumprir compromissos.
Além do tempo em que leva pintando seus quadros em um sobrado no Santo Antônio Além do Carmo, Anderson tem aproveitado o tempo para se conectar com a sua cidade natal. No verão do ano passado, estrelou a última exposição da prestigiosa Paulo Darzé Galeria antes do isolamento social.
Agora, acaba de lançar o e-book Floresta Negra e entregou há três semanas um painel de 25 metros na fachada do Edifício Guabira, no Comércio, integrando o Movimento Urbano de Arte Livre (Mural).
Com camisa social, calça jeans e um par de tênis originalmente preto, mas respingado por tintas de diversas cores, acena para uma vizinha que passa, enquanto conversa, encostado no muro branco do Colégio Vivaldo Costa Lima.
Aos 48 anos, Anderson é ainda jovem para o universo dos artistas visuais, mas sua obra tem luz própria. “Eu vi o seu trabalho em um catálogo durante uma exposição em São Paulo, em 2014, e fiquei impressionada. Queria muito conhecê-lo, ainda mais quando soube que era baiano, negro”, declara Thais Darzé, sócia e diretora da galeria fundada por seu pai na década de 1980.
Thais enaltece a qualidade do traço de Anderson, um artista fortemente inspirado pelo irlandês Francis Bacon, morto em 1992, um ano antes que ele iniciasse a graduação na Escola de Belas Artes.
Outro aspecto destacado por Thais é a clareza que ele sempre teve sobre o seu trabalho e onde queria chegar. “Sempre quis ser pintor. Entrou na faculdade em um momento em que a pintura estava em baixa, todo mundo só falava em arte contemporânea”.
A ênfase que Thais coloca no fato de Anderson ser um pintor, no sentido clássico, baiano e negro rascunha a coragem que ela enxerga por ele não sucumbir à pressão de pintar o que classifica como “o que o sistema esperava que ele pintasse”. A ideia, propriamente, de que um artista visual negro baiano deveria se ater a temas afro-baianos. A aproximação do trabalho de Anderson com a arte contemporânea é mais perceptível a partir do seu casamento com Cecília.
O artista, que durante a graduação embarcou de carona para São Paulo em um voo da Forca Aérea Brasileira (FAB) só para conhecer a obra de Bacon em uma exposição, recorre a Gilberto Gil, que recebeu da Bahia “régua e compasso”, para explicar que não acredita em limitações ao seu trabalho: “Nasci em uma época em que homens negros faziam coisas ultrapassando os limites impostos a eles com toda a sua potência e inteligência, Nelson Mandela, Milton Santos, Gilberto Gil, Michael Jackson”.
Anderson afirma que o fato de ser um homem negro, latino-americano e baiano se reflete no que aparece em sua pintura. “Todo o meu imaginário foi construído daqui, a partir da luz do sol da Bahia, como ela incide nos corpos, mas posso dar também como exemplo o grafismo das plantas que coloquei no mural que pintei no Comércio que me lembram aquelas com que minha avó paterna me benzia, ou as histórias que imagino ao pensar na Floresta Negra dos Irmãos Grimm”.
Download
O e-book Floresta Negra, que também tem conteúdo da pesquisa do mestrado de Anderson em belas artes, está disponível para download gratuito desde o último dia 15, no site andersonsantos.ripensarte.com.
O professor e curador Danillo Barata destaca no texto de apresentação que “se no início da sua carreira, Anderson Santos tentava neutralizar a narração e a figuração propostas nas suas pinturas, mais recentemente o artista passou a valorizar as micronarrativas que invadem o seu cotidiano traçando novas visões de futuro ou de afrofuturismo”.
Amiga e colega de curso, Clarice Miranda diz que enquanto a maioria dos estudantes de belas artes queria experimentar todas as linguagens, Anderson, aos 20 anos, chegou já sabendo o que pretendia fazer, com conhecimentos avançados de luz, sombra, perspectiva.
“O trabalho de Anderson tem uma expressividade que vai além da coisa realista”, diz Clarice, que observa nas obras recentes do amigo uma semelhança conceitual com os quadros da graduação, mas com maior unidade entre os elementos pictóricos.
O grupo de amigos de Anderson na Escola de Belas Artes da Ufba frequentava regularmente os botecos da Avenida Araújo Pinho, às vezes na hora do almoço, às vezes matando aula para tomar uma. O pai de Anderson, José Pereira, que já não morava com ele, aparecia para visitá-lo e acabou se enturmando com os amigos do filho. Não raro pagava a conta sozinho.
Pereira, um desenhista técnico que prestava servicos à Odebrecht, influenciou involuntariamente a decisão do filho em ser artista. O pequeno Anderson costumava xeretar o trabalho que o pai fazia em casa, distraindo-o de suas tarefas. “Um dia, ele me deu papel e lápis, me disse para desenhar e lhe mostrar depois”, conta.
Aos 16 anos, Anderson viu os pais se separarem. E quando ligou para Pereira, anos depois, informando que passou no vestibular, viu a alegria do pai na primeira parte da informação se transformar em decepção quando Pereira descobriu que não era, pelo menos, o curso de arquitetura. “Ele sabia que não seria fácil viver de arte”, pondera.
O artista já expôs no Museu de Arte Moderna da Bahia, Museu Carlos Costa Pinto, Galeria Acbeu e em praticamente todos os espaços de arte em Salvador, além do Rio e em Recife. No exterior, sua obra já foi apreciada por espanhóis, franceses e, naturalmente, italianos. Em 2011, recebeu o segundo prêmio do Arte Pará, promovido pelo Museu Histórico do Estado do Pará, em Belém.
A seleção de Anderson para realizar um dos quatro painéis do Projeto Mural lhe rendeu uma remuneração que não estava prevista no momento em que ele se deu conta de que ficaria mais tempo em Salvador.
Diretora da Trevo Produções, que coordena o projeto, Vanessa Vieira explica que um dos fatores determinantes na seleção dos artistas foi o portfólio. “Ele já tem um trabalho, um traço característico”, afirma Vanessa.
Muito simples
Anderson assinala que até hoje não tem sido fácil viver de arte. “Sou representado pela melhor galeria da cidade, mas vivo de forma muito simples”, diz o artista, que mantém com a companheira e a sogra, em Milão, a empresa RipensArte. É uma startup voltada para a criação de soluções inovadoras para o registro e arquivo de momentos importantes da vida de seus clientes, e trabalha também com o desenho digital, que há alguns anos também faz parte da obra de Anderson.
A empresa também edita a revista de arte Maggazino, cujo site magazzino.ripensarte.it/pt/ está disponível em português, italiano e inglês.
Anderson e Cecilia se conheceram ali mesmo no Santo Antônio Além do Carmo, no Bar do Pascoal, a poucos metros de onde hoje moram. Era um tímido flerte que se repetia cada vez que ela passava e o via sentado na mesa do bar, em 2009. Alguns boas-tardes e boas-noites.
Ela sumiu por um tempo, tinha voltado para Milão. No ano seguinte, quando se reencontraram, começou o relacionamento.
Para Cecilia, que desenvolveu com Anderson em sua empresa conceitos como moldura digital e realidade ampliada, o trabalho dele vai além da pintura.
“Ele é um fazedor de imagens. Se ele tem uma imagem que quer realizar, vai estudar técnicas que vão ajudar a realizar essa imagem”, afirma Cecilia, para quem Anderson desenvolve um trabalho muito estudado e que dialoga com a arte contemporânea.
A revista Mezzanino é a segunda experiência editorial de Anderson, que no início da década passada tinha produzido em parceria com o amigo Daniel Freire a Boardilla, uma expressão em portunhol para o espanhol buhardilla, a janela do sótão por onde entra a luz.
Ambos conviveram durante alguns meses em Barcelona, onde até hoje Daniel mora. “Nos conhecemos em 1995, na Escola de Belas Artes, e um influenciava o outro. Anderson era mais atirado, eu era mais tímido, até na pintura, mais contida”, diz o amigo.
Coisas boas e ruins
Daniel considera que compartilhou com Anderson as coisas boas e ruins de ser um artista na Salvador do final dos anos 1990, até que ele decidiu mudar-se para a Catalunha.
Em 2007, Anderson foi visitar o amigo que estava estudando em uma universidade e chegou a cogitar ficar por lá, incentivado por Daniel, com quem compartilhou um estúdio de pintura.
“Foi fantástico tê-lo por perto. As escolas, como instituição, foram muito ruins, tanto em Salvador como em Barcelona. Mas na EBA tinha uma vontade de fazer as coisas que eu não encontrei aqui”, diz Daniel. “E Anderson era essa pessoa que representava a intensidade na pintura e no viver”.
Sobre a experiência da revista, Daniel descreve como um capítulo particular na amizade entre os dois, um capítulo intenso e difícil. “Houve muita tensão e projetos paralelos, mas o resultado foi bom. Publicamos artistas da Rússia, Estados Unidos, Chile, Japão, Turquia...”, lembra.
Alguns desses países, nesta semana que passou, voltaram seus olhos para o país de Daniel e Anderson, durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima. Imerso em uma crise sanitária e política, o Brasil tem pintado para si no cenário internacional uma imagem surrealista.
Mas como quem dá dois passos para trás a fim de avaliar o quadro inteiro, Anderson demonstra otimismo com o seu país.
Ele cita uma frase dita por Gilberto Gil numa entrevista, que o encheu de alegria. Gil diz que não há abismo que o Brasil caiba. “É isso que eu penso sobre o Brasil, somos muito maiores enquanto possibilidades do que isso que estamos, nós mesmos, acreditando que somos”, diz Anderson.
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